Haiti: a narrativa dos sobreviventes

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Maria Clara Lucchetti Bingemer
03/02/2010

 

Muito difícil escrever sobre a tragédia do Haiti depois de sobre o tema já haver rolado tanta tinta. Difícil e quase impossível para quem não esteve lá, não viveu o pavor de ver o chão dançando macabramente sob os próprios pés. Nem viu desmoronar tudo que se parecia a abrigo, sepultando seus entes queridos. Nem sentiu depois de dias de sofrimento terrível, sem alimento e sem água, o desespero de não poder resgatar os corpos dos desaparecidos.

 

No entanto, apesar da dificuldade, encaro o desafio de escrever um texto mais. Melhor: de aceitar ser escriba dos verdadeiros narradores sobre o que se passa no Haiti, aqueles cuja fala é feita de olhares esgazeados, rostos empoeirados e feridos, corpos emagrecidos e maltratados. Essas pessoas de idades várias e diferentes situações nos contam uma história que me parece mais importante do que as elucubrações ideológicas e as teorias de conspiração. A história da vida e sua força e teimosia.

 

No dia 18 de janeiro, portanto uma semana após o terremoto, uma mulher de 62 anos, a alemã Nadine Cardos-Rield, de 62 anos, foi localizada e retirada dos escombros após enviar um SMS pelo celular. Estava desidratada, mas ilesa. No dia seguinte, uma haitiana septuagenária, Anna Zizi, saiu viva dos escombros da catedral de Porto Príncipe graças a bombeiros mexicanos que conseguiram dar-lhe água através de um tubo antes de proceder, com sucesso, a seu resgate. No dia 20 de janeiro, após sete dias sem comer nem beber, foi a vez de Elisabeth, um bebê de apenas 23 dias, ser encontrada sob os escombros de sua casa por voluntários franceses, alertados por sua mãe em desespero. Dois dias depois, Maria Carida Roman, de 84 anos, saiu com vida, resgatada por amigos das ruínas da própria casa.

 

Os sobreviventes que tanto resistiram à morte, abrindo brechas para a vida onde esta pareceria humanamente impossível, pertenciam às categorias mais indefesas e desprotegidas da humanidade. Eram em sua maioria mulheres, idosas ou bebês. As forças que lhes faltavam foram compensadas pela vontade de viver, que resistiu e terminou por emergir, fraca e combalida da provisória sepultura onde a tragédia os havia depositado.

 

O recorde, no entanto, até agora, pertence a uma adolescente de 16 anos: Darlene Etienne, encontrada viva em Porto Príncipe, capital do Haiti, a 27 de janeiro, portanto 15 dias após o terremoto. Resgatada por vizinhos e voluntários franceses, a jovem estava em estado de desidratação extrema. Talvez tenha sobrevivido bebendo água de uma torneira que se encontrava no banheiro de sua casa, onde jazia soterrada há duas semanas, desafiando todas as probabilidades e previsões. A equipe médica que cuida de Darlene não explica o acontecido que desafia a ciência e a biologia.

 

Tal como os demais sobreviventes, Darlene é testemunha de que a vida é um dom frágil e ameaçado. E a qualquer momento pode ser varrida por ciclones, inundações, tsunamis, abalos sísmicos de toda espécie.

 

Em meio ao horror da tragédia, no entanto, o rosto de Darlene e dos outros improváveis sobreviventes nos diz que, para além de sua fragilidade, a vida é santa, pois encontra sua fonte ali onde ciência e probabilidades não alcançam. Como tal, deve ser cuidada antes que as tragédias aconteçam. Oxalá a narrativa dessas testemunhas que voltaram da morte nos ajude a construir não apenas para o Haiti, mas para todas as regiões do planeta onde a injustiça tem feito à vontade seu devastador trabalho, um futuro mais digno.

 

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