Correio da Cidadania

Um caminho rumo à escuridão

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As ruínas de FHC

 

A regressão da economia no período de governo de Fernando Henrique Cardoso é hoje amplamente reconhecida entre os especialistas e cidadãos comuns. O programa de Lula para a área econômica surgiu a partir das incongruências do modelo anterior, delineando alternativas de ação para eliminá-las e alavancar um novo caminho. Concluído o mandato anterior, assombroso poderia ser constatar que a "herança maldita" de FHC se transformaria na "herança perversa" de seu sucessor.

 

Grande desequilíbrio nas contas externas e internas foi notícia corrente na mídia durante o governo FHC. As altas taxas de juros, utilizadas à exaustão no primeiro mandato para a atração de recursos externos destinados a cobrir os déficits comerciais originários da valorização cambial, persistiram no segundo mandato, então justificadas para fazer convergir a inflação às metas estabelecidas. Ao fim de seu mandato, FHC deixou uma dívida pública de quase 70% do PIB.

 

Ao lado de efeitos sociais deletérios, com aumento do desemprego estrutural e evolução medíocre da renda, a taxa de crescimento da economia caiu a cerca de 2,5% anuais, metade de sua média histórica, e o sistema produtivo chegou à beira do desmonte, com queda da produção e da taxa de investimentos e desnacionalização da economia. Concomitantemente à modernização de alguns setores, vários outros passaram a apresentar gargalos na estrutura produtiva, a exemplo do setor energético. A fragilização da estrutura produtiva rebateu, por sua vez, na perda de competitividade da economia, resultando, segundo a avaliação do economista e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Reinaldo Gonçalves, em uma inserção regressiva do Brasil no sistema mundial de comércio. Conformou-se uma reprimarização do comércio, com maior dependência de exportações de commodities e produtos primários.

 

As relações econômicas internacionais, no que se refere aos seus aspectos comerciais, produtivos, tecnológicos e financeiros, passaram, ademais, por uma extensa e profunda abertura. O projeto neoliberal de FHC, ao envolver uma inserção rápida e passiva do Brasil no cenário internacional, confluiu para retumbante fracasso na promoção de nosso desenvolvimento.

 

Medidas necessárias à mudança

 

Um programa de governo não surge ao acaso, tendo, obviamente, a embasá-lo uma discussão de idéias. As medidas necessárias para, se não inverter, alterar a rota de nosso desenvolvimento, são, há um longo tempo, unanimidade entre os economistas e outros especialistas que defendem o crescimento sustentado com maior igualdade social.

 

Para João Sicsú, economista e professor da UFRJ, em entrevista ao Correio, "existiam, no começo do governo Lula, e continuam existindo alternativas à continuidade da política econômica. A transição ali era necessária realmente, mas qualquer mudança não exigia naquele momento ruptura, sobressalto, solavanco. Era preciso só controlar a inflação, manter o câmbio estável e aumentar a capacidade do governo de realizar gastos em infra-estrutura e programas sociais. Para isso, era necessário iniciar a implementação de instrumentos de controle da inflação".

 

No final de 2002, com Lula já eleito presidente, Gonçalves elencou, em entrevista ao primeiro número da revista Teoria e Debate, editada pela Fundação Perseu Abramo, uma série de medidas fundamentais para reverter a nossa inserção passiva na economia internacional e pôr o Brasil de "volta nos trilhos". Medidas essas que, em entrevista exclusiva ao Correio da Cidadania, voltou a reiterar como oportunas e pertinentes na conjuntura inicial do governo Lula.

 

Dever-se-ia buscar o crescimento econômico com o dinamismo do mercado interno e distribuição de renda. Nesse sentido, o enfrentamento da vulnerabilização externa era condição primordial e a consistência macroeconômica impunha-se como uma necessidade complementar.

 

Quanto à nossa vulnerabilização externa, a revisão da excessiva liberalização e desregulamentação nas esferas comercial, produtiva, tecnológica, cambial e monetário-financeira seria essencial em "uma das economias mais internacionalizadas do mundo", o que envolveria medidas de curto, médio e longo prazos. Na área cambial e monetário-financeira, urgia a reintrodução de controles, que poderiam ser impostos imediatamente, com a simples revisão de resoluções do Banco Central, Ministério da Fazenda, Conselho Monetário Nacional e Receita Federal; na área comercial, a promoção de exportações e a substituição de importações somente surtiriam resultados a mais longo prazo, mas medidas protecionistas seriam cabíveis a curto prazo; quanto aos investimentos diretos, o fortalecimento da regulação com vistas à proteção dos interesses nacionais vis-à-vis os do capital externo permanecia como uma imposição histórica; e, para a esfera tecnológica, uma área cuja abordagem exige visão de longo prazo, haveria como, por exemplo, intensificar o controle da transferência de tecnologia.

 

A consistência macroeconômica deveria, conforme acima salientado, associar-se a uma estratégia de inserção internacional mais ativa, através das políticas monetária, fiscal e cambial e do estabelecimento de controles diretos sobre a atividade econômica.

 

No que se refere à política monetária, seria necessária a implementação de uma política creditícia seletiva orientada para a expansão da oferta de bens e serviços de consumo de massa. Além disso, diante da enorme dívida pública herdada de FHC e da necessidade de liberar recursos para investimentos essenciais, a redução da taxa de juros era voz corrente entre os economistas que voltavam seu olhar em direção ao desenvolvimento. Para essa redução, seria imperioso o controle do movimento de capitais, para desvincular a taxa de juros da expectativa de agentes econômicos internacionais, de forma a ser uma variável definida autonomamente pelo Estado; e também uma política de preços administrados, para manter o câmbio estável e tornar a inflação menos dependente de manipulações na taxa de juros.

 

Na área fiscal, a elevação da carga tributária, via taxação do lucro, das grandes fortunas e do aumento do imposto sobre os maiores rendimentos, ao mesmo tempo em que se desonerasse o setor produtivo e as exportações, viria satisfazer as necessidades de obtenção de recursos, de progressividade da taxação e de melhor distribuição de renda. Quanto, finalmente, à área cambial, o governo deveria agir ativamente no mercado como comprador, de forma a manter um nível razoável de reservas para o enfrentamento de adversidades externas.

 

"Um governo democrático-popular precisa enfrentar essas dimensões, considerando que cada uma tem sua institucionalidade e temporalidade", avaliava Gonçalves no final de 2002. Quanto às resistências a uma mudança da magnitude da proposta, sua avaliação era contundente: "a economia tem uma regra fundamental: não há benefício sem custo. Espera-se muita resistência, porque serão atingidos interesses fortes da elite econômica brasileira. As principais resistências não serão externas, mas internas, serão de grupos econômicos residentes no país. O Brasil representa menos de 1% do PIB mundial e menos de 1% do comércio mundial. É um processo de negociação. No curto prazo, pode ser um jogo de soma zero, onde alguns ganham e outros perdem, mas, no médio e longo prazos, todo mundo pode ganhar".

 

Lula: um novo programa econômico

 

Face à inequívoca visão quanto à necessidade de se alterarem os rumos da economia - que seria finalmente corroborada nas urnas com a eleição de Lula em 2002 -, desde 1999 vinha sendo elaborado, no Instituto Cidadania (Ong de Lula) um novo programa econômico. Segundo Gonçalves, "o programa de governo preparado para 2002 resultou de um debate que havia se acumulado em mais de uma década no Brasil, a partir de uma consulta ampla à sociedade. Nele estão delineados os eixos estruturantes das diretrizes básicas de uma alternativa para o Brasil, sempre na busca de uma política econômica adequada, considerando aspectos nacionais e globais para curto, médio e longo prazo".

