Festas e fatos no bicentenário chileno

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Marcelo Luis B. Santos
04/09/2010

 

Para um estrangeiro residente no Chile é muito interessante viver este ano de celebração nacional: 18 de setembro de 2010, o bicentenário da independência em relação à colônia espanhola. Existe no ar uma inquietação, uma busca por identidade nacional, um misto incongruente de incluídos acomodados e marginalizados perturbados. É uma reflexão coletiva que transparece por vezes de forma orgânica, por vezes sistematicamente dirigida pelos meios de comunicação e governo que me lembra os 500 anos da "descoberta do Brasil" ou "invasão", como bem nos lembravam os grupos indígenas.

 

No entanto, o clima de euforia que se configurava até meados de janeiro deste ano aqui no Chile está sendo constantemente revisado: a coalizão da Concertación, supostamente de esquerda, havia 20 anos no poder, perdeu as eleições – ou seja, toda a turma que planejou as festividades terá de ver os eventos da platéia e aplaudir com sorriso amarelo; o terremoto de fevereiro alterou sobremaneira o orçamento das atividades, além de questionar o otimismo até então incondicional da coletividade nacional; e agora estão 33 mineiros presos a 700 metros de profundidade no norte do país, enquanto, no sul, 32 prisioneiros mapuche (1), em greve de fome há 50 dias, já começam a ter sinais de debilitamento gravíssimos sem resposta dos governantes – menos ainda dos meios de comunicação de massa, que não deixam passar uma nota sequer sobre a greve que está a ponto de tirar a vida destes presos políticos.

 

Arrisco-me a dizer que estes eventos dizem muito mais sobre o país do que uma dúzia de paradas militares nos parques e umas dezenas de shows musicais com badalados apresentadores de televisão e estrelas pop do reggaeton (2).

 

No ano de seu bicentenário, o Chile tem estado no olho da mídia por eventos que aparentemente não têm muita relação com a celebração dos colonos, tais como o terremoto e os mineiros. Esses holofotes tresloucados ajudam a refrescar a consciência de que os tais 200 anos são parte da história e não a história completa da identidade nacional. O cobre, os terremotos e os mapuche já estavam nestas terras muito antes.

 

Assim como o terremoto uniu o país na idéia de reconstrução, persistência, solidariedade, os mineiros presos remetem à fundação econômica do país em cima da exploração de suas riquezas naturais – com todos os prós e contras desta opção econômica –, relação reforçada no imaginário nacional a cada vez que se propaga o slogan Chile, país de mineiros, que aparece com freqüência nos meios. É a história, recorrente na América Latina, dos grandes capitalistas internacionais que financiam a exploração mineral com mão-de-obra barata – muitas vezes próxima da escravidão – e, principalmente, descartável, em conluio com a burguesia nacional e com a conivência de um Estado apático – como fica em evidência no caso dos mineiros presos a 700 metros de profundidade em uma mina sem condições de segurança nem via de escape.

 

Assimetricamente ao bafafá midiático na exaltação de uma esperança hipócrita e tecnocrática pela saúde e vida dos mineiros, o implacável silêncio dos mesmos meios sobre a desesperada greve de fome mapuche revela a marginalização extrema a que são submetidos estes habitantes originários da terra, que hoje sobrevivem e mantêm sua identidade a duras custas em um sistema que há 500 anos tenta ativamente extirpá-los. O que estes 32 presos políticos querem, nesta iniciativa específica, não é nenhuma revolução, reforma agrária ou dinheiro. Nem mesmo pleiteiam sua liberdade de forma explícita. O que querem é a restituição de seus direitos mais fundamentais:

 

  1. O direito de serem julgados por tribunais civis e não militares (em alguns casos, há julgamento duplo pelo mesmo ¨crime¨);
  2. O abolimento de testemunhos ¨sem rosto¨;
  3. Fim do enquadramento do ativismo mapuche na Lei Antiterrorista criada durante a ditadura e que agora serve de subterfúgio jurídico para a discriminação e a criminalização de alguns movimentos sociais, em particular o movimento mapuche.

 

Será uma vergonha para o povo chileno, que justamente celebra sua independência dos espanhóis neste ano, compactuar com o pacto de silêncio que se faz entre mídia e Estado ao grito de justiça de um povo guerreiro que neste momento se mobiliza, com o que talvez seja sua última arma – o próprio corpo – para lutar por um direito mínimo: ser tratado como um civil. Dê-se-lhe o nome de mapuche ou chileno.

 

Notas:

 

1 - Nação originária que nunca se entregou nem se integrou de forma definitiva à sociedade colonial. Persistem lutas sociais e repressão policial e militar muito criticada pelos movimentos de defesa dos direitos humanos. A questão mais importante é a fundiária, os conflitos com os grandes proprietários de terra, usinas termoelétricas, madereiras e afins.

 

2 - Ritmo contemporâneo latino-americano muito popular entre a população jovem.

 

Marcelo Luis B. Santos, que reside no Chile, é jornalista.

 

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