Correio da Cidadania

No final das contas, 2014 não teve caos nem legado

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2014 foi o ano da Copa. Lembra? Quando o país anunciou que havia sido escolhido para sediar a Copa do Mundo de 2014, imediatamente foi também veiculada a ideia de que este evento traria um “legado” para as cidades-sede, proporcionando a seus habitantes uma revolução nos transportes, a modernização da infraestrutura aeroportuária, a melhoria da mobilidade e o resgate de uma urbanidade incompleta, além de outros benefícios, como o incremento do turismo, com geração de empregos e aumento da renda para a população.

 

Naquele momento, e ao longo dos anos que antecederam o evento, outros, ao contrário, anunciavam que o país jamais teria condições de sediar um evento desse porte, que envergonharíamos o mundo com nosso amadorismo, nossas péssimas estradas e aeroportos, nossas cidades inchadas de carros e carentes de transporte público minimamente decente. Enfim, que a Copa no Brasil seria um caos…

 

Pois bem... A Copa veio, passou, e não tivemos nem o caos anunciado por uns, nem o maravilhoso legado prometido por outros. Um país que anualmente organiza eventos do porte do Carnaval, para milhões de pessoas, em grandes cidades como Rio, Recife e Salvador, obviamente tem capacidade de sediar uma Copa do Mundo. Por outro lado, as promessas de “legado” anunciadas eram absolutamente falaciosas. Sem dúvida, porém, a realização do megaevento no Brasil foi um dos momentos marcantes de 2014. E, assim como em outros setores, teve seus impactos na questão urbana.

 

Na área da mobilidade, diversos projetos foram anunciados. Parte foi entregue, principalmente a modernização de aeroportos, outra parte não chegou a ser implementada ou não foi concluída integralmente para a Copa. O fato é que muitos desses projetos – pensados principalmente para ligar aeroportos, rede hoteleira e estádios – estão longe de ser prioridade para atender às reais demandas da população moradora das cidades. Além disso, a implementação de algumas destas obras significou a remoção de diversas comunidades, transformando a Copa em pesadelo para muitas pessoas que perderam suas casas. A falta de informação, transparência e participação marcou os processos de remoção, numa violação clara do direito à moradia adequada.

 

Somente no final da Copa, a Secretaria Geral da Presidência divulgou balanço das remoções em todo o país, fixando em 13.558 mil o número de famílias atingidas (ou cerca de 35 mil pessoas).

 

Tal número é facilmente contestado: no Rio de Janeiro, por exemplo, apenas as famílias afetadas pelas obras da Transcarioca foram listadas, quando várias outras obras removeram centenas de pessoas – como na favela do metrô mangueira, no entorno do Maracanã. Sem contar as remoções relacionadas diretamente ao projeto das Olimpíadas.

 

É problemática, também, a definição de “obra relacionada à Copa”, já que grandes projetos e empreendimentos começaram a ser implementados na “onda” das transformações urbanas promovidas pelas obras da Copa.

 

Para se ter uma ideia, a Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa estima, em seu último dossiê, que as remoções tenham afetado 250 mil pessoas em todo o país.

 

Nesse processo, a resistência e a mobilização de diversas comunidades chamaram a atenção. É o caso das comunidades afetadas pelo VLT de Fortaleza, que conseguiram que o traçado original do projeto fosse alterado, evitando um número maior de remoções. Emblemática é também a luta dos moradores da Vila Autódromo, no Rio de Janeiro, que desde os Jogos Pan-Americanos de 2007 lutam contra a remoção e, em 2013, apresentaram um Plano Urbanístico Alternativo, construído em parceria com universidades do estado, mostrando a viabilidade da permanência da comunidade no local.

 

Inspirada na experiência da Vila Autódromo, a Vila da Paz, em São Paulo, no entorno do Itaquerão, ameaçada de remoção pela construção de um parque linear no bairro, também apresentou uma proposta, o Plano Popular da Vila da Paz, elaborado em parceria com assessorias técnicas, reforçando a luta por permanecer na área.

 

Se em 2013 a questão urbana entrou de vez na agenda pública – especialmente a partir do tema da mobilidade, pontapé das grandes manifestações de Junho –, em 2014 ficou claro que a pressão pública de movimentos e organizações da sociedade civil é importantíssima se quisermos de fato ver transformações se concretizarem.

 

No processo de revisão do Plano Diretor de São Paulo, por exemplo, os movimentos de moradia tiveram atuação destacada, realizando grandes mobilizações. O tema da moradia entrou com força no novo Plano, assim como o da mobilidade. Na cidade começam também a ser implantadas com mais prioridade políticas que priorizam o transporte coletivo de massa e o não motorizado, como as bicicletas.

 

Em outras cidades, também, as lutas urbanas que explodiram em 2013 tiveram fôlego em 2014: em Belo horizonte, a resistência contra os despejos; em Salvador, a mobilização contra a Linha Verde, via expressa pedagiada para carros que vai rasgar bairros populares da cidade; no Recife, o Movimento Ocupe Estelita, questionando um projeto imobiliário em área central da cidade, é também um bom exemplo. Recentemente, no Maranhão, o Ministério Público pediu à Justiça uma intervenção na Secretaria de Transportes de São Luis, dada a extrema precariedade do transporte público da cidade.

 

A questão urbana, portanto, entrou na agenda, a pressão pública tem crescido, mas a “virada” ainda não aconteceu…

 

Em 2014 tivemos ainda eleições para a presidência da República, governos estaduais e legislativos estadual e federal. Lamentavelmente, no debate eleitoral, a questão urbana praticamente não apareceu. Claro que a maior parte da agenda urbana diz respeito aos municípios, mas as políticas estaduais e federais são extremamente relevantes para definir os rumos e propiciar – ou bloquear – mudanças importantes em nível local.

 

No último debate presidencial na TV, aliás, a primeira pergunta de um eleitor indeciso foi sobre o alto preço dos aluguéis – 2014 foi o ano em que a alta dos preços imobiliários, muito acima dos salários e da renda, se refletiu no valor dos aluguéis, gerando uma verdadeira emergência habitacional. Por isso, este foi o ano da explosão de ocupações de prédios e terrenos. Mas nenhum dos candidatos foi capaz de dar uma resposta à altura do desafio que precisamos enfrentar nessa área. O modelo atual, de construção de casas via programa Minha Casa Minha Vida, reafirmado por todos os candidatos, é incapaz de resolver a crise de moradia que vivemos em todas as nossas grandes cidades. Quem está desesperado com o valor dos aluguéis – como aquele eleitor – não tem como esperar 10-15 anos na fila da moradia…

 

2014 termina, assim, com frustrações, explosões e tênues esperanças nas cidades...

 

Raquel Rolnik, arquiteta e urbanista, é professora da FAU/USP.

Coluna originalmente publicada na Retrospectiva 2014 do Yahoo.

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