 

A idéia estrutural era fazer frente à trágica herança do governo anterior, cuja única saída seria a ruptura com o modelo em vigor desde o governo Sarney e aprofundado por FHC. O principal custo da ruptura seria um "processo gradualista", em que os ganhos não apareceriam de uma só vez: "colocar um trem descarrilado como o Brasil nos trilhos significava levar em conta que não dava para partir acelerado nos primeiros anos. Era preciso ir construindo aos poucos a trajetória do desenvolvimento robusto e sustentável".

 

Para o economista e professor da Unicamp Ricardo Carneiro, também em entrevista a mais esta edição especial do Correio, o programa econômico de Lula seria algo como um "novo desenvolvimentismo". Ao reconhecer que, no passado, a economia havia atingido elevadas taxas de crescimento, mas à custa da piora na distribuição de renda e da desigualdade social, o programa incorporava ao "eixo desenvolvimentista" um "eixo social".

 

Tratava-se, quanto ao primeiro eixo, de buscar o desenvolvimento com autonomia nacional e com melhor inserção da economia brasileira na economia globalizada no que se refere aos aspectos comerciais, produtivo, tecnológico e financeiro. Uma política industrial ativa e a regulação do fluxo de capitais, para evitar surtos desestabilizadores de entrada ou saída de capital especulativo, seriam essenciais na persecução da autonomia do desenvolvimento. Quanto ao "eixo social", fundamental para dar sustentabilidade ao crescimento de médio e longo prazos, compreendia a ampliação da oferta de bens públicos, a reforma agrária rumo à desconcentração da propriedade fundiária e políticas voltadas ao mercado de trabalho.

 

A consistência macroeconômica era obviamente contemplada pelo programa, mas de forma subordinada ao "eixo do desenvolvimento". Tratava-se, enfim, na visão de Carneiro, de um programa que, a despeito de não possuir conteúdo revolucionário, possuía "elementos de ruptura" e "elementos de conciliação". Ao trabalhar nas duas frentes simultaneamente, apontava claramente um percurso de mudanças, para as quais estava a caminho uma oportunidade histórica: um presidente com elevado capital político, uma sociedade exigindo mudanças e um partido organizado e enraizado socialmente.

 

Inversão de rumo: a tática que se eterniza

 

A abrupta contração dos fluxos de capital externo em 2002 e, conseqüentemente, a aceleração da inflação, do risco país e do preço do dólar provocaram grande insegurança na equipe responsável pelo novo programa de governo de Lula. Para aplacar a angústia do mercado quanto a um eventual calote nas dívidas externa e interna e "assegurar a governabilidade", os condutores da campanha publicaram a Carta ao Povo Brasileiro, que balizaria, posteriormente, o início da gestão do novo presidente. Com a famosa carta, Lula comprometia-se a respeitar os contratos, conter a inflação e manter sob controle a dívida pública através de superávits fiscais. O ajuste gradual foi, assim, inicialmente justificado como uma manobra tática e transitória imposta pela conjuntura internacional e que pavimentaria o caminho para a retomada de uma política econômica mais flexível.

 

Avaliar criticamente os resultados da política econômica que acabou por imprimir sua marca ao governo exige deter-se nos momentos iniciais da nova gestão e nos pilares teóricos que deram substrato à condução da economia. Desde então, vários economistas questionavam a alegada impossibilidade de mudanças mais proeminentes em função dos cenários adversos interno e externo, como também desmistificavam o discurso da "transição da política econômica", que não seria corroborado pela teoria que sustentava as opções feitas, nem muito menos sobreviveria ao teste da realidade.

 

Uma teoria liberal

 

Segundo o economista Sicsú, "é inequívoco que o governo Lula se apoiou nos mesmos pilares teóricos do governo FHC para elaborar o seu modelo de política econômica. Hoje há um consenso em torno deste tema e, ademais, o continuísmo é valorizado pelo PT como ‘uma opção responsável’. Surgiram, à época em que a opção continuísta foi adotada, muitas teses governistas para justificá-la, todas metaforizadas: ‘não vamos reinventar a roda’, ‘nada de invencionismo’, ‘não vamos dar cavalo de pau em transatlântico’, ‘o remédio é amargo, mas é necessário’. Uma diretriz alternativa seria ‘populista’ e fadada ao fracasso".

 

A partir dessa constatação, Sicsú faz uma minuciosa análise do modelo econômico de Lula, o mesmo de FHC. Esse modelo estaria baseado no seguinte tripé: 1) a política cambial, com câmbio flutuante e plena mobilidade de capitais; configurar-se ia, daí, a liberalização financeira, que enfraquece a política cambial, uma vez que as reservas do Banco Central são insuficientes para lidar com um número excessivo de transações externas; 2) a política monetária, baseada no regime de metas de inflação, com manutenção de altas taxas de juros e com um Banco Central autônomo; 3) a política fiscal, com metas rígidas para superávits fiscais primários (receitas menos despesas, excluídos os juros), restringindo a capacidade do governo de realizar gastos públicos em investimentos e programas sociais. Este seria o tripé liberal, cujo objetivo é fazer com que o governo ganhe credibilidade perante os mercados financeiros.

 

As teorias que sustentam esse modelo econômico ancoram-se na retórica do respeito ao trato da coisa pública e da gestão responsável e transparente, bandeiras, segundo a economista e professora da USP, Leda Maria Paulani, "sedutoras para a esquerda diante da histórica corrupção da direita". Nesse sentido, qualquer crítica aos fundamentos dessa teoria, como, por exemplo, à austeridade das políticas monetária e fiscal, é tratada como defesa de gestão irresponsável, que pode provocar uma fuga de capitais seguida de desvalorização cambial. Advém desse esquema uma série de confusões, aliás, "muito funcionais para um governo do PT, que possui limitações históricas para a adoção de uma política de corte liberal", reitera Paulani. Uma dessas confusões é a corriqueira e quase automática associação da política econômica liberal à estabilidade monetária, como se uma política econômica não ortodoxa fosse necessariamente incompatível com a conquista e a preservação da estabilidade.

 

Conclui-se daí, facilmente, que a passividade do governo é considerada uma virtude e qualquer iniciativa que fuja ao script proposto, uma ameaça. Ao governo bastaria acumular credibilidade e reputação e deixar ao livre jogo do mercado financeiro o objetivo econômico final de crescimento sustentado, com estabilidade de preços e distribuição de renda. Acredita-se, para Sicsú, na consumação de uma "química milagrosa": os recursos financeiros de curto prazo podem ser transformados em investimentos capazes de gerar emprego. Transformação que o país aguarda há mais de 15 anos!

 

Trata-se, enfim, da "construção" de um governo de "mãos atadas", capaz de gerar e acumular, a partir do seu imobilismo, credibilidade e reputação. Espera-se, ademais, que o crescimento com distribuição de renda venha de fora, inabilitando o Estado nacional como sujeito do desenvolvimento do país. A aposta é no exterior, e não na autonomia e decisão do governo, considerado, outrossim, um entrave à valorização dos capitais.

