O Fracasso da esquerda chilena

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Marcelo Santos
22/01/2010

 

Cheguei para viver no Chile há pouco mais de ano e meio, sem conhecer politicamente o país para além de algumas leituras e orelhadas dos comentários de bons amigos jornalistas. Qual não foi meu espanto perceber que o país tinha uma característica neoliberal e uma influência estadunidense bem maior do que eu poderia ter previsto, apesar de ter eleito ininterruptamente, ao longo de 20 anos, governos da aliança de esquerda – a chamada Concertación. Aylwin, Frei, Lagos e Bachelet foram os nomes que lideraram estes anos e que fracassaram rotundamente em realmente construir uma política socialista estruturada.

 

Algumas hipóteses

 

Muitos reclamam que em quatro anos não se constrói um país, não se muda nada, mal se consegue estruturar para que o time funcione e já chegam as próximas eleições. Bom, para começo de conversa, os mandatos oscilaram entre 4 (Aylwin e Bachelet) e 6 anos (Frei e Lagos). O que dizer do mandato acumulado de 20 anos? Não é suficiente? Quais são as amarras? Não há vontade política?

 

O fim da ditadura chilena foi marcado por um pacto em que a esquerda cedeu mais do que devia no afã de acabar com o regime de facto. Os primeiros anos de democracia foram pautados pelo estado de permanente tensão com o comandante em chefe Pinochet como mandatário das Forças Armadas chilenas. O cenário era de terror: qualquer passo em falso e a ditadura se restabeleceria. Em duas oportunidades o ex-ditador (ex?) convocou as forças armadas aos quartéis do país – cuartelazos – em demonstração explícita de poder e ameaça presente de retrocesso na chamada ‘transição democrática’.

 

Seguindo a máxima de Foucault – a sociedade é mais vigilância que punição – os concertacionistas entenderam que, com ou sem faixa de presidente, não se daria um passo sem a condescendência da direita, ou melhor, sem o visto do general.

 

Além disto, vigora até os dias de hoje a Constituição de 1980, elaborada durante a ditadura, que previa, na contramão de uma inspiração propriamente democrática, a proibição de voto de chilenos que vivem no estrangeiro, o sistema binominal de votação e a nomeação de senadores vitalícios e designados. O que significa isso? Os cerca de 800 mil chilenos que vivem fora do país e descendentes, em sua vasta maioria simpatizantes de esquerda – boa parte saiu como exilado político durante a ditadura. Estes votos não são permitidos. Até um tempo atrás, quem não morasse no Chile ao menos por um ano e meio sequer poderia ser considerado cidadão chileno, não importando a filiação!

 

Já o sistema binominal é a expressão máxima da arquitetura de manutenção de poder: nas eleições parlamentares, ganha sempre um representante da aliança política mais votada e um representante da segunda aliança política mais votada, garantindo a presença de elementos que não representem a maioria, em geral um de esquerda (Concertación) e um de direita (Alianza), salvo quando um dos "pactos" obtenha mais que o dobro de representatividade que o segundo pacto mais votado, o que ocorre com rara freqüência. A conseqüência prática é que se há mantido um balanço de meio a meio dos representantes parlamentares eleitos durante estes 20 anos, independentemente da real representatividade da votação – nestes termos, portanto, privilegiando a direita.

 

Por fim, os famosos senadores vitalícios e designados – entre os quais o chefe da polícia (Carabineros) e os três comandantes das forças armadas – somavam 9 pela Constituição original – composição que permaneceu até a reforma constitucional de 2005 – enquanto os eleitos somavam 38. Considerando que qualquer alteração constitucional deveria, de acordo com aquela Constituição, ser realizada com a concordância de 4/7 dos parlamentares, existe uma inércia descomunal para mexer na Constituição, brilhantemente arquitetada pela ditadura.

 

Ao aceitar esta Constituição, na esperança de que acabara com a ditadura no país, os democratas se impuseram um regime engessado nos moldes que interessavam à oligarquia militar e seus aliados. Tanto foi que em 20 anos não conseguiram sequer eliminar o dízimo do cobre cobrado pelas forças armadas. E há gente que diz que acabou a transição e que o Chile é o país mais democrático da América Latina...

