Correio da Cidadania

Modernidade cega, egoísta e predatória

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Não se iluda, o torcedor moderno não vai ao estádio para ver um jogo de futebol. Ele vai porque viu na TV, ou alguém disse pra ele, que o que se sente lá é autêntico. Autenticidade é algo extremamente raro e procurado em tempos onde tudo está à venda. E é raro exatamente porque o que pode ser comprado não tem como ser autêntico.

 

Ou seja, o ato de preparar e vender mata a autenticidade do fenômeno, mas isso só é percebido depois que todo o processo de pasteurização, empacotamento, promoção e venda chegou ao fim. Criamos assim um rolo compressor moderno.

 

Este rolo compressor identifica fenômenos que causam comoção nas pessoas e os padroniza para poder comercializá-los. A ideia é pessoas que nunca se envolveram com aquele fenômeno poderem sentir a mesma coisa de alguém que o vive intensamente, que há anos o sente. Além disso, o rolo compressor quer garantir os direitos dos novos consumidores, por isso precisa “aparar as arestas”, eliminar os “inconvenientes” e pasteurizar toda a experiência.

 

É claro que nesse processo acaba-se com a espontaneidade do negócio, e com esta vai a autenticidade. As pessoas (novos consumidores) demoram pra perceber: no início, todo mundo está empolgado e admirado demais para fazer qualquer questionamento, mas eventualmente acontece (e aquilo passa a ser considerado banalizado). O rolo compressor, então, parte em busca de um novo fenômeno e deixa o bagaço do velho para trás. Infelizmente, o que sobrou, normalmente, não é capaz de se regenerar, já que é muito difícil desproibir as coisas, recriar um ambiente que havia surgido naturalmente ao longo de décadas e fazer as pessoas deixarem de pensar que aquilo não é mais como já fora.

 

O motor desse rolo é a “lógica do capital” (materializada nos gestores de arenas, diretores de marketing e cartolas “racionais”), mas esta é incapaz de fazer qualquer coisa sem um combustível: pessoas ingênuas, cegas e egoístas (aquelas que financiam todo o processo ao consumirem a nova experiência da moda: no caso, os neotorcedores).

 

Ingênuas porque estão em busca de algo único sem serem únicas, sem viverem algo essencialmente íntimo. Ingênuas porque ao verem na TV a expressão de alegria de um torcedor que há anos acompanha seu time, que passou por toda a fase ruim e agora finalmente se reencontra com a vitória, imaginam que é só ir ao estádio numa partida importante para também terem aquilo. Ingênuas porque não percebem que o fato de ir ao jogo com o intuito de ter uma experiência transcendental já impede que isso aconteça.

 

Cegas porque não percebem que estragam exatamente aquilo que buscam e que são predestinadas a fazê-lo, como uma espécie de Midas ao contrário (“Merdas”). Cegas porque querem se emocionar, mas não enxergam que se todos se sentarem e agirem como se espera ninguém se emociona.

 

E egoístas porque quando são avisadas do que estão fazendo (ou percebem por si só, já que no fundo, no fundo, é uma mistura de cegueira com vontade de não ver) elas não se importam em acabar com algo sagrado para outros para que elas possam ter a ilusão (ou pior, poder contar para o facebook) de ter tido uma experiência autêntica.

 

Como dito no início do texto, ultimamente o futebol vem sendo o principal produto do rolo compressor (pelo menos até que se invente um elevador para o topo do Everest). Deste modo, nos pedem para ver o jogo sentados, proíbe-se o pernil na porta do estádio, quase nos fazem sentir mal de mijar no terreno abandonado entre a última cerveja e a entrada no jogo e nos olham como se nós fôssemos os forasteiros ali. Temo o dia em que me pedirão para não gritar no estádio, mas me consolarão aconselhando “aproveita o jogo, amigo!”

 

 

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André Vidiz é jornalista e colaborador da webrádio Central3, onde este texto foi originalmente publicado.


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