 

Lula além de FHC!

 

Baseando-se nas inferências da análise da teoria econômica liberal, Sicsú já prognosticava, desde princípios de 2003, a impossibilidade de se passar do plano A, continuísta na condução da economia, para um suposto plano B, de políticas econômicas governamentais ativas na promoção do crescimento. Um eventual plano B não poderia ser colocado em prática, vez que o presidente Lula teria feito clara opção pelo plano A, cuja dinâmica é de aprofundamento da política econômica, impedindo quaisquer mudanças.

 

Diante dessa lógica, o governo FHC não chegou a implementar de modo conclusivo as premissas que sustentam o modelo liberal. O superávit fiscal, por exemplo, se transformou em um objetivo de governo somente no seu segundo mandato. A votação no Congresso da autonomia para o Banco Central e as reformas institucionais necessárias para complementar o modelo macroeconômico, como a reforma da previdência e a lei de falências, não se efetivaram tampouco. Na percepção do mercado, a série de crises cambiais enfrentadas na gestão FHC seria sintoma da necessidade de se aprofundar o caminho ortodoxo.

 

A mera observação empírica permite constatar o aprofundamento de todas essas políticas pelo governo Lula. O superávit fiscal foi aumentado de 3,75% para 4,25% do PIB, oscilando na prática em torno de 5% do mesmo, excedendo até mesmo as metas impostas pelo FMI. Segundo dados citados por Sicsú, um superávit dessa natureza implica um corte de gastos de R$ 90 bilhões, contra despesas com juros de R$ 160 bilhões em 2005 e um orçamento minguado para a educação e a saúde: R$ 14 bilhões e R$ 29 bilhões, respectivamente.

 

Um orçamento não somente equilibrado, mas pequeno, passou a ser o novo objetivo. Na busca insaciável pelo orçamento minguado, há novas projeções nos ministérios da Fazenda e do Planejamento para um ambicioso programa de ajuste fiscal em um horizonte de dez anos.

 

No que se refere ao câmbio, a sua livre flutuação, com tendência de baixa, valorizou os investimentos financeiros externos – mediante um ataque especulativo, despenderão poucos reais para recomprarem seus dólares e os remeterem de volta para casa. Estabeleceram-se, adicionalmente, regras para ampliar a liberdade dos fluxos de capitais, como é o caso da permissão extra para remessa de recursos de residentes. O relaxamento da legislação que obriga os exportadores a trazer ao Brasil os dólares provenientes de suas vendas externas é mais uma das "inimagináveis" medidas que o governo Lula projeta discretamente para logo mais.

 

Resta, lamentavelmente, a referência à reforma previdenciária, uma paulada nos direitos dos trabalhadores, e à lei de falências, que limita o acesso dos trabalhadores à massa falida – medidas durante oito anos perseguidas por FHC e consumadas pelo atual governo. Quanto ao projeto de independência do BC, o Ministério da Fazenda não abandonou a sua elaboração, intensificando, pelo contrário, a articulação política em prol da sua efetivação.

 

"O processo de conquista de credibilidade/reputação é infinito. Nunca acabará. Os mercados são exigentes e insaciáveis em relação ao comportamento de governos. O caminho apontado pelo modelo econômico atual, portanto, não tem volta e não tem fim. É irreversível! É eterno!", conclui Sicsú em face da continuidade aprofundada da política econômica de Lula relativamente ao seu antecessor. Trata-se, enfim, de um modelo para o qual a conclusão será sempre a mesma: deve ser mantido e aprofundado, pois não há alternativas. Quando os resultados esperados não aparecem, a culpa é prontamente transferida para "anomalias externas" ou para as "resistências ideológicas, populistas e corporativas internas", que impedem o aprofundamento da imprescindível liberalização.

 

O conhecimento dos preceitos teóricos da política econômica pela qual Lula optou já deixaria evidenciada, desde o início de sua gestão, a ingenuidade de economistas, políticos e cidadãos que acreditavam na transitoriedade do chamado plano A, qual seja, do modelo econômico conservador. Três anos quase completos decorridos da atual gestão comprovam na prática essa ingenuidade. Aliás, até mesmo no que se refere à sua comprovação empírica, nem seriam necessários três anos. Já em 2003, vários economistas constatavam, a partir dos discursos e atitudes do governo, a ausência de sinalizações de mudança. As reiteradas afirmações de Palocci, autoridade econômica máxima, de que a transição seria uma fase de superação de problemas, sem, no entanto, desrespeitar os "princípios básicos da política econômica", e a própria nomeação de uma equipe econômica conservadora não permitiriam vislumbrar quaisquer mudanças à vista.

 

Bode expiatório: conjuntura não explica opções

 

"A conversão da área econômica do governo para o projeto mais ortodoxo e liberal foi feita, desde o começo, por abandono do projeto inicial, por não se acreditar nele. Optou-se pela linha de menor resistência. Não houve imposição da conjuntura, externa ou interna". Esta é a opinião de Carneiro, compartilhada pelos demais entrevistados desta edição.

 

Mesmo em face da contração dos fluxos de capital externo e do declínio de nossas reservas em 2002, a economista Leda Paulani, no estudo Brasil Delivery: razões, contradições e limites da política econômica nos primeiros seis meses do governo Lula, de julho de 2003, desmentiu peremptoriamente a impossibilidade de mudanças mais proeminentes em função dos cenários adversos interno e externo. Tendo em vista dois problemas conjunturais que podem realmente agravar a situação de um país, o risco de inadimplência externa e o descontrole inflacionário, Paulani concluiu que não estávamos "à beira do precipício" no início de 2003: "e não se provoca com isso nenhuma minimização dos descalabros cometidos pela gestão anterior. As perversas conseqüências para o país da política adotada pelo governo FHC são de natureza estrutural, enquanto que o argumento com o qual se justificou a ortodoxia no início do governo Lula é de natureza indiscutivelmente conjuntural".

 

Considerando primeiramente o risco de inadimplência externa, a piora de nossas contas externas constituiu, inegavelmente, umas das mais "perversas heranças" de FHC, em função da intensa abertura externa, da ausência de política industrial e da intensa e prolongada apreciação do câmbio. As transações correntes, que incluem a balança comercial (exportações menos importações) e de serviços (receitas e despesas resultantes dos pagamentos de juros e dividendos, das remessas de lucros e de viagens internacionais), apresentaram déficit crescente, como conseqüência do maior envio de juros, lucros e dividendos para fora do país e dos vultosos déficits comerciais. O Brasil acabou, desse modo, por pedir socorro ao FMI várias vezes ao longo do governo FHC. "Se houve, assim, um momento crítico, em que se pôde considerar que o país estava à beira do precipício, ou seja, da insolvência externa, esse momento foi em meados de 2002, quando o Brasil assinou o terceiro acordo com o FMI no exíguo período de três anos", observa Paulani.

 

Essa avaliação respaldava-se, ademais, na observação do montante das reservas externas e dos resultados da balança comercial em dezembro de 2002, os quais caracterizavam uma situação equacionada do ponto de vista das condições necessárias para honrar os compromissos externos: a balança comercial vinha apresentando resultados paulatinamente melhores entre 2001 e 2003 e as reservas tiveram um comportamento estável ao longo de 2002. Sem contar que fez parte do acordo com o FMI a redução de US$ 10 bilhões no nível mínimo de reservas exigido.

