Correio da Cidadania

Caos: catarse do sistema no México

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Na história, como na política, não existem coincidências. Os fatos registrados são produto de projetos e planos bem definidos e que podem estar desenhados para que sucedam a curto, médio e longo prazos. Tudo depende dos objetivos que se persigam. São produto de estratégias dos grupos de poder, Estados e governos. Um exemplo disso é o que vivemos hoje, nós, mexicanos: o caos como catarse do sistema capitalista.

 

Há 20 anos e dez meses, como hoje, o México experimentou seu naufrágio e o medo da guerra, a sociedade viveu o pavor de uma possível revolta armada generalizada. Em 1994, a razão disso foi a aparição do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), em Chiapas, com o subcomandante Marcos, o que por certo acabou sendo uma máscara da realidade.

 

Nesses dias de outono de 2014, a origem está no desgoverno que criminalizou o país, o qual desencadeou fatos abomináveis como o massacre de estudantes normalistas de Ayotzinapa, em Guerrero, e a violência desenfreada dos grupos criminosos em todo o território.

 

Naquele ano, entrou em vigor Tratado de Livre Comércio (TLC), firmado pelo México, Estados Unidos e Canadá, que, não obstante a evidente assimetria das economias, em teoria catapultaria nosso país ao grupo das nações desenvolvidas.

 

Colocaram-se sobre a mesa todas os ramos e atividades produtivas para o livre comércio entre os três países. Só ficou fora o petróleo mexicano. Na IV Reunião Ministerial, realizada em Chantilly, Virginia (8 a 11 de fevereiro de 1992), conseguiu-se um acordo tripartite para que as restrições constitucionais em matéria de petróleo e petroquímica do México não fossem levadas à mesa de negociação.

 

O resultado disso, hoje, é que o vizinho do norte se converteu em nosso principal sócio comercial, dependemos em mais de 80% de suas importações, a produção nacional de exportação se concentrou naquela fronteira, além de 60% dos alimentos que consumimos serem provenientes de lá. Quer dizer, estamos atados ao mercado dos Estados Unidos.

 

Além do mais, cresceu a pobreza, a 53% da população, e quebraram médias e pequenas empresas. O campo está praticamente desmantelado, assim o demonstra a crescente importação de alimentos; e as oportunidades de elevar a condição de vida do grosso da população, cada vez mais, se afastam, tanto que agora são os empresários que demandam o aumento do salário mínimo, porque já entenderam que com a atual renda média das famílias nunca se poderá dinamizar o mercado nacional.

 

Em 1994, o medo da guerra foi a ferramenta do Estado para sufocar o protesto, o inconformismo e a possível oposição à entrada em vigor TLC.

 

Vinte anos depois, isto é, por esses dias de 2014, o governo está comprometido a tornar realidade o que ficou pendente em Virginia, há 20 anos, com as grandes empresas petroleiras e energéticas transnacionais,  abrindo-lhes as reservas naturais de combustíveis fósseis e geração de eletricidade, para o qual estruturou a Reforma Energética e suas Leis Secundárias, que já foram aprovadas pelo poder legislativo, mas que, mesmo assim, não contam com a aceitação de grande parte da sociedade, sobretudo aqueles que serão afetados em seu patrimônio de maneira direta e contundente, como são as comunidades indígenas e camponesas.

 

E ainda que não se difundam nos meios de comunicação os protestos e a resistência dos povos aos planos de exploração de suas terras pelas transnacionais, os fatos virão à luz pública de uma forma ou outra, como acontece como o despejo dos habitantes dos terrenos de Texcoco, onde se construirá o novo aeroporto da Cidade do México. E quando isso acontecer, o Estado terá de conter as expressões de inconformismo e solidariedade que essa luta possa despertar no resto da sociedade.

 

Neste caso, os signos da estratégia governamental são claros. Mostra-se condescendente, inclusivo e até paternal com as expressões de inconformismo de mobilizações, como a dos estudantes do Instituto Politécnico Nacional (IPN), e lhes resolve, a seu favor, a pauta de reivindicações apresentada.

 

No caso do assassinato dos estudantes normalistas de Ayotzinapa, manifesta indignação pelos fatos e sentencia que o crime não ficará impune. Remete a responsabilidade dos fatos à autoridade local e estatal de Guerrero. Destaca a cumplicidade, no massacre, desses poderes com os grupos criminosos que dominam a entidade, e grande parte do país.

 

Fazem do assassinato um teatro do terror, para que todo mundo veja. Exibem os cadáveres descarnados e a desolação dos parentes. Jogam com os sentimentos da sociedade e a inspiram ao protesto, à reivindicação, mas, principalmente, deixa-se patente o horror de que a violência chegue a se generalizar. Aninham, assim, o medo na consciência da sociedade, que por outro lado projeta uma imagem benevolente sobre o Estado-justiceiro.

 

E a voz do governo mexicano se escuta nos foros internacionais, dos quais recebe apoio, aprovação e promessa de colaboração para o esclarecimento do crime, como expressaram os EUA e a OEA.

 

Assim, os fatos justificam a presença e a incursão do exército e corpos  policialescos federais em todas as partes para pegar os culpados. Esses poderiam estar em qualquer lugar, posto que as facções criminosas permearam todos os setores sociais e grande parte do território nacional.

 

Nessa busca, que no caso de se dificultar poderia receber o apoio policial e militar estrangeiro, também, de passagem, podem se apagar os protestos e resistências dos povos que se opõem a que as empresas transnacionais os despojem de suas terras, fazendo-os passar como cúmplices da criminalidade. Dessa forma, se limparia o caminho para que se cumpra com seus compromissos adquiridos na Reforma Energética e suas Leis Secundárias, como aconteceu com o TLC há duas décadas. O sistema segue firme.

 

 

Juan Danell Sánchez é repórter mexicano, especializado em temas do campo, indígenas e direitos humanos.

Contato: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

Retirado de América Latina em Movimento

Traduzido por Gabriel Brito, do Correio da Cidadania.


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