Correio da Cidadania

A Venezuela na encruzilhada

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I.

 

Às vésperas da eleição parlamentar na Venezuela, o panorama para o governo não era alvissareiro. A inflação é estimada em 150% segundo dados não oficiais, há problemas de desabastecimento em vários setores, o desajuste cambial decolou e o Fundo Monetário Internacional visualiza uma recessão para o país em torno a 10%.

 

Em termos estruturais, estes problemas remetem ao descolamento entre o padrão de consumo, mediado por importações subsidiadas pelas receitas petroleiras, e a base produtiva do país, situação descrita por Furtado como "subdesenvolvimento com abundância de divisas". No plano conjuntural, diante de um câmbio fixo sobrevalorizado, o preço do dólar no câmbio paralelo arrancou de 12 bolívares em outubro de 2012 para atingir o pico de 88 bolívares no final de fevereiro de 2014. Este salto esteve vinculado a uma escassez de divisas, associada ao incremento nos gastos públicos a partir de 2010 frente a uma sequência de disputas eleitorais, que acabaram por consumir as finanças públicas e a saúde de seu líder máximo.

 

No segundo semestre de 2015, explodiu a diferença entre o câmbio oficial, congelado em 6,30 bolívares e o paralelo, que ultrapassou 800 bolívares. Esta disparidade converteu-se em um impulso irresistível à especulação, que se materializa de variadas maneiras e escalas. No varejo, o empenho do governo em preservar o subsídio aos itens de primeira necessidade impulsiona o contrabando, principalmente, mas não exclusivamente, na direção da Colômbia. Em escala maior, registram-se controversas manipulações contábeis de grandes empresas, que têm gerado constantes atritos com o governo. Mais grave para a legitimidade do processo, há evidências de variadas situações de corrupção envolvendo o funcionalismo público.

 

O descolamento entre as taxas cambiais combinada a uma inflação ascendente tem resultado em uma dolarização do preço de itens importados. Assim, um vidro de ketchup marcado a seis mil bolívares corresponderia a quase mil dólares ao câmbio oficial. O outro lado desta situação é a desvalorização real dos salários, acentuada na comparação com atividades que envolvem o acesso a dólares: quem vende um tanque de gasolina venezuelana na Colômbia por dia ganha mais do que um professor universitário.

 

A conjunção entre a difusão da referência ao dólar e a queda no poder de compra dos salários, a despeito de seguidos aumentos concedidos pelo governo, tem constrangido os venezuelanos a buscarem dólares para subsistir. Assim, de uma situação em que os proprietários maiores e menores manejavam a crise como uma oportunidade mercantil, transitou-se a uma realidade em que muitos complementam a renda, ou até mesmo deixam seus trabalhos em busca de divisas, objetivando defender seu padrão de vida.

 

II.

 

Assumindo o princípio de preservar as conquistas sociais do processo, o governo resiste às pressões por reforma econômica, receando os custos sociais das alternativas que se vislumbram, todas de corte antipopular. Porém, diante da progressiva degradação das condições cotidianas dos venezuelanos, observadores simpáticos ao processo questionam se o desgaste político em curso não seria superior ao custo das mudanças.

 

Mesmo medidas cuja necessidade é amplamente reconhecida, como o reajuste no preço da gasolina, não são implementadas. A lembrança do Caracazo em 1999, cujo estopim foi precisamente um aumento no preço dos combustíveis, inibe que se avance nesta direção. Enquanto isso, ao preço de 10 centavos de bolívar por litro, um dólar compra 8 mil litros de gasolina, o que implica em uma sangria permanente dos cofres públicos.

 

De maneira geral, os subsídios ao consumo são parte de uma política amplamente enraizada na sociedade venezuelana, que adquiriu sentido democratizador sob Chávez, mas que atualmente também servem para conter a inflação. Os déficits operacionais tem sido cobertos com emissão de moeda e com empréstimos, majoritariamente de origem chinesa, hipotecando a produção petroleira futura.

 

Esta constatação explicita os limites do processo bolivariano: o ensejo de "semear o petróleo" malogrou, e passados dezesseis anos, a Venezuela tornou-se mais dependente da sua exportação. Embora um balanço dos esforços realizados para diversificar a economia e os entraves encontrados exijam pesquisas de campo consistentes, há numerosos indícios de que o rentismo prevaleceu sobre a produção. Uma investigação realizada em um conjunto de empresas nacionalizadas de pequeno e médio porte entre 2002 e 2009 mostra resultados devastadores do ponto de vista da produtividade (OBUCHI, 2011). Grandes empresas tampouco apresentaram resultados satisfatórios, embora sempre haja exceções, como é o caso da CANTV, empresa telefônica reestatizada em 2007 e que segue lucrativa.

 

No plano econômico, as políticas de subsídio que beneficiaram as importações prejudicaram a produção nacional. E quando se orientaram às empresas nacionais, tenderam a reproduzir a racionalidade rentista, em que o Estado assume os prejuízos decorrentes da falta de competitividade. No campo, a situação foi análoga, e apesar das desapropriações e da promoção do cooperativismo, um integrante do MST queixava-se de que os trabalhadores venezuelanos preferem "colher nos portos".

 

Assim, os cerca de U$ 23 bilhões de dólares investidos em nacionalizações entre 2007 e 2009, momento em que o processo radicalizou seu discurso e sua prática em direção socialista, foram incapazes de alterar a estrutura produtiva do país. Do ponto de vista das relações de produção tampouco se modificaram as hierarquias do trabalho, observando-se um recrudescimento da exploração, materializada em um incremento da parcela do valor criado absorvida pelo capital em relação ao trabalho (ÁLVAREZ, 2012).