 

Se o problema não era, então, o cenário externo, poder-se-ia argumentar que os maiores riscos advinham do descontrole inflacionário. A manutenção de altas taxas de juros foi, destarte, justificada desde o início do governo Lula para a contenção de surtos de inflação. Ocorre que esta terapia só seria adequada se estivéssemos perante uma inflação de demanda, para a qual os altos juros seriam efetivos na medida em que inibissem o investimento e o consumo. No entanto, diante de uma economia estagnada, com recordes de desemprego, o problema não poderia ser a demanda.

 

Além do grande peso dos preços administrados, como as tarifas de serviços públicos, nos índices de preços, por força dos contratos de concessão, estes incorporariam de forma defasada, ao longo do ano de 2003, a alta do preço do dólar observada desde meados de 2002. Assim sendo, qualquer que fosse a política monetária no começo de 2003, os índices de preços estariam pressionados. Tratava-se, seguramente, de uma inflação de custos.

 

"Não havia indicador algum de que o processo inflacionário estivesse fora de controle. Ele estava limitado a uma reconfiguração de preços relativos". Paulani conferiu a correção desse diagnóstico através da trajetória dos índices de preços entre final de 2002 e o primeiro semestre de 2003. Todos apresentaram elevação a partir de setembro de 2002, com pico em novembro e desaceleração a partir de dezembro: o IPCA do IBGE, por exemplo, subiu 3,02% em novembro de 2002, diminuindo sua velocidade de alta para 2,2% em janeiro de 2003 e 0,22% em maio.

 

Uma escolha deliberada: de onde vêm os louros?

 

Na escolha de qualquer política econômica, faz-se o cálculo de custos e benefícios para o governo e a sociedade. Lula fez certamente essa apreciação já em 2002 e "optou por completar o serviço iniciado pela equipe econômica de FHC", afirma Sicsú. "A opção de ‘não mudança’ não tem nada a ver com critérios da ciência econômica, mas com vontade política".

 

Mas por que a escolha de um modelo cujo raio de manobra para fazer o país crescer e diminuir o desemprego é tão estreito? Para que serve, afinal, tamanha conquista de credibilidade?

 

Não há como negar os ganhos volumosos obtidos pelo capital financeiro com a manutenção de taxas de juros nominais e reais tão altas. Os lucros bancários sob o governo Lula, batendo recordes sucessivos em quase três anos de mandato, estão aí para comprovar.

 

Nesse sentido, sim, valem os critérios da ciência econômica: é antigo o conhecimento do caráter político na fixação do valor da taxa de juros - estreitamente vinculado à correlação de forças entre os detentores de riqueza financeira e demais agentes econômicos – e de sua influência na determinação do crescimento e da distribuição de renda. Os altos patamares dessa taxa no Brasil nos últimos anos têm implicado maior apropriação de renda pelos rentistas, em detrimento dos salários e dos lucros. Clique para ver a tabela 1

 

Resta óbvia a conclusão de que a escolha e defesa do modelo liberal vieram em sintonia com a primazia da valorização financeira frente à produtiva, especialmente a partir da década de 80. "O governo Lula optou por um padrão excessivamente liberal, que interessa prioritariamente aos detentores de riqueza financeira e aos investidores de curto prazo", ressalta Carneiro.

 

Os elogios do FMI, dos formadores de opinião conservadores, dos economistas ortodoxos e dos mercados financeiros doméstico e internacional, bem como sua pronta ação em prol da redução do risco país e da apreciação da taxa de câmbio, foram, assim, os grandes benefícios políticos colhidos pelas opções do governo Lula. Colocados na balança juntamente com variáveis como o crescimento econômico, queda do desemprego e melhor distribuição de renda, venceram com larga vantagem.

 

Os resultados da política econômica

 

Queda da taxa de inflação, recuperação da taxa de crescimento da economia, saldos comerciais expressivos e até mesmo a criação de mais de 3 milhões de empregos formais: essas são vitórias corriqueiramente citadas, com grande ufanismo, nos discursos presidenciais e reverberadas pela mídia. Constituiriam a prova inconteste da eficácia da política econômica adotada e da solidez de seus fundamentos.

 

Como um modelo econômico que, conforme acima relatado, se baseia em preceitos tão conservadores e se dirige tão entusiasticamente ao mercado financeiro poderia levar a resultados tão brilhantes, quase milagrosos? Qual a realidade, ou melhor, a veracidade, desses dados e dessa interpretação?

 

Gonçalves responde categoricamente a essa pergunta: "a economia brasileira vai muito mal, o desempenho econômico do Brasil durante o governo Lula é ruim. Isso é demonstrado facilmente por uma série de indicadores. Primeiro, eu faço uma pergunta: você acha que o Brasil viveria uma crise política e institucional tão grave se a economia estivesse crescendo, se a taxa de desemprego estivesse caindo significativamente, se os empresários dos setores produtivos tivessem lucros satisfatórios, se a taxa de investimento fosse de 25 a 30% do PIB, se o serviço de utilidade pública estivesse funcionando direito, se tivesse diminuído a violência, se as instituições estivessem sendo reconstruídas, se as expectativas tivessem melhorado, se a esperança tivesse, de fato, sido incorporada à atuação brasileira? A resposta é não".

 

Partindo dos próprios exemplos repetidamente ressaltados pelo governo, relativos ao crescimento, aos resultados comerciais, à inflação, à criação de empregos e às próprias contas públicas, pode-se demonstrar facilmente o desempenho ruim da economia brasileira. Trata-se de ir ao mérito do velho ardil de construir verdades com a reiterada repetição de mentiras, no qual vem se esmerando a atual gestão.

 

Crescimento econômico

 

Em face de um contexto internacional extremamente favorável, sem crises cambiais e com abundância de liquidez, o crescimento medíocre da economia brasileira no mandato de Lula é opinião unânime entre os economistas entrevistados nesta edição. Em uma comparação com o próprio governo FHC, que passou por três crises cambiais, salta aos olhos o caráter pífio desse crescimento. Enquanto a média anual de crescimento nos 8 anos de mandato de FHC foi de 2,3%, no governo Lula essa média está em cerca de 3%, ou seja, apenas 0,7 ponto percentual a mais, em um cenário externo de dar inveja a seu antecessor.

 

A comparação com outros países em desenvolvimento vem reforçar essa constatação. Em função da queda de 1,2% do PIB no 3º trimestre relativamente ao 2º, após 8 trimestres consecutivos de crescimento, as projeções para o crescimento da economia brasileira já caíram de 3 para 2,5% em 2005 - uma verdadeira ducha de água fria na estratégica construção do discurso do crescimento. Enquanto isso, a Venezuela vem crescendo a um ritmo de 8%, a Argentina e a China, 9%. Na América Latina como um todo, à parte o Brasil, prevêem-se 4,5% de crescimento médio neste ano. Para que a crise política não venha agora servir para justificar essa diferença – até porque, segundo as próprias autoridades econômicas, "nossa economia estaria blindada" -, no ano de 2004, o Brasil cresceu 4,9%, abaixo da média do restante da região, de 6,5%; e, no ano de 2003, nosso crescimento foi de 0,5%, contra 2,7% na média dos demais países latino-americanos.

