Correio da Cidadania

Argentina sob opressão: o juiz, os abutres e a soberania

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“A Argentina enfrenta novamente uma extorsão sem precedentes. Os especuladores que compraram bônus da dívida por 48 milhões de dólares lograram em Nova York uma sentença judicial de cobrança de 500 milhões. Esta fraude demonstra como funciona o capitalismo atual, sistema que empurra nossos países a mais e mais padecimentos. Os abutres se dispõem a repetir o mesmo que já realizaram em outros lugares, como o Peru, e ameaçam a toda região” [Notícia publicada no periódico chileno Punto Final, nº 48, página 26 - Julho/2014].

 

Este artigo é destinado a explicar e denunciar esta ameaça.

 

Vocês sabem quem é Thomas Griesa?

 

Este homem, praticamente desconhecido para a maioria dos cidadãos latino-americanos, tem o poder de, com uma simples sentença, levar um país soberano à bancarrota, ordenar o sequestro de bens nacionais, inclusive uma fragata sob comando militar.

 

Trata-se do juiz federal Thomas Griesa do Tribunal Federal de Nova Iorque, que, em 2012, assinou e fez publicar uma sentença condenatória da Argentina, exigindo que esse país pagasse aos demandantes - a NML Capital Limited, um "fundo abutre" ligado à Elliot Management Corp do multimilionário e especulador Paul Singer - a quantia que lhes seria devida como credores da dívida soberana argentina. Este juiz tem importância apenas secundária, é simples funcionário da justiça nova-iorquina a serviço do capital financeiro. No entanto, em nome dos interesses de especuladores, afronta a soberania de uma nação.

 

Os "fundos abutre" detêm títulos de dívida que não foram trocados na operação de reestruturação da dívida de países, como a Argentina, e reclamam, por isso, o pagamento integral do seu valor nominal.

 

Mais claramente, os chamados "fundos abutre" são organizações de especuladores especialistas em investir em dívidas de países que estão em risco de bancarrota ou cuja dívida não foi devidamente reestruturada por oposição dos detentores de títulos. Esses títulos (bônus) são comprados por valor muito menor que o valor de face (valor nominal). Em seguida os abutres pressionam, por vias “legais” vigentes em seus próprios países (por exemplo, a justiça de Nova York), as entidades emissoras dos títulos — no caso, um estado soberano, a Argentina — para que lhes paguem pelo valor nominal.

 

Em 2012, para forçar o pagamento, o juiz, mancomunado com os fundos e sob a falsa indiferença do governo norte-americano, procurou embargar ativos argentinos no exterior. Tal ato provocou até o sequestro da fragata Libertad, navio escola da Armada Argentina, no porto de Accra (Gana). A fragata ali ficou retida por 77 dias. Para ser  liberada foram exigidas a elaboração e assinatura de um acordo entre países, celebrado em Haya e firmado pela embaixadora argentina Susana Ruiz Cerutti e pela ministra de Justicia ghanesa e procuradora geral, Marietta Brew Appiah-Oponq.

 

Na ocasião, a mais alta autoridade argentina, a Presidenta da República Cristina Fernandes de Kirchner, declarou: “Los buitres son las aves que comiezan a volar  sobre los muertos; los fondos buitres sobrevuelan sobre países endeudados y em defaut. Son depredadores sociales globales”.


A metáfora utilizada pela Senhora Presidenta é muito apropriada, os abutres (buitres em espanhol) são comparados aos fraudadores e ladrões (estafadores em espanhol). Por razões óbvias, os operadores desses fundos não gostam dessa comparação, preferem os termos amenos que lhe escondem a cara: “distressed debt” e “special situations funds”.

 

Também em 2012, Griesa superou-se em seu “saber jurídico’ e, sem pudor algum, apresentou uma interpretação, no mínimo capciosa, de uma das cláusulas do documento que rege a questão. A interpretação impôs à Argentina a obrigação de assegurar tratamento igual a todos os credores. Se esse país decidisse não pagar aqueles que não aceitassem a renegociação (os chamados holdouts) também deveria, obrigatoriamente, interromper o pagamento regular a mais de 90% dos credores que entraram em acordo. Como consequência, qualquer banco que viesse a ajudar a Argentina a pagar detentores de bônus da dívida reestruturados estaria violando uma ordem judicial dos EEUU.

 

Por mais esdrúxulo e absurdo que possa parecer, a Argentina se viu impedida de honrar seus compromissos renegociados em 2005 e 2010. Depositou pontualmente um pagamento programado para 30 de junho de 2014, no valor de 539 milhões de dólares no Bank of New York Mellon, mas este não liberou esses recursos. Houvesse feito o repasse aos fundos credores, o banco violaria a lei. Consequência: o dinheiro ficou retido trinta dias e, depois, os responsáveis pela segurança do sistema financeiro internacional, no caso a Standard & Poor's, declararam “default seletivo” contra a Argentina. Assim ocorreu um curioso e inédito fato na história do sistema capitalista: alguém (no caso um país) foi julgado em default, embora quisesse pagar e já houvesse depositado o dinheiro para tanto.

 

O economista argentino Cláudio Katz, preocupado com o o predomínio do capital financeiro, declarou que ao povo argentino se tenciona impor o mesmo confisco que sofrem os pequenos devedores estadunidenses, os desalojados de moradias na Espanha e os empobrecidos da Grécia. O objetivo é arrasar com os países, destruindo a obra de distribuição da riqueza e solidariedade latino-caribenha realizada por alguns países da região. Querem dominar os governos, deteriorando as condições socioeconômicas e políticas, e forçando-os à volta ao “entreguismo”, marca de períodos governamentais anteriores.

 

A Argentina tenta se defender dos fundos abutres pela criação de um novo marco jurídico. Recentemente, depois de promulgada pela presidenta da nação, “A lei de Pagamento Soberano” entrou em vigor. Este diploma legal objetiva proteger o país e seus credores dos ataques especulativos dos fundos abutres. A iniciativa é boa, mas não basta. Faz-se necessária a ação política incisiva e solidária dos países da região para confrontar os avanços e as táticas do capital financeiro. Cabe-lhes gerar seu próprio sistema apara construir nova arquitetura financeira.

 

É de suma importância o fortalecimento de iniciativas como o Banco del Sur (necessidade de construir uma nova forma de pagamento regional em moedas locais) e Fondo del Sur, somados a uma estratégia produtiva com base na soberania nacional (política, alimentar e energética). Essas e outras iniciativas poderão confrontar a política e a lógica do livre comércio já impostas pela diplomacia estadunidense a vários países de Nuestra América, por exemplo, a Aliança do Pacífico que agrupa Chile, Peru, Colômbia e México.

 

 

Grupo de São Paulo  - José Juliano de Carvalho Filho, Elisa Helena Rocha de Carvalho, Marietta Sampaio, Guga Dorea, Silvio Mieli, Thomaz Ferreira Jensen.

Artigo originalmente publicado no Boletim da Rede.

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