Correio da Cidadania

Fórum de São Paulo: balanço de Caracas

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No último dia 6, se encerraram em Caracas as deliberações do Fórum de São Paulo (FSP). Não seria nenhum exagero se disséssemos que foi o encontro mais concorrido e variado do Fórum desde a sua criação, na cidade de São Paulo, em 1990. Muitos partidos e movimentos sociais da América Latina e Caribe se reuniram nesta cidade, com um contingente significativo de organizações irmãs da Europa, África e Ásia.

 

O balanço final do conclave é em certo sentido positivo, embora em alguns aspectos, os quais veremos a seguir, há muita coisa para melhorar. Positivo porque o grande evento reuniu um grande número de partidos e movimentos que foram capazes de trocar pontos de vista, comparar experiências e fazer uma necessária aprendizagem, rica e mútua. Positivo também porque diante do conhecido ecletismo ideológico do Fórum – do qual participam partidos que só na imaginação poderiam ser classificados como de esquerda – o discurso de encerramento pronunciado pelo comandante Chávez estabeleceu uma nova agenda, que os partidos e organizações do FSP deveriam considerar com muito cuidado em seus próximos encontros.

 

Em primeiro lugar, perguntando, como fez Chávez citando uma passagem da obra de Marx, sobre o caráter e a natureza da transição que substituirá o capitalismo por um novo tipo histórico de sociedade. Porque, além da necessária crítica ao neoliberalismo e sua pesada herança, o problema é o capitalismo, o que há para superar e subverter é o capitalismo. Ou será que as lutas lideradas por nosso povo, com os seus sacrifícios tremendos e suas milhares de vida oferecidas para construir uma sociedade nova foram só para passar do neoliberalismo ao keynesianismo, ou ao desenvolvimentismo, ou à miragem do capitalismo "verde"? Com seu questionamento astuto, Chávez observou algumas fraquezas teóricas da Declaração de Caracas aprovada pelo FSP.

 

Em segundo lugar, continuando com o mesmo raciocínio, alertou que o socialismo não cai do céu como um produto do determinismo econômico, como sugerido por Edouard Bernstein no final do século XIX, mas pela intervenção do plural e heterogêneo sujeito revolucionário. É claro que para atender às necessidades da práxis esse assunto deve se tornar consciente, educado e organizado. E completou seu pensamento incisivo com uma pergunta: o que farão depois as forças sociais que foram para Caracas, ao retornarem para seus países? Como organizar suas lutas, qual é o plano de batalha que assumirão, quais são as responsabilidades na execução da mesma? Questões não só relevantes, mas urgentes, porque a burguesia, as oligarquias e o imperialismo não só têm seus fóruns – o mais importante o de Davos – mas também dispõem de instâncias que organizam suas forças, planejam e coordenam suas batalhas, tanto na arena global como nos espaços nacionais.

 

Nossos inimigos não só deliberam, mas agem de forma organizada. Não se pode conseguir êxito apenas com belos discursos. Este, acreditamos, é um dos principais temas pendentes, não só do FSP, mas também de sua organização irmã, o Fórum Social Mundial. Diante de uma burguesia imperial e seus aliados locais fortemente organizados, não podemos opor apenas a abnegação militante e o grito que denuncia a desumanidade do capitalismo, ignorando alegremente a problemática decisiva da organização.

 

As declarações adotadas em Caracas condenam as tentativas de golpes contra Evo Morales, Mel Zelaya, Rafael Correa e a mais recente contra Fernando Lugo. Esquecido de anotar, lamentavelmente, o golpe perpetrado contra Jean-Bertrand Aristide no Haiti, no ano de 2004. Falha grave porque não se pode dissociar essa negligência infeliz da presença de tropas de vários países latino-americanos – Brasil, Chile, Argentina, entre outros – no Haiti, quando na realidade o que falta nesse país sofrido são médicos, enfermeiros, professores. Mas disso se encarrega Cuba, cujo generoso internacionalismo é um dos sinais mais honrosos da sua revolução.

 

Por outro lado, teria sido útil se a declaração de um fórum de esquerda tivesse exigido o fechamento das bases militares (46!) – na última contagem do MOPASSOL (Movimento pela Soberania, Paz e Solidariedade entre os Povos) – que se estendem por toda a América Latina e Caribe. Embora Washington não mude a sua postura beligerante, uma exigência unânime respaldada por mais de uma centena de partidos políticos, incluindo vários governos, teria ajudado a enfatizar aos olhos da opinião pública latinoamericana e estadunidense as ameaças que envolvem a presença destas bases em Nossa América.