 

Gonçalves alerta ainda para dois aspectos críticos de nosso crescimento: 1) o aumento contínuo do hiato do desenvolvimento, em função da diferença entre a taxa de crescimento econômico do Brasil e a taxa de crescimento econômico mundial – em 2005, projeta-se uma taxa de 3% para o Brasil, na melhor das hipóteses, e de 4,4% para o mundo; 2) uma dinâmica de crescimento dependente da demanda externa líquida (exportações menos importações), em função do fraco desempenho da absorção interna brasileira (consumo, investimento e gastos do governo).

 

Comércio externo

 

O inegável melhor desempenho do Balanço de Pagamentos, mais especificamente a Balança Comercial (exportações menos importações), no governo Lula não pode obscurecer aspectos essenciais aí envolvidos. Depreende-se, das apreciações dos economistas aqui entrevistados, a necessidade de uma cuidadosa análise, no que se refere tanto aos aspectos comerciais propriamente ditos como aos desvirtuamentos estruturais envolvidos em nosso atual padrão de comércio.

 

Pensando inicialmente nos aspectos comerciais, Gonçalves lembra que os resultados comerciais foram incrementados no mundo inteiro nos últimos três anos devido a duas "locomotivas", os EUA, que respondem por 22% do PIB mundial, e a China, responsável por 11% desse PIB. O acelerado crescimento das importações desses países reforçou tremendamente o dinamismo das exportações e seus preços em nível global.

 

Tendo em vista a valorização da nossa taxa de câmbio (o dólar, ladeira abaixo, já se aproxima de R$ 2), em função das altas taxas de juros (que atraem capital especulativo, valorizando o real e desvalorizando, portanto, o dólar), o bom desempenho comercial do governo Lula está intrinsecamente vinculado ao cenário de farta liquidez internacional associado ao efeito multiplicador das duas locomotivas supracitadas. Sicsú propõe, dessa forma, uma inversão de lógica: "àquela idéia de que, a despeito da valorização cambial, continuamos exportando, deveríamos propor outra pergunta. Imagine se a gente estivesse com uma taxa de câmbio de 3 ou 3,3 reais para cada dólar, de 20 a 40% maior do que hoje, como no início do governo Lula. Qual seria a nossa exportação, qual seria o crescimento da nossa economia, o nível de emprego? Haveria, sem dúvida, um salto expressivo. A taxa de câmbio, quanto mais desvalorizada e estável, melhor".Clique para ver a tabela 2

 

Já há, inclusive, sérios indícios de perda de competitividade e rentabilidade de alguns produtos exportados devido à substancial valorização do real, mesmo em face da expansão do comércio internacional. Associando-se ainda à valorização do real, estamos assistindo ao aumento da importação, que já repercute negativamente sobre o dinamismo de vários segmentos da indústria brasileira.

 

Além de não usufruir dos resultados potenciais oferecidos pela extraordinária expansão do comércio e da liquidez externos, em função da liberalização financeira e da valorização cambial, o governo Lula pratica uma política perigosa e irresponsável ao não perseguir deliberadamente a redução das vulnerabilidades fiscais e cambiais. Segundo Gonçalves, as importações cresceram relativamente às reservas, cuja recomposição é insatisfatória. O setor público continua, por sua vez, a se endividar – ao contrário do privado -, inibindo a desejável redução do passivo externo. A conclusão óbvia e inescapável é que o Brasil poderá ser novamente, e seriamente, afetado em uma futura reversão do atual ciclo favorável. Clique para ver a tabela 3

 

Ao lado da constatação dessas limitações "quantitativas" do desempenho comercial recente, destaquem-se os desvirtuamentos estruturais (logo, "qualitativos") advindos de nosso atual padrão de comércio. No lugar de se aproveitar da fartura do cenário internacional para também melhorar a qualidade do comércio exterior brasileiro, que deveria centrar-se em valor agregado, conteúdo tecnológico e mão-de-obra qualificada, assiste-se à reprimarização desse comércio, com intensa exportação de bens em cuja produção o Brasil possui competitividade basicamente devido à disponibilidade de recursos naturais – como, por exemplo, soja, aço, celulose, açúcar refinado, café, algodão, suco de laranja, minério de ferro.

 

"O Brasil está consolidando uma estrutura de produção retrógrada, particularmente no campo, na área rural. É uma estrutura de produção assentada no latifúndio, na produção transgênica. Assentada na propriedade estrangeira, na degradação ambiental, na expulsão do homem do campo para a cidade, o que incrementa a miséria do povo brasileiro. Um modelo baseado na piora das normas de condições do trabalho. E para quê? Para expandir o agronegócio, que tem pequeno efeito de multiplicação de renda no Brasil e possui uma enorme dependência da conjuntura internacional", dispara Gonçalves.

 

E os problemas não param por aí. O aumento do controle do comércio internacional pelas empresas estrangeiras tem sido apreciável. Segundo Gonçalves, dois terços desse comércio estão hoje em suas mãos. No agronegócio, por exemplo, 40% da soja e 20% da indústria de frango pertencem a estrangeiros. O comércio intra-firma, com as intensas relações entre subsidiárias e fornecedores internacionais, passou a ser, desse modo, determinante para a indústria brasileira, com sérias repercussões. Dentre elas: 1) o aumento do coeficiente de importação, refletindo no desmonte de nosso aparelho produtivo; 2) e importantes implicações para o Balanço de Pagamentos, em função do aumento do coeficiente de importação e do maior envio de lucros e dividendos para fora do país.

 

Inflação

 

No país do "overnight", em que a inflação já foi hiperinflação, chegando a taxas anuais na casa dos quatro dígitos, a sua manutenção em níveis relativamente baixos é uma das grandes bandeiras da atual equipe econômica. Seria essa uma bandeira de qualidade?

 

"A inflação é zero porque o produto é jogado para baixo. Está sendo segurada devido ao crescimento medíocre da renda e da economia e com o auxílio de uma conjuntura internacional favorável, que jogou o dólar para baixo. Há, assim, uma demanda reprimida", avalia Gonçalves. Ao mesmo tempo, permanecem sérios gargalos na estrutura produtiva, como no setor elétrico e na agricultura, que representam entraves pelo lado da oferta, impondo sérios limites a uma eventual retomada do crescimento.

 

Trata-se, portanto, de uma terapia arriscada de controle da inflação e não há a menor garantia de que permaneça estruturalmente baixa, concordam os entrevistados desta edição.

 

Empregos

 

Os dados divulgados pelo governo quanto à criação de empregos - teriam entrado no mercado de trabalho mais de três milhões de trabalhadores formais - carecem de seriedade. Em primeiro lugar, não houve mudança substancial relativamente ao governo anterior. "O governo Lula pegou o país com o desemprego em uma faixa de 11%. No primeiro ano do governo petista, a taxa média de desemprego foi acima de 12%; no segundo ano, acima de 11%, e, agora, a taxa média é de 10,5 a 11%", avalia Sicsú. O desafio de reduzir a taxa de desemprego, e não somente o número absoluto de desempregados, não se consumou. Clique para ver a tabela 4

 

De acordo com estudo de Carneiro, os dados do governo sobre criação de novos postos de trabalho englobam a formalização de postos já existentes. Ou seja, mesmo que a formalização do emprego seja uma dimensão importante, o significado oculto desses dados é um dinamismo na criação de empregos menor do que se apregoa.

