Colômbia: democracia real e democracia formal

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Pietro Alarcón
18/03/2014

 

 

1. As eleições de março

 

 

No último dia 9 de março, foram realizadas na Colômbia as eleições para o Senado e a Câmara de Representantes, os órgãos do Legislativo que hoje contam com 102 e 166 membros respectivamente. O resultado desse processo constitui um quadro inicial do que pode acontecer no dia 25 de maio, data das eleições presidenciais.

 

Num Estado no qual o voto não é obrigatório e não existem iniciativas que fomentem a participação popular no debate eleitoral, vence o abstencionismo; igualmente, num Estado em que historicamente se constata um abismal desequilíbrio entre as forças políticas, como resultado da ausência de garantias para a oposição, a ponto de partidos e movimentos serem vítimas do paramilitarismo, vence, além do abstencionismo, a anti-democracia ou a demagogia, como pontuavam os gregos na Cidade Antiga.

 

Com efeito, por um lado, segundo o Conselho Nacional Eleitoral, de um potencial de mais de 33 milhões de eleitores, cerca de 60% se abstiveram de votar e contaram-se mais de 3 milhões de votos nulos, em branco ou cédulas não marcadas com nenhum candidato. Por outro lado, os candidatos da União Patriótica, organização que participa depois de mais de vinte anos da data em que a arbitrariedade e o cinismo a retiraram do cenário eleitoral, sofrendo centenas de desaparecimentos e assassinatos na década de 80 – como reconhece hoje a Corte de San José de Direitos Humanos –, obtiveram mais de 250.000 votos.

 

Entretanto, pelo sistema proporcional, mesmo com votação significativa, não conseguiram obter vagas no Congresso. Vale anotar que no espectro da esquerda o Polo Democrático Alternativo obteve 5 senadores e 3 representantes, com votações importantes para alguns dos candidatos.

 

Corroborando a precariedade do regime político, lembre-se que já no começo do presente ano a prisão de membros da organização da Marcha Patriótica e, a poucos dias de efetuar-se a eleição, o atentado contra a delegação dos candidatos da União Patriótica no departamento de Arauca, no nordeste colombiano, na fronteira com a Venezuela, deixaram a eleição sob a sombra das ameaças e da intimidação.

 

A esses resultados, deve-se somar que dos trabalhos do Legislativo, segundo a Fundação Paz e Reconciliação, que realizou pesquisa sobre os candidatos questionados pelos seus vínculos com o paramilitarismo e organizações criminosas, participarão 131 investigados judicialmente.

 

2. Democracia formal x democracia real

 

Para tornar mais compreensível o panorama que resulta do recente quadro eleitoral, pedimos vênia para abordar alguns elementos estruturais da realidade colombiana: muito embora exista uma historiografia quase oficial, na qual se proclama que o país é uma democracia estável, se aduzindo que somente padeceu uma ditadura militar durante breve tempo no século XX e, mesmo assim, não comparável às do sul da América, outros elementos a caracterizam de maneira diversa.

 

Com efeito, a persistência da violência empreendida pela classe dominante, praticamente a partir do final do século XIX, como mecanismo corriqueiro de perpetuação no controle da gestão pública nas esferas local e regional, bem como a ação organizada a partir das entranhas do próprio Estado contra partidos e movimentos de oposição promotores de uma nova arquitetura do regime político e da condução econômica, autorizam afirmar que se trata de um modelo fundado na força. Não há meios claros para a condução de iniciativas cidadãs, muitas vezes estigmatizadas como subversivas, com traços acentuados em certas passagens da história de fascismo estatal, combinado com os vícios de elites apoiadas na distribuição de recursos e cargos públicos para a manutenção de esquemas de corrupção, nos quais aparecem desde o compromisso com interesses estrangeiros até o narcotráfico como sustentáculo da prática política.

 

A promoção de uma democracia aberta e franca, com sensibilidade social e não apenas identificada pelos seus traços formais representativos, com tolerância e respeito pelas ideais contrárias ao regime, nunca foi uma aposta para a classe no poder. Pelo contrário, cercear espaços e canais converteu-se numa trilha de manutenção do status quo. Reproduziu-se um déficit democrático, com a exclusão de vastos setores nacionais.

 

Até a Constituição de 1991, os contínuos fracassos de projetos constitucionais de reforma que consagravam instituições e procedimentos alicerçadores de uma democracia mais autêntica se deveram à força dos setores mais atrasados que resistiam a qualquer mudança de modernização do Estado. A nova Carta, embora estabeleça institutos de democracia direta, como o plebiscito, o referendo, a iniciativa popular de lei, a consulta popular e a revocatória do mandato, tropeça com a falta de vontade constitucional de torná-la viva, nesses pontos que mais podem afetar interesses de grupos econômicos e famílias ancoradas no poder desde o século XIX.

 

Na história da República, desde o começo propalou-se a ideia de que os partidos têm donos, que o pluripartidarismo não é conveniente, que é infrutífera a participação eleitoral, o que conduziu à apatia e ao descrédito na atividade política. Por isso, as posturas que promovem a abstenção e o voto em branco, por exemplo, em lugar de ajudarem, ratificam o caráter do regime e, nas condições da Colômbia atual, o endossam.