 

O mesmo cabe dizer em relação à afirmação que assegura que nossa região é uma zona desnuclearizada. Isto era verdade até antes da assinatura do tratado Uribe-Obama; agora não sabemos porque ninguém, exceto a Casa Branca, sabe que tipo de armas – nucleares ou não – o Pentágono apresentou na Colômbia, uma vez que depois do tratado esta renunciou ao seu direito de inspecionar os carregamentos que entram e saem de seu território.

 

Por último, a declaração fala de “progressos limitados dos acordos bilaterais de livre comércio”.

Acreditamos que esta redação é infeliz, como evidenciado pela experiência mais madura na área: o caso mexicano. Antes de assinar o Tratado de Livre Comércio (TLC) com os Estados Unidos e Canadá, o México era auto-suficiente em alimentos; hoje, após 18 anos de "livre comércio", tem de importar 42% dos insumos necessários aos alimentos. Antes, sua despesa com importação de alimentos era de 1,8 bilhão de dólares; em 2012, serão de cerca de 24 bilhões da mesma moeda. Não parece tanto um "sucesso".

 

Finalmente, não se entende como as autoridades do FSP negaram o direito à palavra – e não apenas a entrada na Marcha Patriótica como uma organização política afiliada ao Fórum, apesar de todas as garantias apresentadas pelos partidos políticos, dentro e fora da Colômbia! – à senadora Piedad Córdoba, uma das principais figuras na política latinoamericana e considerada mundialmente como uma candidata merecedora do Prêmio Nobel da Paz, por seus esforços incansáveis em facilitar a libertação de reféns mantidos pela guerrilha e uma solução política para o trágico conflito na Colômbia.

 

Além dos relatórios sobre a situação dolorosa em seu país, Córdoba denunciaria a ameaça de morte mandada por escrito, apenas dois dias antes, contra treze membros de várias organizações de direitos humanos. Sofismas legalistas, inadmissíveis em uma entidade que diz ser de esquerda, nos privaram de ouvir seu testemunho, o que não passou despercebido pelo presidente Chávez. E o mesmo foi feito com o Liberdade e Refundação (FREE), um partido que representa melhor do que qualquer outro a resistência a Porfirio Lobo, cujo triste recorde em termos de assassinato de jornalistas (24 a contar da ocorrência do golpe), mais os inúmeros crimes e prisão de agricultores e ativistas, merecia do FSP um gesto, mesmo elementar, de solidariedade, sendo que um de seus líderes, Rafael Alegria, estava entre nós. Teremos que lutar para que as exclusões não se repitam no futuro.

 

O que se pode concluir a partir dessas linhas é que se deve abandonar o triunfalismo que por vezes saturou as deliberações do fórum e avançar na constituição de um espaço de discussão fraterna, mas profundo, sem concessões e seguro de qualquer tipo de burocracia ou formalismo que o asfixie. Discussão um tanto mais importante à medida em que se supõe que a missão do FSP é mudar o mundo, e não apenas interpretá-lo (ou lamentá-lo). E mudar o mundo na direção do socialismo exige clareza teórica, porque "não há prática revolucionária sem teoria revolucionária." E os tempos exigem a gritos uma revolução.

 

Convém lembrar, para os espíritos mais comedidos e moderados que circularam pelo FSP o que disse Walter Benjamin: a revolução não é um trem desgovernado, mas a aplicação dos freios de emergência. O trem desgovernado que está caminhando para o abismo é o capitalismo. E se não for freado a tempo a humanidade vai sofrer as consequências irreparáveis ​​desse desastre. Não há nada pior do que um tímido motorista que hesita em aplicar os freios de emergência. Em um tempo que é necessário, como Danton disse, "audácia, audácia e mais audácia", a moderação está longe de ser uma virtude e se torna um pecado mortal.

 

Atilio Borón é doutor em Ciência Política pela Harvard University, professor titular de Filosofia da Política da Universidade de Buenos Aires e ex-secretário-executivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO).

 

Website: www.atilioboron.com.ar

Tradução: Daniela Mouro, Correio da Cidadania.

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