 

Segundo projeções de Gonçalves, a média anual de crescimento da economia prevista ao final do mandato de Lula implicará a criação de cerca de 5 milhões de empregos, ao longo de um período em que terão entrado no mercado de trabalho cerca de 7,5 milhões de pessoas. O resultado efetivo será, destarte, o aumento em mais de 2 milhões no número de desempregados. "Para melhorar a situação, seria preciso gerar 10 milhões de empregos - aliás, aquilo que Lula prometeu fazer. Isso requereria um crescimento médio de 5% da economia brasileira".

 

Contas públicas

 

A evolução das contas públicas é reveladora do impacto da absurda manutenção da "ortodoxia troglodita" - expressão que o economista Paulo Nogueira Batista Jr. tem utilizado para denominar a renitente orientação imposta à nossa economia. Em conseqüência das altas taxas de juros, as despesas com juros sobem continuamente. Em 2005, essas despesas já atingiram R$ 133 bilhões, aproximadamente 8% do PIB. O elevado superávit fiscal (receitas menos despesas, excluídos os juros), que atingiu R$ 95 bilhões nos dez primeiros meses do ano, R$ 12 bilhões acima da meta e representantes de 5,13% do PIB, não foi, portanto, suficiente para cobrir os estrondosos gastos com juros.

 

O déficit público (receitas menos despesas, incluídos aqui os juros) permanece, assim, no patamar de 2,4% do PIB. A dívida em títulos do governo federal atingiu R$ 937 bilhões em outubro, R$ 11 bilhões a mais que no mês anterior. A dívida líquida do setor público, por volta de 52% do PIB, não apresentou redução significativa em 2005 e, segundo reconhece até mesmo o Banco Central, os juros são o principal fator de pressão sobre o estoque de endividamento. Clique para ver a tabela 5 e 6

 

Deparar-se com esses resultados torna nítido o disparate de se manter uma política que busca incessantemente a economia em uma das pontas para repor gastos crescentes na outra. Gastos estes que não se dirigem à saúde, educação, transportes, mas ao pagamento de juros aos rentistas, que investem somente em papéis que não têm efeito multiplicador para a economia. Mantém-se, portanto, um modelo cujos próprios fundamentos nunca fecham um circuito, mas que tem claramente mapeados os seus beneficiários. Afinal, a busca de credibilidade é infinita!

 

O fim da lógica social

 

A despeito de a mudança de foco do governo Lula, com o abandono de antigas bandeiras, não mais passar facilmente despercebida, permanece no imaginário popular a idéia de que houve avanços expressivos na área social e de que, ainda que marginalmente, se incrementou o investimento público. Carneiro faz nesse sentido um importante alerta: "com uma política econômica tão conservadora, os parcos elementos progressistas das políticas estruturais perdem densidade, terminando por se transformar em política compensatória, cujo papel é atenuar os efeitos da primeira".

 

Os altos juros - o cobertor curto do setor público, segundo Carneiro – tornam uma miragem o crescimento sustentado, uma vez que os maiores gastos em uma área são compensados por menores dispêndios em outra a partir do princípio conservador dos "vasos comunicantes". Com relação à política de crédito, por exemplo, vários setores do governo salientam o seu crescimento relativamente à gestão FHC. Não obstante, mesmo que tenha crescido, não se sustenta com uma taxa de juros tão alta.

 

O Bolsa Família - a "menina dos olhos" da atual gestão e provavelmente uma das bandeiras da reeleição - é a única política social que pode ser creditada ao governo Lula, avalia Carneiro. Ainda que necessária, trata-se de uma política compensatória, recomendada pelo Banco Mundial. O resto é política de Estado, inscrita na Constituição (Saúde, Educação, Seguro-Desemprego) e muito mais representativa, como percentual do PIB, do que o Bolsa Família.

 

Quanto aos investimentos públicos com origem no orçamento fiscal, as estatísticas não mentem: corresponderam a 0,4% e 0,6% do PIB em 2003 e 2004, respectivamente, proporções inferiores à média histórica da economia brasileira e menores até mesmo que as proporções do governo FHC. "O governo Lula, ainda que com algumas políticas com orientação menos liberal do que no período FHC, não arranha o núcleo duro do conservadorismo; as mudanças não são profundas, são eminentemente compensatórias. O governo Lula está, a partir dessa lógica, no plano da capitulação", afirma Carneiro. Clique para ver a tabela 7

 

Uma economia vulnerável

 

Diante da elucidação das opções feitas pelo governo Lula, beneficiando uma proporção ínfima da população e revertendo em resultados econômicos medíocres e regressivos, é inequívoca a constatação de que se acentuou a vulnerabilidade de nossa economia.

 

Considerando as quatro áreas fundamentais destacadas ao longo desta edição para o enfrentamento de nossa vulnerabilidade externa - a comercial, a monetário-financeira, a cambial e a produtiva e tecnológica -, o saldo da atual gestão não é nada auspicioso: conforme visto, estamos comercialmente ainda mais dependentes de produtos primários e diante de uma nova onda de liberalização, com o relaxamento de barreiras tarifárias e não tarifárias para as importações; surgem em escala crescente indicações de fuga de capitais envolvendo tráfico de drogas, armas e corrupção, que se efetivam em função da maior liberdade financeira e cambial; a área tecnológica, que sofreu grande derrota a partir das privatizações com a perda de notáveis laboratórios de pesquisa, depara-se agora com a insuficiência de recursos para pesquisa e desenvolvimento; e o setor produtivo começa, por sua vez, a se ressentir da valorização cambial e do avanço do processo de desnacionalização.

 

Se, por um lado, as privatizações foram estancadas pelo esgotamento do capital produtivo à venda, notam-se, por outro, novas e variadas formas camufladas de desestatização e desnacionalização. As PPPs (Parcerias Público-Privadas) projetam a entrada de empresas estrangeiras no setor de serviços, as quais poderão onerar ainda mais o Balanço de Pagamentos na medida em que, embora atuantes em um setor que não exporta, e portanto não traz divisas ao país, estarão habilitadas a enviar seus lucros para fora. Observam-se, adicionalmente e em direções opostas, a compra de terra por estrangeiros para a exportação da produção agrícola e o estímulo à saída de empresas brasileiras para fora. Longe de configurar uma estratégia multinacional, essa saída constitui fuga de capital.

 

"Neste contexto, o que é mais triste, mais trágico, é que nós estamos tendo um contexto internacional extraordinariamente favorável, que teria permitido ao Brasil estar com uma reserva internacional de mais de cem bilhões de dólares, ter reduzido a dívida externa do setor público, ter feito uma melhora expressiva no padrão de comércio, ter conseguido um bom controle sobre o aparelho produtivo - inclusive revertendo alguns projetos nefastos de privatização -, reduzido o passivo externo. Mas não foi feito nada disso, pelo contrário. Lula trabalhou em uma condição externa extremamente favorável como se o cenário fosse de crise. Jamais poderemos perdoá-lo por isso. Na realidade, a herança maldita de Lula vai ser pior do que a de FHC, não somente na questão econômica, mas também na questão política e institucional". Esse é o lamento de Gonçalves, ecoando um sentimento nem sempre muito claro, mas crescente, de desesperança.

