Correio da Cidadania

Venezuela: à deriva economicamente, o cenário fica perigoso

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No mês passado, teve importante repercussão mundial a entrevista de um professor alemão radicado no México – Heinz Dietrich Steffan – realizada por uma jornalista venezuelana, Deudelis Oviedo, da Rádio Encuentro, no estado de Nova Esparta.

 

Desde as praias da Ilha Margarita, principal componente deste estado insular da Venezuela, Heinz Dieterich fazia diagnósticos e prognósticos apocalípticos sobre a situação do país e especialmente sobre o governo de Nicolás Maduro.

 

“A Venezuela corre perigo de voltar à situação de fins do século 20, esgotada por Caldera (ou seja, desde o Caracazo, 1989, à presidência de Caldera (1994/1999), que marcou o fim da IV República e a ascensão de Chávez. Os tempos se encurtam, os desequilíbrios de cada dia se fazem mais insustentáveis, e se não houver uma viragem em 15 dias, após as eleições municipais (8 de dezembro) se vislumbram novas eleições presidenciais (...) A ninguém convém reeditar os fatos do Caracazo, mas o governo está capitaneando o Titanic. Não vê que está a ponto de bater no iceberg econômico e naufragar os venezuelanos (...) Caso não se dê tal reviravolta no atual modelo econômico, os destinos do bolivarianismo estão perto de terminar como a chamada IV República, o que poderia gerar uma crise que cobre seu preço em sangue (...) O modelo chavista está chegando a seu limite, o barco já fez água... O país navega num Titanic. Prioritariamente, deve resolver o problema do desabastecimento, porque nem o Estado, nem a empresa privada, garantem a demanda no momento. É necessário mudar essas estruturas.

 

Essa análise, algo alarmista, teve grande repercussão. É que não são opiniões da CNN nem do Miami Herald, mas de Heinz Dieterich, que foi criador, em meados dos anos 90, do conceito de “socialismo do século 21”, que Chávez logo adotou – ainda que só no discurso.

 

Muito ligado ao comandante no período de apogeu do chavismo, Heinz Dieterich desenvolveu depois posições críticas, sobretudo em relação à equipe que rodeava Chávez. Mesmo assim, Dieterich seguiu essencialmente no mesmo barco. No site chavista “de esquerda”, Aporrea, vem alertando há tempos que as coisas vão de mal a pior.

 

É difícil opinar sobre o prazo que Dieterich estabelece para o choque entre o Titanic e o iceberg: depois das eleições do próximo mês, segundo ele.

 

Entretanto, os problemas que Dieterich assinala são inegáveis. São os mesmos que marcam muitos economistas marxistas e que também alertamos repetidas vezes na revista web Socialismo ou Barbarie.

 

Um caminho de agravamento dos problemas de fundo

 

“Desde a chegada do bolivarianismo ao poder na Venezuela – sustentava Dieterich em artigo recente – nunca houve nenhuma medida econômica socialista: nem do Socialismo do Século 20, nem do Socialismo do Século 21. O modelo político-econômico desenvolvido por Hugo Chávez depois de 2003 nunca foi mais que um desenvolvimentismo progressista, semelhante ao governo do general Perón. Esgotado já em 2010, entrou na segunda etapa de Perón: a erosão crescente e o caminho até o abismo... Agora toda a fantasia implode”. (Dieterich, “Sólo un radical cambio del modelo económico y del gabinete, salvará al gobierno”, Aporrea, 14/10/2013).

 

O difícil panorama que vive a Venezuela se sintetizaria assim, segundo Dieterich:

 

"Com 49,4% de inflação anualizada, a Venezuela terminará 2013 com uma hiperinflação de cerca de 58%, dado que as eleições municipais de dezembro e o pagamento de bônus adicionais tornarão impossível deter a espiral. Parte do problema é o desmedido aumento da liquidez monetária (monety supply) que cresceu cerca de 66,5%, em comparação com o mesmo período de 2012".

 

"Outro fator é a fuga de capitais, que ronda os 150 bilhões de dólares nos últimos nove anos. O controle do câmbio de divisas só funcionou por volta de 2003. Hoje, asfixia o povo e as classes médias, enquanto transfere cerca de 43 bilhões de dólares preferenciais à burguesia. Esta, agradece o favor da revolução “bolivariana e cristã”, gerando 2,7 bilhões de dólares anuais em compensações (Manuel Sutherland, “Aumento del 894% en importación estatal, caída en las reservas...)".

