Correio da Cidadania

Melhor é viver debaixo da ponte

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Rogéria é loira, de olhos azuis. Os cílios lembram os dos albinos.

 

Não deve ter chegado aos cinquenta, mas a pele do rosto já engruvinha. Lembra um tanto Robert Redford, cujos sulcos na face não comprometeram seu charme e beleza.

 

Santa Cecília

 

Largo de Santa Cecília. Ali, na banca de jornal em frente à simpática igrejinha amarela, a Paróquia de Santa Cecília, espero a chegada de Maciel, amigo e colega de trabalho e conhecedor das ocupações do centro. Um mar de sombrinhas passa pra lá e pra cá nesse dia de chuva que não dá folga. ‘Amor, olha, aqui tem uma Galinha Pintadinha’, diz uma saudável adolescente para o seu namorado, apalpando a galinha de pelúcia pendurada na banca.

 

Maciel aparece e me surpreende olhando para a tal galinha. Vamos em direção à primeira das ocupações que temos como objetivo visitar, na rua das Palmeiras, esquina com a Alameda Glete. Tocamos a campainha, a porta é aberta no automático e falamos com a atendente, mistura de desconfiada e tímida. Peço pra conversar com alguém e ela liga para a Rosamaria, chefona, que não pode falar porque tá fechando as contas, e pede pra gente voltar no outro dia. Tento uma conversa com a atendente, que se fecha toda – só mesmo com autorização da Rosa.

 

Sai pelo corredor um homem com pinta de cafetão. Passa logo em seguida uma moça com uma criança e, um pouco depois, um rapaz bem jovem carregando um botijão de gás, azul e pequeno. Apresso-me a sair pra, quiçá, conseguir uma prosa. Nada, sem a Rosa, sem chance. Esquemão daqueles, tudo na burocracia e hiper-aparelhado.

 

Seguimos para outra tentativa, uma ocupação na Barão de Campinas. Batemos na porta e nada de aparecer alguém. Dá vontade de desistir. Um barulho vem das escadas e surge finalmente na porta uma mulher. Jeito de despachada e aura de líder. Pergunto se posso conhecer a ocupação e conversar com alguém, mas a moça logo me chama para ir a outra ocupação que ela estaria encabeçando. Diz-se em uma urgência  daquelas urgentíssimas para resolver problema grave que teria ocorrido por lá. Pergunta se estamos de carro e digo que viemos de metrô.

 

Saio correndo atrás da mulher na chuva. Ela primeiro, eu em segundo lugar e, atrás, o Maciel. É preciso fôlego. A mulher não para de falar ao celular e de gesticular.

 

‘Vai ter reintegração de posse na quinta-feira aqui na Barão de Campinas, e mandei um monte de família para este outro casarão – tem criança pequena e mais de 50 famílias. Tão querendo entrar lá’, diz atarantadérrima.

 

De repente, me pergunta se eu tenho crédito para a Vivo. Prontamente disco em meu celular o número que ela me dita e digo-lhe que fique à  vontade  para falar.

 

A mulher sai andando pelo meio da rua, em plena Avenida São João. É preciso pegar um ônibus para chegar à Rua Santo Antônio, quase esquina com a Genebra, onde os tais fatos graves estariam ocorrendo.  Ofereço um táxi, mas o ônibus já vem chegando, felizmente vazio.

 

O casarão do coronel

 

Descemos ali pelas imediações do belíssimo prédio do Artacho Jurado, o Condomínio Planalto, e segue mais uma correria em direção ao casarão ocupado.  Passa um pouco de frio pela espinha imaginar dar de cara com alguma tropa de choque. O que, encontramos, no entanto, é um pequeno conjunto de homens, tentando uma interlocução. Dois deles pareciam proprietários – o primeiro, quase um galã de cinema, trajando esporte chique; e o outro grisalho, de terno, com bigodes que lembravam Jânio Quadros.