 

Esse estilo de domínio encontra-se também na base e causa do surgimento da insurgência colombiana: primeiro, logo após o assassinato do candidato Jorge Eliécer Gaitán em 1948, que originou as guerrilhas liberais; e depois, quando, desde as grandes capitais, os partidos liberal e conservador reclamavam a ação da polícia e dos militares e suas lideranças, direta ou indiretamente, criavam os primeiros grupos de bandoleiros paramilitares para conter os reclamos populares pela democratização da propriedade da terra. Daí que o sucesso de qualquer processo à procura de uma saída política para a paz se encontre estreitamente relacionado com a superação das dificuldades para passar a uma democracia deliberativa e participativa, não formal, mas real, de profundo arraigo popular.

 

Nas condições singulares do país, os canais participativos foram criados a partir da base, sem muito comprometimento do Estado, como resultado de jornadas de exigência de direitos que redundaram em formas expressivas de organização, que passaram da luta econômica à política.

 

As reivindicações foram plasmadas em plataformas e programas propositivos de reconstrução das estruturas do país, conscientes de que a forma de luta eleitoral não colide com a ampliação dos espaços ganhos na resistência e o avanço popular, senão que são cenários complementares de trabalho por um país diferente.

 

Destarte, os movimentos e partidos surgidos desses contextos utilizaram os espaços nos organismos de representação, nas esferas locais, regionais e nacionais, tanto no Legislativo quando no Executivo, como propulsores de satisfação das necessidades públicas, ampliando a democracia, sem, contudo, renunciar à atividade fora do Estado, pois acompanhavam a ação popular nas ruas.

 

Uma amostra contemporânea dessa situação é a realização, no momento de escrever estas linhas e no meio do debate eleitoral, da Cúpula Agrária, Camponesa, Étnica e Popular. Há que lembrar que em agosto de 2013 agricultores de todo o país realizaram uma greve no campo na região conhecida como Catatumbo, à qual foram se somando outros setores sociais em todo o país. A repressão militar deixou 16 manifestantes mortos, 636 feridos e 415 pessoas detidas. O governo acuado enviou representantes para gerir a situação, mas até o momento não houve cumprimento dos primeiros acordos, que incluem os créditos para os camponeses e uma revisão dos programas de desenvolvimento no campo.

 

Juan Manuel Santos tem preferido iniciar um diálogo para um Pacto Agrário com os empresários do agronegócio e faz ouvidos surdos, depois de mais de 13 assassinatos, de agosto até esta data, de lideranças camponesas. O importante evento contribui à unidade em torno a uma candidatura à presidência de compromisso com o direito dos povos de definirem o uso da terra e dos alimentos a cultivar, a soberania alimentar, o fortalecimento da participação dos camponeses e etnias nas políticas públicas que os afetam e a necessidade de prosseguir com os diálogos de paz em Havana e as aproximações entre o Estado e os grupos insurgentes.

 

Certamente, todo o processo de debates eleitorais até maio será marcado por jornadas vigorosas, que devem se refletir no tom dos discursos dos candidatos e na unidade da oposição que se pronuncia pela paz com justiça social.

 

3. Os resultados eleitorais e as perspectivas

 

No meio do abstencionismo, a corrupção, as ameaças e as vantagens dos candidatos alinhavados ao governo Santos, a nova composição do Congresso mostra, pelo menos temporariamente, uma recomposição da hegemonia das forças comprometidas com a atual realidade do regime político, favorável à reeleição de Juan Manuel Santos.

 

Embora os votos do chamado Centro Democrático, partido do ex-presidente Uribe, não tenham sido na quantidade avassaladora que um setor da mídia proclamava, Santos terá uma pressão enorme do militarismo e dos setores mais comprometidos com a guerra para desfazer o caminho andado nos diálogos de Havana. Enquanto isso, o campo democrático, progressista e a esquerda obtiveram uma representação importante, mas insuficiente, se levamos em conta o quadro geral do Congresso. Por isso, seu desafio é trabalhar mais intensamente nos processos de mobilização popular em curso, continuando a combinar a ação parlamentar com a ação em campos e cidades.

 

A União Patriótica (UP), em apenas três meses, ainda que sem parlamentares escolhidos, está em expansão, e se fortalece moralmente, tanto pela sua história quanto pelas suas propostas.  A unidade entre a UP e o Polo Democrático para as eleições de maio agora é uma realidade. As candidatas Clara Lopez e Aida Abella à presidência da República, representando cada organização, são garantia para uma campanha de otimismo, canalizadora das expectativas cidadãs e de forte apoio social.

 

Trata-se de um processo de unidade que deve chegar além da plataforma eleitoral, na perspectiva de uma frente ampla de convergência para a paz, a solução do conflito armado, a efetivação dos direitos sociais, a superação dos obstáculos à democracia e a conquista de um governo de ampla participação popular.

 

Pietro Alarcón, colombiano, é professor da PUC/SP e representante do Comitê Permanente de Colômbia pela Defesa dos Direitos Humanos

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