 

O despreparo para a reversão do ciclo

 

A reversão do atual cenário internacional não pode, evidentemente, ser descartado. Desequilíbrios internos nas duas economias locomotivas da economia mundial, EUA e China, já se insinuam, e sua eventual desaceleração terá expressivo impacto na disponibilidade de financiamento externo e no dinamismo do comércio mundial. A tendência será de piora ano a ano, segundo projeções de Carneiro.

 

Ao menor sinal de uma crise externa – ou diante de uma eventual alteração da rota do atual modelo econômico, repercutindo na rentabilidade dos ativos financeiros -, a lógica do capital financeiro prenuncia uma fuga imediata de capitais. As expectativas dos especialistas aqui consultados para essa situação são bastante sombrias. O Brasil não se aproveitou do momento ascendente do ciclo para reduzir estruturalmente suas vulnerabilidades. Será, portanto, certamente, um dos países mais afetados pelas adversidades.

 

Sicsú assim expressa o nosso infortúnio: "Com a taxa de juros altíssima e o câmbio valorizado, estamos recebendo cada vez mais bilhões de dólares em recursos especulativos do exterior, que podem ser movimentados livremente em nosso país. Com todo esse capital que está entrando, a bolsa de valores está se valorizando, o risco país caindo, o dólar caminhando ladeira abaixo. Ocorre que esse movimento inverte de sentido em uma velocidade muito maior no momento em que houver uma saída abrupta de capitais. Ou seja, o cenário está montado para que o Brasil passe por uma nova crise, seja agora, seja daqui a 6 meses, não sei exatamente quando vai ser. E quando começar a saída, o que é necessário fazer? Aumentar a taxa de juros, que, no caso brasileiro, já é muito alta? Elevar o superávit primário, que também já é alto? Vender as insuficientes reservas em poder do Banco Central? O Brasil está muito pouco defendido diante de uma reversão do quadro externo, do ponto de vista dos instrumentos econômicos para ‘blindar a economia’".

 

Economia blindada?

 

O que significa exatamente a tão mencionada "blindagem da economia"? Certamente não pode ser tomada no sentido que lhe empresta a equipe econômica.

 

Se existe uma blindagem na economia, Sicsú a traduz muito bem: "existe uma blindagem da economia, mas que não é feita por instrumentos da economia, não são os fundamentos da economia que estão garantindo a sua blindagem. Na verdade, a economia está extremamente vulnerável. O que existe é uma blindagem política da economia, que busca imunizá-la à influência da política, em particular nos momentos eleitorais e de crise. Tenta-se incutir a idéia de que esse modelo econômico é o modelo de Estado. Essa foi a grande vitória dos ideólogos desse modelo na transição: os resultados das urnas foram diferentes do esperado por eles, mas a política econômica não mudou".

 

O capital financeiro conseguiu separar a economia da política, "blindando" ardilosamente seus interesses diante de crises sociais e conflitos políticos, através da garantia da intocabilidade de contratos e regras. O presidente Lula é a âncora legitimadora deste modelo, cuja busca de credibilidade perante os mercados, cada dia mais exigentes e insaciáveis, é infinita. Não é outro o motivo pelo qual o presidente vive a repetir que "a política econômica não vai mudar".

 

A blindagem da economia começou a ser construída há algum tempo, aprofundando-se com a Carta ao Povo Brasileiro. É uma "blindagem contra a mudança". "Ela se consolidou a tal ponto que os setores conservadores estão muito seguros de que a economia está blindada independente de quem seja o ministro da Fazenda", conclui Carneiro.

 

A grande visibilidade do modelo regressivo

 

É intrigante que um modelo econômico que não gera o crescimento prometido e compromete os índices sociais encontre tanto respaldo entre expressivo número de economistas e a grande maioria dos meios de comunicação. A que se pode atribuir essa "unanimidade", esse apoio quase incondicional?

 

Plínio de Arruda Sampaio Jr., economista e professor da Unicamp, um dos entrevistados desta edição, responde a esta questão enfatizando que, "no caso dos meios de comunicações, eles funcionam como porta-vozes do capital financeiro. Sempre foi assim e sempre será assim. Eu acho compreensível que eles apóiem a política econômica, porque, no fundo, eles defendem os interesses da burguesia e do imperialismo, que são os que controlam a grande imprensa. No caso dos economistas, houve um processo de colonialismo cultural. A hegemonia do neoliberalismo acabou impondo uma cartilha e as pessoas, para terem ‘credibilidade’ na academia, para terem visibilidade na imprensa, acabam repetindo essa cartilha".

 

As disputas históricas de interesses nas diferentes sociedades capitalistas envolveram tradicionalmente os proprietários dos meios de produção, os empresários, e aqueles que vendem sua força de trabalho, os assalariados. Banqueiros e financistas são também atores desse processo, mas, com a acentuada desregulamentação e financeirização da economia mundial a partir do final da década de 80, adquiriram poder desmesurado, particularmente nas sociedades em desenvolvimento.

 

O Brasil de hoje levou ao paroxismo o poder dos rentistas, capazes de influir em todas as esferas da vida política, impondo até mesmo a "centralidade" e "eternidade" do atual modelo econômico. Estão obviamente atentos à volatilidade do processo político, à fragilidade das instituições e da economia, mas, como a atividade financeira nunca foi tão lucrativa em nosso país, fazem "seu" o atual governo e nele navegam com muita tranqüilidade.

 

Existem hoje possibilidades de mudanças?

 

Pavimentando o caminho rumo à ruptura

 

Mesmo cenários desoladores como o que se vem traçando no Brasil apresentam saídas - a dependerem, obviamente, da correlação de forças e do grau de vontade política de que estarão imbuídos os tomadores de decisão.

 

Sicsú e Carneiro avaliam que o momento atual é bastante propício para mudar, e que não há preço a pagar. Face a um modelo tão excludente, que não melhorou o país e tampouco a vida das pessoas, torna-se a cada dia mais claro que somente uma pequena fração da população - os banqueiros, os grandes industriais e a classe média alta, que controlam a mídia e os meios de comunicação - é beneficiada e tem interesse nesse modelo.

 

Segundo Sicsú, a alternativa não passa necessariamente pelo calote nas dívidas interna e externa, mas pela promoção de uma renegociação rumo à ruptura. Uma medida essencial quanto a esse propósito é a diminuição gradual da taxa de juros, ainda que não ao nível dos países desenvolvidos – que têm taxa média de 2,5% -, pelo menos ao patamar dos países em desenvolvimento – cuja taxa média é de 7,5%. Com essa baixa, o gasto com juros se reduziria de R$ 160 bilhões para R$ 50 bilhões. Trata-se, segundo Sicsú, "de uma decisão que não depende nem de economistas nem de um novo modelo econômico, mas somente de vontade política".

 

Quanto à política cambial, é imprescindível reverter a possibilidade de os capitais entrarem e saírem livremente do país, o que provoca o enrijecimento da taxa de juros, ferindo a democracia. Não há hipótese de essas medidas provocarem inflação, conforme apregoam as atuais autoridades econômicas, uma vez que, de acordo com dados citados por Siscú, 60% de nossa inflação advêm de preços administrados (tarifas públicas de transportes, energia etc.): os preços livres sobem, paradoxalmente, bem mais devagar que os administrados. Impõe-se, assim, apenas a busca de fórmulas criativas de reorganizar os contratos de concessão de serviços públicos, o que não provocaria ruptura alguma.