 

“Tal inflação gera uma taxa de economia zero nos assalariados; a substituição de fato do bolívar por moedas fortes ou metais preciosos; uma baixa taxa de investimento; altas taxas de lucro; lucros monetários desmedidos sobre os diferentes tipos de câmbio (arbitragem); fuga de capitais; escassez de produtos; e, finalmente, uma inevitável e brutal desvalorização de jure (de direito). Pior ainda: tal espiral inflacionária se combina com um crescimento anual do PIB de 1% (CEPAL), menor que o crescimento demográfico. Estamos diante da estagflação, combinação letal da estagnação com a alta inflação.

 

“Diante desse panorama, o aumento de 45% do salário mínimo, anunciado pelo presidente Maduro para 2013, nem sequer compensa a perda da capacidade produtiva dos respectivos trabalhadores. Ao mesmo tempo, o índice de escassez se encontra em 21,2%. A desejada substituição de importações, de industrialização, de soberania alimentar e financeira, ficou essencialmente no campo das boas intenções: as importações estatais cresceram, entre 2003 e 2012, quase 900%, enquanto o peso industrial-manufatureiro no PIB não aumentou (Sutherland); o presidente acaba de autorizar a compra de 3,5 bilhões de toneladas de alimentos, por um valor de 4,6 bilhões de dólares e o custo dos créditos adquiridos pelo Estado e a PDVSA tem uma média de 11,59% anuais: quase o dobro das médias nacionais de desenvolvimento.

 

“Segundo o banco central da Venezuela, suas próprias reservas internacionais em divisas (dólares com os quais se conta para quitar importações e dívida externa) alcançaram a soma de 3 bilhões de dólares em meados desde ano, enquanto que as líquidas (em dinheiro) somam 900 milhões de dólares. Ainda assim, a importação mensal requer uma média de 4,6 bilhões de dólares. Daí, que só uma massiva transferência das contas não orçamentárias, como o Fundo de Desenvolvimento China-Venezuela, novos créditos ou a monetarização das reservas de ouro podem impedir uma moratória nos pagamentos externos”. (Dieterich, Aporrea, cit.)

 

Em resumo...

 

Em resumo, os problemas estruturais não resolvidos pelo chavismo parecem estar chegando a uma conjuntura crítica. É que Chávez não só não rompeu com o capitalismo, mas continuou, sob outras formas, com o modelo rentista-petroleiro que impera na Venezuela há mais de um século.

 

Chávez só modificou a distribuição dessa renda petroleira e mineral. Em uma primeira etapa, isso beneficiou, sem dúvida, amplos setores populares... E também as forças armadas “bolivarianas” e uma nova “boliburguesia”, que encheu os bolsos com negócios do Estado, o que tampouco implicou na velha burguesia opositora ficar na ruína, longe disso.

 

A inundação de dólares em momentos de bonança petroleira não aproveitou para impulsionar o desenvolvimento da produção nacional e agrícola venezuelana (e nem falemos de romper com o capitalismo!). Pelo contrário, os números dizem que com Chávez se aprofundou uma estrutura rentista, de viver de renda petroleira... E importar o resto. Isso foi, paradoxalmente, um fenomenal obséquio à velha burguesia anti-chavista, que sempre viveu de não produzir, mas importar. E fugir com divisas. Também, enriqueceu a nova “boliburguesia”, que meteu as unhas em tudo que pôde.

 

Essa catástrofe se sintetiza em poucas cifras. O crescimento das exportações, de 2003 a 2012, foi de 257%; o crescimento das importações, no mesmo período, foi de 454%. E enquanto “o setor estatal da economia gera 97% das divisas, a totalidade do empresariado só exporta os paupérrimos 3% do total de divisas que entram no país. Porém, nem lerdos nem preguiçosos, nossa classe capitalista, no ano de 2012, importou a bagatela de 43 bilhões de dólares dos EUA”. (Sutherland, cit.)

 

Nota:

 

Ver: Rafael Salinas, "Crisis de la economía y del abastecimiento – Consecuencia fatal de no romper con el capitalismo y de continuar con el modelo rentista-petrolero", Socialismo o Barbarie Nº 249, 16/05/2013.