 

‘Vocês não podem chegar aqui e ir entrando, há famílias ocupando a casa, isto  já é uma ocupação’, esbraveja a mulher.  O sósia de Jânio pergunta com firmeza: ‘então é assim,  vocês podem entrar na casa, que não é de sua propriedade, e nós, proprietários, não podemos retirá-los daqui?’.

 

Trata-se, na verdade, de um grupo de engenheiros, todos do sindicato dos engenheiros, que fica a menos de uma quadra do casarão, logo ao dobrar a esquina.

 

Um deles, careca, baixinho e bastante cordial,  vem me contar das péssimas condições da casa.

 

Vejo o térreo, com paredes amparadas por barras improvisadas de madeira, cheiro de mofo e goteiras em toda a extensão do cômodo.

 

Uma moça de uns 18 anos aparece com uma criança no colo na porta do casarão, com o rosto tomado pelo que pareciam picadas de inseto.

 

‘Se chamarmos o Conselho Tutelar, essa mãe pode responder a processo, e esta irresponsável senhora também, pois está submetendo estas famílias a uma situação risco’, fala Jânio indignado.

 

A mulher me interpela a subir. Os engenheiros me aconselham a não fazê-lo: ‘a casa pode cair de uma hora pra outra, e qualquer peso a mais pode ser fatal’.

 

A mulher pisca para mim, já avançando escadaria acima. Vou ou não vou? Acabo indo, acompanhada de Maciel. ‘Tudo mentira deles, já estive em casas bem piores que esta, estão só fazendo pressão, intimidando’, cochicha nem bem começamos a subir as escadas. Lá em cima, chama a atenção de ocupantes por terem aberto a porta para estranhos, ‘não deveriam ter feito isto de jeito nenhum’.

 

Maciel caminha até o fim do casarão de mais de cem anos, que já pertenceu a um poderoso coronel do exército. Diz, meio assustado, sentir o chão ‘tremular sob seus pés’. Resolvo fazer o mesmo trajeto que, de fato, tem aspecto de um corredor da morte. Mas as sombras e memórias de um passado nobre estão por ali, a permear o casarão hoje tristemente ornamentado por espessas camadas de mofo pelas paredes, muitas goteiras e dejetos em putrefação na parte exterior.

 

Os cômodos à frente parecem mais conservados, com uma bela porta de madeira entalhada que dá acesso a uma sacada revestida com ladrilho hidráulico, em frente à Câmara de Vereadores. Vejo à meia luz uma senhora morena, de meia idade e bastante em forma, que, em um quarto improvisado, passa um hidratante no rosto olhando para a claridade que vem da sacada. De repente, reclama que ‘pedem pra gente ficar aqui, mas ninguém pensou, até essa hora do dia, que tá todo mundo sem comer’. Ela e a mãe do bebê, Ilana, que vive há dez anos em ocupações, são  os únicos adultos que estão no sobrado naquele momento – além de mim, Maciel e Rogéria, a mulher que nos levou até ali, cujo nome acabara de me ser relatado por Ilana.

 

Tento engatilhar uma nova conversa com Rogéria, que parece um Zás-Trás, alucinada entre chamadas ao celular com o filho e colegas do movimento popular, repreensões a Ilana e à outra senhora e ainda com expectativas de falar conosco, que aparecemos ‘em hora excelente, uma salvação pra mim’.

 

Rogéria se diz, orgulhosamente, educadora e proprietária de uma casa em Itaquera. Teve que abandonar a casa, que agora está alugada,  por conta da crise. Vive há dez anos organizando ocupações e trabalha dia sim dia não. De vez em quando, fala com jornalistas.

 

A conciliação

 

Gibi, uma antiga liderança de movimentos populares, chega ao sobrado. Maciel já o conhecia de outras paradas. Deve ter vindo pra ajudar com uma saída. Rogéria fica afoita e logo reclama do tratamento que recebe do pessoal do sindicato: ‘eles maltratam a gente, gritaram comigo’.