 

Algumas conseqüências

 

Como conseqüência deste panorama está o completo descrédito da esquerda como tal e o desgaste da idéia de ‘socialismo’, posto que não creio que a história tenha visto um governo socialista tão neoliberal por tanto tempo. O Brasil, neste caso, vai na cola. A direita, há muitos anos, se apóia, curiosamente, na idéia de ‘mudança’ como contraposição à esquerda – Piñera se elegeu com o slogan "Some-se ao cambio".

 

É uma contradição explícita e uma falácia semântica, pois o cambio a que se propõe a direita é simplesmente uma alternância no poder, já que a principal característica de seu projeto é manter as coisas como estão, em termos estruturais – economia, políticas sociais, relações trabalhistas, questão agrária etc. Claro está que vão destruir alguns projetos sociais da Concertación e fomentar ainda mais as políticas neoliberais, estabelecer pactos com os conservadores Uribe e García, reforçar o alinhamento com os Estados Unidos, além de – e como conseqüência – retrair a aproximação com a Unasul e MERCOSUL.

 

O que é fundamental observar, no entanto, é que com 20 anos de brigas médias e pequenas, ao não lograr reformas estruturais de peso, a Concertación deixa um legado frágil de políticas assistencialistas, enxertos constitucionais e remendos socialistas a uma fundação sólida neoliberal e excludente, e agora quem assume o leme é um dos maiores milionários do Chile, empresário, dono de rede de televisão, grande acionista da Lan Chile (25% das ações) bem como de inúmeros outros negócios. O mesmo que já foi condenado, por exemplo, por não abster-se de comprar ações da Lan Chile mesmo que contasse com informação privilegiada, quando já era senador, sendo punido com... uma multa!

 

Nestes dias que seguem sua eleição, as ações de sua empresa Axxion (holding que controla seu império) subiram mais de 40%, denunciando nas entrelinhas a expectativa da sociedade de que o círculo de negócios piñerista seja privilegiado no futuro próximo. Chega-se ao cúmulo de eu ter recebido uma denúncia de um investidor simpático à Concertación que, indignado, contou que o gerente do banco aconselhou-o a votar por Piñera porque os negócios seriam melhores para ele. É neste clima cara-de-pau que parte dos votantes admite indiretamente que seu voto teve sabor de interesse individual e mercantil.

 

Lição para a América Latina

 

O fracasso da esquerda chilena e a derrota nestas eleições provam que política se faz, sim, com paciência, mas não com medo e muito menos comodismo. As bandeiras da Concertación foram sendo derrubadas uma a uma e o país não logrou alterar o rumo econômico, social, político e cultural nem com 20 anos de prazo.

 

Detrás das aparências primeiro-mundistas dos belos bairros jardim perto da cordilheira ou dos prédios espelhados de ‘Sanhattan’ – a Manhattan santiaguenha – existe uma tensão constante e um recrudescimento das relações sociais, dos conflitos de classe, do conflito indígena.

 

Escondido no silêncio das multidões excluídas, reside um ressentimento contido pelo respeito-medo das fortes instituições – de caráter todavia militar – de manutenção da ordem no país. Por la razón o la fuerza, como nos recordam diariamente as moedas de pesos chilenos e as táticas repressoras da polícia contra manifestações de estudantes, contra os povos indígenas no sul, contra os sem teto de Santiago.

 

À esquerda chilena resta, como se tem dito por aqui com certa constância, reinventar-se. É difícil predizer as conseqüências desta virada à direita para o Chile e sabe-se lá quando a esquerda voltará ao posto máximo e, talvez mais importante, como.

 

Alguns julgam que joga a favor o fato de que Piñera é um sujeito patético, mas para um mundo que acaba de se livrar com muito custo da família Bush eu não apostaria minhas fichas nesta observação personalista, por mais que concorde com o adjetivo. O que me parece fundamental e urgente é observar o quadro atual de frustração popular nos países em que a esquerda é rosa.

 

Talvez seja uma boa oportunidade para, em ano de eleições, aqueles que se definem como ‘esquerda’ no Brasil reavaliarem sua postura, seu modus operandi. Afinal, se a esquerda continuar morna no poder – ou se continuar a esquerda morna no poder – precisaremos de 20 anos para colocar um Berlusconi no Planalto?

 

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