 

 

Cenário 1

 

Eleições de 8 de dezembro: nova confrontação eleitoral em meio a uma grave crise

 

Os problemas que atravessa a Venezuela têm os cimentos estruturais que comentamos acima. No entanto, se combinam com problemas sociais e políticos que podem dar o tom.

 

No plano imediato, abre-se a interrogação das eleições municipais de 8 de dezembro. Nelas, serão eleitos prefeitos dos municípios e distritos especiais (como o Distrito Metropolitano de Caracas), assim como os representantes dos conselhos municipais e os prefeitos metropolitanos.

 

Normalmente, pelo caráter de tais organismos e seus cargos, deveriam primar candidaturas e fatores políticos locais. Mesmo assim, devido à situação que atravessa a Venezuela, é provável que tendam a se converter, de fato, em um plebiscito pela ratificação ou não de Maduro na presidência. E essa parece ser a aposta, tanto a partir do governo como da oposição pitiyangui* encabeçada por Capriles e a Mesa da Unidade Democrática (MUD).

 

Ainda que a oposição patronal pró-EUA não seja menos caótica que o chavismo, vai jogar tudo no 8 de dezembro para derrotá-lo, e se conseguir por boa margem estarão dadas as condições políticas para reiniciar a campanha pela destituição de Maduro.

 

Efetivamente, se a oposição de direita vencer em grande escala nas municipais, poderá ser questionada a continuidade de Maduro na presidência...  E com mais razão se, como alertam muitos, a diferença superar o escasso 1,7% com que ele se impôs nas eleições presidenciais. Mesmo assim, até agora, não está claro o que vai acontecer no domingo, dia 8.

 

Bonapartismo plebiscitário, sem um Bonaparte de verdade

 

O regime da V República não foi precisamente um regime de “revolução permanente”, mas sim de “votação permanente”. A autoridade do supremo e indiscutível líder – o comandante Chávez – se ratificava vez ou outra com votações que, de fato, direta ou indiretamente, eram plebiscitos. Ou se votava em Chávez ou em algum monstro pitiyanqui inaceitável. Assim, Chávez, seja como líder idolatrado, seja como mal menor, se impunha quase sempre nas urnas. Só perdeu uma votação, o referendo constitucional de 2007, e por muito pouco.

 

Com Capriles, a burguesia “cipaya” e seus patrões de Washington conseguiram, finalmente, por em cena um competidor mais “simpático”. Mesmo que Capriles tenha perdido sua confrontação com o comandante nas presidenciais de outubro de 2012, ficou em condições, após a morte Chávez, de fazer Maduro claudicar nas eleições de 14 de abril de 2013.

 

O fato é que Maduro está a anos luz de chegar a ser um carismático líder como era Chávez... Algo que resulta duplamente necessário em uma situação tão crítica como a atual. Além do mais, a gravíssima crise estrutural que enfrenta é apresentada oficialmente como mera “conspiração”. Os discursos “vermelhos” que isso inspira não se correspondem com nenhum plano econômico revolucionário efetivo, nem medidas sérias contras os capitalistas que enchem os bolsos, por exemplo, com a fuga de divisas.

 

Chávez, o genial líder populista, apresentava um inesgotável repertório. Maduro, que evidentemente tenta imitá-lo, só consegue passar ridículo, algo que não pode se permitir um Bonaparte de verdade.

 

Isso vai desde seus diálogos com o espírito de Chávez, através de um passarinho, até a recente aparição milagrosa do comandante num túnel em construção do metrô de Caracas.

 

Mesmo assim, alguns fatos com Maduro podem voltar como bumerangue. Em meio a sérias dificuldades dos trabalhadores e setores populares, devido à combinação de inflação com galopante desabastecimento, Maduro oficializou, em fins de outubro, a criação do Vice-ministério para a Suprema Felicidade Social do Povo.

 

Dessa forma, dispôs que o Natal começasse na Venezuela, sexta-feira, 1º de novembro, portanto, teríamos festas natalinas durante quase dois meses.

 

Agora, já na corrida pelas eleições municipais de 8 de dezembro, decretou que esse dia será, de agora em diante, o Dia da Lealdade e Amor ao Comandante Supremo Hugo Chávez e à Pátria”. É que 8 de dezembro de 2012 é o dia do discurso de despedida de Hugo Chávez, quando viajou para se operar em Cuba, onde finalmente morreu.

