Raúl em Nova York

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Atílio Boron
16/10/2015

 

 

 

 

O Secretário de Estado John Kerry deveria reconhecer a fidalguia que trazem suas palavras quando diz, ao explicar para a imprensa internacional a mudança da política dos Estados Unidos em relação à Cuba, que “durante mais de cinquenta anos tratamos de isolar Cuba do sistema hemisférico, e os que terminamos isolados fomos nós mesmos”.

 

Reconheceu uma grande verdade: ao longo desta canetada de meio século a pequena ilha do Caribe, gigantesca por sua projeção moral e por sua condição de potente farol de referência para os processos de liberação na África, na Ásia e na América Latina, terminou por impor suas condições à Roma americana: normalização das relações sem renunciar uma vírgula aos postulados da revolução, suas conquistas históricas e sem abandonar sequer por um momento o caminho escolhido desde a sua segunda e definitiva independência.

 

Claro que Washington tampouco arquiva seus velhos planos: seguirá promovendo a “mudança de regime” em Cuba, o que demonstra que, parafraseando Jorge Luis Borges, “o império é incorrigível”, e prosseguirá com seus planos de dominação global denunciados ao longo de décadas por Noam Chomsky, esse Bartolomeu das Casas do império norte-americano como apropriadamente foi chamado por Roberto Fernández Retamar.

 

A ferocidade de Washington revela os alcances da patológica obsessão cubana da burguesia imperial: querem apoderar-se dessa ilha já faz mais de duzentos anos – como foi declarado em 1783 por aquele que logo seria o segundo presidente dos Estados Unidos, John Adams – e não conseguiram. Conseguiram em tantos outros países, mas não com Cuba. Essa obsessão, transformada em crônica pelo decorrer dos séculos, se converte na mãe de uma conduta diplomática aberrante: se restabelecem relações com Cuba, mas se declara arrogantemente que não cessará o empenho em derrocar o governo com o qual se “normalizam” relações, e também em acabar com as instituições e leis daquilo que, com desdém, se denomina “o regime”.

 

Isto na psiquiatria se chama “esquizofrenia”. Na diplomacia, conveniou-se usar um termo mais amável: “duplicidade”. Mas no fundo é o mesmo. E para conseguir essa ilegal e sediciosa mudança de regime – imaginemos a recíproca: que Raúl Castro houvesse declarado que ao normalizar relações com os Estados Unidos, Havana não cessaria seus esforços para derrocar o governo e a ordem imperante naquele país – Washington apela a um arsenal de instituições, governamentais ou não, todas financiadas pelo Tesouro Nacional dos EUA, com o irreparável – no papel – propósito de “revitalizar a sociedade civil”.

 

O vice-presidente do Estado Plurinacional da Bolívia, Álvaro García Linera, faz tempo que vem denunciando o caráter de tentáculos do imperialismo destas ONGs cuja verdadeira missão é outra: socavar desde dentro os governos de esquerda e progressistas da região. Este lema, “revitalizar a sociedade civil”, é um conveniente eufemismo que encobre seu verdadeiro objetivo: subverter a ordem constitucional e precipitar a queda de todo governo considerado não amistoso por, ou insubmisso ante, os mandachuvas do império. Exemplos recentes e sumariamente moralistas da “revitalização da sociedade civil” auspiciados por Washington são Ucrânia, Líbia, Síria e antes, na Nossa América, Honduras e Paraguai.

 

A heróica resistência de Cuba é a que outorga ao país um prestígio internacional que só um punhado de grandes potências podem exigir. E isso foi sempre assim, uma constante na história da Revolução. É um lugar comum entre os especialistas assinalar, pese o subdesenvolvimento cubano, a sua política exterior em função dos seus princípios e dos interesses gerais da Revolução no dito Terceiro Mundo.

 

Ao contrário do que diziam os “disk-especialistas” norte-americanos, Havana jamais foi um “proxy” de Moscou. Sua decisiva participação na liquidação do apartheid na África do Sul através da guerra em Angola foi obstinadamente rechaçada pela União Soviética, mas Fidel fez o que sabia que deveria fazer. E tinha razão, por isso venceu. O mesmo ocorreu em relação aos apoios dados a diversos movimentos de liberação nacional na Nossa América, na Ásia ou na África, vistos com maus olhos pela burocracia soviética.

