As correntes invisíveis da escravidão

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Ronnie Huete Salgado
24/05/2013

 

 

 

A teoria de como libertar a nação latino-americana de Honduras da ditadura narcoestatal em que se encontra prostrada e o resumo nas eleições democráticas com a participação de nove partidos políticos, cujos cantos demagógicos começam a soar. Porém, um hondurenho descreve a falsidade deste discurso banal.

 

As disposições na construção de uma Honduras livre das correntes invisíveis da escravidão moderna estão concentradas nos discursos sedentos de água para aliviar a sede dos pobres com propostas coerentes, e não decoradas com demagogia.

 

Mas a sede da pobreza, na essência, quem a conhece não são seus políticos da bruta direita ou da burocrática esquerda. Recentemente conheci “Miguel”, cujo nome real não revela por razões de segurança.

 

Miguel vende pão há 30 anos, atualmente tem 49 anos de idade, é pai de família de quatro filhos, jovens desempregados que aguardam pacientemente a chegada de seu pai, todas as tardes, quando o calor avassalador deste verão infernal acalma sua fúria.

 

Sua casa está protegida por quatro cães de guarda que quando sentem o seu cheiro saem latindo de alegria para recebê-lo. São cinco da tarde ainda e o suor que expele o corpo de Miguel transmite a fadiga provocada por caminhar a pé por vários bairros de Tegucigalpa, levando consigo várias caixas cheias de pão para vender.

 

Sim, a venda de pão é assim, comenta Miguel, antes de me dar um saco de semitas que gentilmente compartilhou comigo para continuar a conversa agradável.

 

Cidade Perigosa

 

"Miguel" vive no sopé do pico onde se dividem as grandes montanhas florestadas de miséria, e muito poucos  edifícios estofados pelo luxo do sangrento capitalismo. "Miguel" vive especificamente no distrito "José Simón Azcona", que faz fronteira com o popular bairro Canaã e El Reparto, mais acima. Setores catalogados de extremo perigo na Tegucigalpa deste século, intitulada como uma das cidades mais perigosas do mundo.

 

O nome do bairro onde vive Miguel homenageia um ex-presidente hondurenho de ascendência espanhola, que muito contribuiu para as grandes desigualdades humanas que existem nesta segunda década do século XXI, e cujos descendentes "azcona" seguem os mesmos passos de exploração e sobrevivência de fundos públicos.

 

Miguel me convidou para sua casa. Muito feliz, me disse que tinha feito alguns reparos no telhado e que  já tinha paredes onde habitar, já que antes era uma semi-cabana que havia construído e agora recentemente reformou.

 

O amável senhor, cuja pele queimada pelo sol tem proporcionado uma forte resistência de vida que só ele pode descrever, comenta que a chuva é uma bênção de Deus, mas que anos atrás, por não possuir um teto, parecia o contrário, uma vez que seus filhos estavam padecendo de doenças que só a miséria pode provocar.

 

O sabor da comida


Miguel me apresenta a sua esposa, que alegremente me cumprimenta, aperta a minha mão com uma força que só a dureza da vida pode brindar. “Maria”, como é chamada por segurança, me pergunta se tenho fome e antes da minha resposta me serve em um prato plástico feijão, arroz e um copo plástico de café; “coma” me disse, “sinta-se em sua casa”.

 

Os filhos e filhas de “Miguel” são jovens adultos, todos graduados, com muitas aspirações e sonhos que parecem inatingíveis na apresentada Honduras, cuja moderna ditadura se encarrega de assassinar aqueles que lutam pela liberdade e contra as correntes invisíveis da escravidão.

 

Miguel é tapeceiro de profissão e seus filhos também; imediatamente, me mostra as magníficas obras de arte que foram construídas graças ao gênio criativo que possui e os grandes esforços feitos para comprar a matéria-prima.

 

Para fabricar estes móveis, comenta Miguel, às vezes, comemos menos vezes, mas quando vendemos um deles, disfrutamos mais o sabor da comida, que surge a partir do esforço que fazemos.

 

Seus filhos descrevem que, às vezes, mostram os móveis na rua, para expô-los e vendê-los,  pois a área onde vivem não permite conseguir clientes.

 

Lacaios de Ricardo Álvarez

 

Mas os últimos dias de de “feira” têm sido marcados por ameaças do prefeito municipal, que é responsável por expulsar qualquer vendedor à procura de trabalho.