 

Não está claro que uma manobra eleitoreira tão grosseira, de declarar “Dia de Chávez” em 8/12, vai se traduzir em uma montanha de votos ou se será contraproducente.

 

*Pitiyanqui: expressão popular do Caribe muito usada por Chávez, que tira sarro dos “petit yanquis” (pequenos ianques), os serventes e adoradores nativos dos Estados Unidos.

 

Cenário 2

 

Crise política no meio de importantes lutas operárias; necessidades e dificuldades de uma alternativa política independente

 

O que nos parece clara é a necessidade de construir uma alternativa política operária, popular e socialista, que seja absolutamente independente do PSUV chavista e dos pitiyanquis do MUD.

 

Existem bases sociais fortes para desenvolver essa alternativa independente. A classe trabalhadora e operária venezuelana é uma das mais combativas da América do Sul.

 

Nesses últimos meses, uma grande lista de empresas e setores protagonizou lutas importantes, como as do SIDOR (que está, novamente, na luta ao contrariar a empresa nos acordos firmados com os trabalhadores), Alcasa, Venalum, Carbonorca, Civetchi de Carabobo, diferentes sindicatos de professores, Inpsasel, Makro, Iosa, Ferromineros, Cemez, Brahma, Pescalba, Lácteos Los Andes etc.

 

Porém, ao mesmo tempo, a combatividade não resolve sozinha as coisas. Em primeiro lugar, essas lutas não são coordenadas nem unificadas. Mas o mais importante é que existe uma desigualdade enorme entre a combatividade sindical (na qual, inclusive, se expressam frequentemente bandeiras classistas) e a construção de uma alternativa política dos trabalhadores contra as grandes coalizões patronais, encabeçadas pelo PSUV chavista e o MUD.

 

Por razões complexas, essa enorme desigualdade entre o lado sindical (até com importantes expressões e dirigentes classistas, combativos) e o político vem sendo um obstáculo muito difícil de superar.

 

Essa é uma longa história. A bancarrota da velha burocracia da CTV (Confederação dos Trabalhadores da Venezuela), ligada à Ação Democrática (um dos principais partidos da extinta IV República), abriu a possibilidade, na década passada, de uma recomposição não só sindical como também politicamente independente do movimento operário.

 

O chavismo tem a responsabilidade de ter frustrado tal perspectiva. Por trás dos discursos sobre o “socialismo do século 21”, o chavismo combateu implacavelmente toda a mobilização independente sindical e, com mais ênfase, política do movimento operário. Como todos os nacionalismos burgueses – a exemplo do peronismo na Argentina – o chavismo encara como intolerável que a classe trabalhadora não seja submissa sindical e politicamente, que tenha movimentos ou partidos independentes.

 

Agora, o chavismo está em crise com os operários e outros setores dos trabalhadores que antes o apoiavam majoritariamente. Não só decepcionou grande parte deles, como muitas vezes os enfrenta com dura repressão quando fazem reivindicações, em especial setores industriais.

 

Nessa situação, não se desenvolvem alternativas politicamente independentes, existe o perigo de que setores da classe trabalhadora corram atrás dos cantos da sereia de burocratas sindicais herdeiros da CTV, como, por exemplo, a patota de Froilán Barrios, a Frente Autônoma de Defesa do Emprego, do Salário e do Sindicato (FADESS). Esses personagens estão a serviço de Capriles e do MUD. Enfrentá-los politicamente é tão obrigatório quanto enfrentar a burocracia chavista.

 

Nas palavras, certos burocratas afinados ao MUD costumam fazer discursos críticos e até “combativos”, aproveitando que quem governa é o PSUV, e não Capriles. Mas na prática revelam sua natureza. Uma experiência que os desmascara foi a recente e ampla luta dos educadores. Os burocratas sindicais do MUD e do PSUV se uniram para acabar com o movimento, firmando uma Convenção Coletiva Nacional sem consulta alguma às bases de trabalhadores do setor.

 

Para os ativistas e trabalhadores em geral, sair do chavismo e do PSUV para terminar em mãos de burocratas sindicais amigos de Capriles e do MUD é como sair da frigideira e cair no fogo.

 

Nota:

Flora Kessler, "Victoria de los trabajadores de SIDOR contra el estado patrón", Socialismo o Barbarie, Nº 264, 03/10/2013.

 

Roberto Ramírez é editor de Socialismo o Barbarie, revista internacional da web.

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