 

Gibi reconhece que se trata de acontecimento grave e que a presença de guardas do sindicato na porta do casarão é postura hostil, que intimida e pouco ajuda. Pondera, no entanto, que o foco deve ser achar uma solução para famílias em situação de conflito e que ‘não dá pra irmão ficar brigando com irmão. O sindicato dos engenheiros é parceiro na luta dos movimentos, estão sempre nos dando guarida’.

 

No Sindicato dos Engenheiros, para onde nos encaminhamos, chega também Karla, raposa velha no pedaço das ocupações, ‘e não invasões’ , faz sempre questão de enfatizar. Com maestria, afirma que não concorda com o que aconteceu, ‘à revelia de qualquer decisão do movimento’, mas não pode ser ‘algoz de famílias desesperadas, em grave situação social’.  Afinal, sua luta é ‘contra o capitalismo’.

 

Rogéria, nervosa, vai lançando mão da palavra e afirma que fez a ocupação ‘no desespero mesmo’ , ‘sozinha’, e que não tem receio em assumir a responsabilidade pelo ato juntamente com as famílias que a acompanharam. Um tanto  desaforada, diz ainda que ‘o sobrado é da prefeitura e o sindicato não tem o direito de se meter em uma propriedade pública’.

 

Ouve imediatamente de seus colegas um firme pedido para que mantivesse a calma e se dispusesse ao diálogo, pois ‘a hora não é de discutir posse, até porque não temos prova de nada disso’ . Sinalizam para a companheira, ademais, que o correto seria dar ouvidos às considerações dos engenheiros sobre a insalubridade e riscos do ambiente e voltar para a ocupação da Barão de Campinas. Afinal, ‘você não deveria ter saído de lá, pois ainda vai haver a reintegração de posse e a luta precisa ir até o final. O jogo só termina quando o juiz apita’.

 

Saímos da sala, engenheiros, eu e Maciel, para que Gibi, Karla e Rogéria chegassem a um acordo.

 

Rogéria, a poderosa da Barão de Campinas, rainha na Avenida São João e líder do casarão abandonado, era agora uma criança a ouvir e acatar sugestões.

 

A partida

 

Encontro os engenheiros no Hall de entrada do sindicato e rola um bate-papo. Um deles, engenheiro de segurança e diretor no sindicato, de fala mansa, calça e camisa pretas  bem justas, barriga um pouco saliente,  ressalta que ‘Rogéria pode ter a pretensão de se tornar líder dos movimentos de ocupação, passando por cima das lideranças atuais’. Emenda em seguida que ‘a mulher deve ser mentirosa, não há mais que meia dúzia de gatos pingados na casa ocupada, imagina 50 famílias, o que daria uma soma de cerca de 120 pessoas, número mais que suficiente para um desabamento cinematográfico’.

 

Realmente, até onde posso me lembrar, não havia notado no casarão mais que meia dúzia de colchões, todos de plástico azul e a maioria molhada pela água das goteiras.

 

Jânio, que parece proprietário do imóvel, mas que é o vice-presidente do sindicato, volta a bater na tecla da inadequação do ambiente para uma criança e da irresponsabilidade da mãe. E ele sabe o que é  a dor da perda de um bebê: tem ‘o coração doído’, perdeu um neto com 7 meses, vítima de uma bactéria; entrou no hospital e em 3 horas estava morto.

 

O guarda do sindicato, que estava fazendo a segurança do casarão quando chegamos, arremata o coro com menção a que, ‘a viver dentro daqueles escombros, mil vezes morar debaixo de uma ponte’.

 

A tropa da conciliação reaparece no Hall do sindicato. Pergunto a Rogéria como foi, e ela diz resignada que ‘vão sair todos, será melhor assim, mais seguro’.

 

Eu e Maciel pegamos o caminho de volta, não sem antes passar na frente do velho casarão abandonado.

 

De lá já estão, de fato,  partindo os ocupantes.

 

Na porta, conto ao todo 5 colchões azuis, ao lado de um saco de arroz de 5 Kg e 4 cobertores estampados em xadrez.

 

Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania.

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