 

Sim, quem busca trabalhar, e não delinquir, como muitos de funcionários públicos fizeram, com uma impunidade infinita e apoio da sociedade burguesa, acostumada a semear o medo e terror através do crime organizado e tráfico drogas, que são os verdadeiros governantes de Honduras.

 

“Miguel” compartilha que a humildade e a paz são valores que devem prevalecer entre os humanos, porque a vida é de resistência. “Miguel” e “Maria” incutem em seus filhos o trabalho, além da descrença nos discursos vazios dos políticos, que agora disfarçados em uma falsa esquerda só conhecem a resistência ou a revolução através das luxuosas viagens que realizam ou nas conversas que desenvolvem junto com a extrema-direita para “salvar Honduras”.

 

Essas viagens financiadas pela cooperação internacional ou pelo próprio governo de Porfírio Lobo Sosa, fazem que seus discursos possam se ouvir até da América do Sul, cujo contexto apregoa a "revolução" e a miséria que eles desconhecem, mas que bem alardeiam para viverem e comerem dela.

 

A arrogância que caracteriza tais personagens nesta pseudo-esquerda de Honduras é apenas digna de pena, diante da verdadeira revolução e resistência de hondurenhos pobres que lutam para sobreviver diariamente.

 

Animais de casco

 

Convido estes pseudo-revolucionários a conhecerem a essência dos bairros onde realmente se desata a luta de classes, e não a politicagem comercial que lhes permite frequentar os altares do comércio e do consumismo que eles mesmos criticam em seus discursos, mas no fundo desfrutam em suas casas.

 

O mais digno que podem fazer certos "animais com casca" que alimentam da esquerda hondurenha há décadas é se aposentarem, ou terem a dignidade de não mencionar pobreza ou miséria para saciar sua fome de poder, porque depois tornam-se iguais ou piores do que a atual direita fascista.

 

Miguel é desinteressado da política, diz que nunca votou, mas que acredita na luta real que lhe faz suportar a vida que oferece a segunda nação mais pobre da América Latina.

 

Os filhos de Miguel foram desalojados em frente à embaixada de Taiwan, situada nas colinas do seixo; os lacaios do ineficiente e infame prefeito da capital hondurenha, Ricardo Alvarez, foram enviados para combater os pobres, executá-los e aproveitar os móveis fabricados para vender.

 

Mas graças à intervenção de alguns jornalistas independentes estrangeiros, e um hondurenho, os jovens puderam conservar seus trabalhos de tapeçaria.

 

Terras inseguras


Essa é a revolução diária que empreendem os desempregados, sem dinheiro, cansados de serem explorados e agora enfrentando o inimigo cara a cara, sim, essa burguesia inculta terrorista, capaz de matar para manter ou aumentar sua ambição de poder.

 

Sim, essa oligarquia que enamora os pseudo-revolucionários com um pouco das migalhas que caem da mesa do poder que lidera.

 

A conversa com “Miguel” era longa, a noite caiu rapidamente em Tegucigalpa, o que me impossibilitou de sair da casa de Miguell, já que o crime anda livre no bairro em que vive, levando guerra diária para o controle total da área.

 

Os disparos fazem parte do som comum durante a noite e de madrugada, diz “Miguel”, e ao amanhecer é normal ver um dos três veículos que possui o necrotério judicial, para levar os mortos que amanhecem em terras inseguras.

 

Dificilmente se pode falar de paz em um país onde a criminalidade se prolifera em cumplicidade com as autoridades; não podemos falar de paz onde o estômago é subjugado pela fome; é impossível falar de paz onde não há trabalho; é proibido falar de paz para aqueles que querem gerar seu próprio trabalho, porque eles são submetidos à crueldade da tortura pública; é impossível falar de paz em que o direito à educação não é respeitado; não podemos falar de paz em morros cujo ambiente é dominado pela pobreza total. Muitos enchem a boca dizendo que a luta deve ser pacífica, no entanto, tal palavra é um antônimo do que se vive.

 

Leia também:

O pranto da injustiça


Este artigo é parte de uma série de trabalhos independentes realizados pela América Latina pelo jornalista Ronnie Huete Salgado, que desenvolveu uma investigação em silêncio em setores perigosos de Tegucigalpa e Comayagüela. A capital hondurenha é classificada como uma das cidades mais perigosas do mundo.

Nota do autor do texto: qualquer atentado ou ameaça ao autor do artigo é responsabilidade de quem representa e governa o Estado de Honduras ou de seus invasores.

Traduzido por Daniela Mouro, Correio da Cidadania.

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