 

III.

 

Apesar da extraordinária inflexão que o processo bolivariano representou para a história da Venezuela, o processo foi incapaz de desafiar consistentemente a lógica rentista. E em um momento em que a morte do seu líder incontestado e a queda internacional dos preços do petróleo exigiriam sólidas bases econômicas para atravessar as adversidades, as debilidades afloram, referidas às próprias circunstâncias que permitiram a ascensão de Chávez.

 

Em primeiro lugar, a debilidade orgânica do movimento social venezuelano ensejou que Chávez se escorasse no exército como um partido. Porém, a centralidade do exército é contraditória com as pressões de sentido democratizador emanadas a partir de 2006, plasmadas no ideário do Estado Comunal. O propósito de fortalecer poderes locais em paralelo ao Estado é antagônica à racionalidade militar, onde autonomia é identificada como uma ameaça à soberania.

 

Em segundo lugar, a militarização do Estado, que tem sido exacerbada por Maduro, reforça um dilema: como assentar vínculos orgânicos entre o povo venezuelano e o Estado bolivariano sem instrumentalizar esta relação para finalidades políticas, ou mais precisamente, eleitorais. Os paradoxos da situação são ilustrados pelo rechaço que a proposta de poder comunal encontrou entre setores do próprio chavismo, aferrados ao poder que seus cargos lhes conferiam, fato que ajuda a compreender a derrota na consulta popular de 2006, único revés eleitoral vivido por Chávez.

 

Uma terceira questão se coloca no plano dos tempos da mudança social. A despeito da retórica revolucionária, a ascensão de Chávez consumou-se pela via eleitoral, e o processo bolivariano compensou sua fragilidade organizativa e econômica com uma recorrente legitimação nas urnas. Porém, o tempo das eleições pressiona por respostas imediatas, o que inibe a implementação de mudanças radicais que podem ser conjunturalmente impopulares.

 

A dinâmica eleitoral condicionou o alcance do chavismo a uma democratização da receita petroleira, em que a extensão dos subsídios sob uma ótica universalista reforçou padrões característicos do rentismo. Uma expressão desta perpetuação é a reprodução de padrões de consumo típicos das sociedades centrais. Assim, observa-se uma correspondência entre as dificuldades para desenvolver um setor produtivo nacional e a adoção de padrões econômicos e culturais adequados à realidade do país.

 

Evidentemente, o desenvolvimento de uma base industrial própria no século 21 se defronta com desafios que dificilmente seriam endereçados em escala nacional. Daí a ênfase concedida pelo projeto bolivariano à integração regional. Porém, sua iniciativa mais ousada nesta direção, expressa na proposição da ALBA em 2004, foi neutralizada na prática pela atuação brasileira, cujo projeto regional obedece a uma racionalidade mercantil e de projeção nacional.

 

Reconhecer os limites do contexto internacional em que se moveu Chávez não significa desconhecer um terreno de concordância fundamental que pode ser sintetizado, nos termos de Furtado, como o "mito do desenvolvimento econômico". A aposta dos países da região na intensificação da exportação de gêneros primários como via do desenvolvimento se expressa na adesão unânime à Iniciativa da Integração da Infraestrutura Sul-Americana (IIRSA), acoplada a partir de 2009 à própria UNASUL.

 

No caso especificamente venezuelano, o paradigma do progresso se traduz na reprodução da dependência em relação ao petróleo. Embora conceitualmente desenvolvimentismo e extrativismo não sejam a mesma coisa, a história tem demonstrado que, no caso venezuelano, as problemáticas são indissociáveis.

 

O rentismo petroleiro é a forma como se expressa o subdesenvolvimento no país. E assim como a superação do subdesenvolvimento não se limita à equação de suas variáveis econômicas, o rentismo deve ser enfrentado na sua totalidade, abarcando os aspectos: econômicos, relacionados aos entraves para a diversificação e a autodeterminação; sociais, referidos às distorções que militam contra uma sociedade assentada no trabalho; políticos, que projetam relações de clientelismo à organização popular; culturais, fomentando uma subjetividade referida a padrões de consumo alheios à realidade venezuelana.

 

IV.

 

Frente ao desgaste de um Estado permeado pela corrupção, apoiado cada vez mais em militares que frequentemente não reconhecem a liderança de Maduro como acatavam a Chávez, em um contexto de insegurança pública e imprevisibilidade econômica que constrange os cidadãos a engenharias cotidianas para viabilizar a rotina, o discurso da "guerra econômica", embora real, tem se mostrado insuficiente para renovar votos no processo.

 

Como observa Lander, a diferença fundamental em relação aos momentos mais difíceis sob Chávez, que atravessou problemas econômicos igualmente graves na esteira do “paro petroleiro” de 2002/2003, é que a população então acreditava viver uma situação provisória, em trânsito a algo melhor. Atualmente, a sensação prevalente é que a autodenominada "Revolução Bolivariana", que recolocou a transformação radical no horizonte político latino-americano, simplesmente se esgotou. E com ela uma breve lufada menos progressista do que muitos acreditaram ser na América do Sul, mas menos reacionária do que o futuro imediato permite antever, como sugere a eleição de Macri na Argentina.

 

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Fabio Luis Barbosa dos Santos é doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo.

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