 

Esta independência, custosa e moralmente inquestionável, se traduz no enorme prestígio atrelado a um país que procede desta forma. E Cuba o tem, de bom grado. A recente visita do presidente Raúl Castro aos EUA, com motivo da Assembleia Geral da ONU, é uma rotunda prova deste prestígio.

 

Nenhum outro presidente da América Latina e do Caribe teve uma presença tão destacada em Nova York, ao passo que o cubano pronunciou três importantes discursos: um na Cúpula da ONU sobre os objetivos do desenvolvimento sustentável; outro, no dia seguinte, 27 de setembro, na “Conferência de líderes globais sobre igualdade de gênero e empoderamento das mulheres”, e, para concluir, houve a mensagem apresentada no dia 28, no marco da 70a Assembléia Geral das Nações Unidas.

 

Além disto, manteve relações bilaterais com Barack Obama, Vladimir Putin, François Hollande, o Secretário Geral da ONU Ban Ki-Moon, Alexander Lukashenko (Belarus), Filipe Nyusi (Moçambique), Stefan Löfven (primeiro-ministro da Suécia) e Nicolás Maduro, ao passo que manteve uma breve reunião informal com Xi Jinping e entrevistas com influentes personalidades do país anfitrião como o ex-presidente Bill Clinton; dez congressistas de ambos partidos; os senadores Patrick Leahy e Heidi Heiltkamp; com Andrew Cuomo (o poderoso governador do estado de Nova York), Bill de Blasio (prefeito de Nova York) e numerosos empresários; residentes cubanos e ativistas da solidariedade.

 

Voltando ao que cabe a Kerry, Cuba não só pôde ser “isolada do mundo”, como queria a direita norte-americana e seus peões de Miami, como, pela coerência de sua trajetória e intransigência absoluta em defesa de seus princípios, ganhou o respeito interno e alheio. Ao ponto tal que para desenhar uma nova política para o hemisfério Washington teve primeiro que começar a desmontar sua política em relação a Cuba.

 

Isto era o pré-requisito necessário para começar a reconquistar a influência perdida ao sul do Rio Bravo. A tal grau chega o respeito pela ilha caribenha que até governos de direita na região se juntaram ao coro de amigos que exigiam o fim do bloqueio e do ostracismo ao qual havia sido condenada pelo inclaudicável direito de ser dona de seu próprio destino. Até os finais deste mês, no dia 27 de outubro, voltará a colocar-se em votação na Assembleia Geral da ONU a questão do bloqueio dos EUA a Cuba.

 

Faz mais de vinte anos que a maior das Antilhas vem ganhando essa votação por uma margem escandalosa de votos. No ano passado, 188 países condenaram o bloqueio (eufemisticamente chamado de “embargo” pelos EUA) contra dois votos a favor do bloqueio (Estados Unidos e seu verdugo regional, o governo genocida de Israel), além de três abstenções de países de nula gravitação no sistema internacional. Com os desenvolvimentos abertos desde o dia 17 de dezembro passado, é provável que o resultado seja ainda mais contundente a favor da Ilha.

 

De todos os modos, a comunidade internacional já expediu sua opinião e o bloqueio a Cuba ficou inscrito na história como um dos maiores crimes perpetrados, por tanto tempo, pela mais poderosa superpotência da história contra um pequeno grande país, cujo imperdoável pecado foi o de cumprir o sonho do Libertador de Martí.

 

Não obstante, depois desta nova vitória diplomática, ficará um longo trecho por recorrer para, se não acabar, ao menos atenuar os efeitos do bloqueio: o presidente dos Estados Unidos não pode alegar impotência porque tem em suas mãos uma série de prerrogativas que lhe permitem fazê-lo sem ter de passar pelo Congresso, hoje dominado pela turba inculta e reacionária que envergonha os Pais Fundadores da nação norte-americana.

 

Imaginem um George Washington, um Thomas Jefferson, um Hamilton ou um Franklin escutando espantalhos como Ileana Ros-Lehtinen, Marco Rubio e Lincoln Diaz-Balart ou àqueles que ovacionaram em pé em numerosas ocasiões as regurgitações racistas e genocidas de Benjamin Netanayhu!

 

Obama pode fazê-lo e há alguns sinais de que aspira a retirar-se da presidência com alguns gestos que lhe permitam passar à história com um balanço final um tanto mais favorável.

 

 

Atílio Boron é sociólogo argentino.

Traduzido por Raphael Sanz, do Correio da Cidadania.

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