 

Como prova de que a tomada de medidas dessa natureza não levaria a uma catástrofe, Sicsú utiliza o exemplo da Argentina: a taxa de juros está em 5% ao ano; o superávit primário é de 3% - contra um superávit primário de 5% no Brasil; a valorização cambial não vem sendo tolerada - o câmbio está hoje em 2,9 pesos por dólar, o mesmo valor de janeiro, enquanto no Brasil o dólar caiu desse mesmo valor no começo do ano para 2,2 reais; controlam-se a entrada e a saída de capitais, impondo-se, por exemplo, impostos para a sua volta ao país. Nem por isso os capitais estão fugindo da Argentina ou os empresários estão tramando um golpe de Estado. Pelo contrário, o país vem apresentando resultados muito melhores que os nossos: a economia está crescendo neste ano a uma média de 8%, sendo que a média da gestão Kirchner, iniciada em 2003, é de 5% ; a taxa de desemprego é ainda alta, mas já caiu pela metade, de 25% para 12%.

 

"A Argentina fez uma opção política por seguir um modelo econômico mais desenvolvimentista e que tem um custo, no sentido de que é um modelo que realmente cria alguns tipos de atritos com o sistema financeiro. No entanto, a Argentina está disposta a pagar esse custo", ressalta Sicsú.

 

Um programa essencialmente inexeqüível

 

O programa de governo "desenvolvimentista" - Na análise de saídas para recolocar a economia brasileira nos trilhos, a partir dos descalabros potencializados pelo mandato de Lula, Sampaio retoma a avaliação da atual gestão a partir do programa de governo originalmente idealizado.

 

Segundo Sampaio, o programa de Lula era essencialmente destinado a criar condições para o crescimento da economia com base no mercado interno. A concretização desse objetivo dependeria, no entanto, de uma ruptura com o modelo neoliberal bem mais profunda do que a explicitada pelo programa.

 

A defesa de um "novo desenvolvimentismo" por parte dos idealizadores do programa de Lula enfatizava o caráter inovador desse desenvolvimentismo no sentido de incorporar-lhe um conteúdo social e de, a despeito de não ser anti-capitalista, propor um capitalismo mais regulado, via o enfrentamento de setores dominantes, essencialmente ligados à hegemonia financeira. Sampaio contrapõe-se a essa visão, na medida em que considerava o programa, na verdade, indesejável e inexeqüível: "Indesejável, porque um partido de esquerda não pode colocar como objetivo ressuscitar o nacional-desenvolvimentismo. No fundo, o programa estava tentando ressuscitar o modelo econômico baseado na substituição de importação e não havia nenhuma crítica ao padrão de modernização que vigora no Brasil desde 1930. Acho isso melhor do que a situação atual, mas é insuficiente para um partido de esquerda. Inexeqüível, porque a história não anda para trás, ela anda para frente. E não existem condições, nem objetivas, nem subjetivas, nem internas, nem externas, para ressuscitar o nacional-desenvolvimentismo".

 

Havia, obviamente, condições de se fazer um governo menos conservador, refreando a intensidade do modelo de FHC. Não seria, no entanto, possível fazer uma política qualitativamente muito distinta da de FHC, em função de uma condição anterior e determinante para o caráter do programa do novo governo: não se criou, durante toda a década de 90, a correlação de forças capaz de dar sustentação à intervenção necessária para mudar qualitativamente a política econômica.

 

Uma mudança verdadeira - Na avaliação das alternativas que se colocam diante da conjuntura atual, a visão de Sampaio não escapa à lógica de sua crítica ao programa de governo inicialmente projetado. Qualquer alternativa ao neoliberalismo hoje, no Brasil, deve passar por proposta de elevado conteúdo anti-capitalista, o que não caracterizou o programa de Lula.

 

O controle do câmbio e a redução dos juros são, nesse aspecto, essenciais, mas não podem ser feitos de forma gradual. Essa impossibilidade associa-se a uma "blindagem institucional" criada pelo neoliberalismo para chantagear a sociedade: as regras instituídas são tais que qualquer ameaça à continuidade de sua vigência é capaz de provocar intensa desorganização econômica. A efetivação de qualquer uma dessas duas medidas relativas ao câmbio e aos juros exige forte intervenção na economia, a qual levará a uma reação do mercado, que desestabilizará a economia, acabando por acelerar o aprofundamento da intervenção econômica. "Ou seja, o neoliberalismo é um sistema profundamente antidemocrático. Ele admite somente variantes limitadas, circunscritas ao próprio modelo. Desta forma, na situação em que o Brasil se encontra, a discussão permitida restringe-se ao ritmo e à intensidade de implementação do modelo neoliberal. A direção da política que é ditada pelo modelo não pode ser discutida".

 

Os pilares teóricos do modelo liberal minuciosamente destrinchados por Sicsú, que imobilizam o governo e impõem a eternização do modelo pela busca infinita de credibilidade, não permitem, na visão de Sampaio, saída fácil do neoliberalismo. Não há, nesse sentido, a menor possibilidade de reorganizar a economia brasileira sem um modelo alternativo com quatro intervenções essenciais: interromper o pagamento da dívida externa; romper com o FMI; estatizar os bancos; e estatizar as empresas de infra-estrutura. Intervenções estas, ressalta Sampaio, que implicam um forte grau de conflito político e social, requerendo, conseqüentemente, uma ruptura política mais profunda, com alto conteúdo anti-capitalista e um acúmulo de forças muito superior ao que hoje possuímos.

 

Diante das duas experiências latino-americanas que têm sido paradigmáticas para a esquerda brasileira, a Argentina e a Venezuela, Sampaio não tomaria a Argentina como uma referência. Mesmo constituindo-se em uma experiência menos trágica, a essência da política econômica é, em sua opinião, o receituário do FMI, que consiste em organizar a economia para pagar a dívida externa, gerar superávits fiscais e abrir negócios para o capital internacional. A Argentina evidenciaria, ademais, a importância de uma forte correlação de forças para a promoção de uma mudança verdadeira: houve rebelião popular com a deposição de quatro presidentes e, mesmo assim, não se soube criar um modelo realmente novo.

 

A Venezuela seria, pelo contrário, um real exemplo de ruptura. Desde que tomou posse, o presidente Chávez estatizou a empresa petrolífera do país e agiu com energia no âmbito da OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo), contribuindo para a forte recuperação do preço do combustível. Adquiriu, com sua ousadia, extenso raio de manobra, uma vez que o petróleo é a coluna vertebral da economia do país. Para Sampaio, "Chávez não acredita em alternativa ao neoliberalismo fora do socialismo, do que é emblemático o boicote constante que sofre do imperialismo".

 

Mais do mesmo e a luz no fim do túnel

 

Um caminho que já se insinuava

 

Para muitos dos que acompanharam a trajetória do PT, partido de sustentação do governo, na última década, o triste desenrolar dos acontecimentos aqui delineados pode não ser uma grande surpresa. Nestes últimos anos, tornou-se prática comum a defesa de uma suposta "humanização do capitalismo" por expoentes do partido, à moda da social-democracia européia, em um momento em que os partidos social-democratas já estavam em crise, praticando políticas conservadoras não mais referenciadas na distribuição de renda. Para fazer face ao fim do socialismo real e à crise da social-democracia, entrou em cena a terceira via de Clinton e Blair – o neoliberalismo com "face humana", disfarçado de social-democracia.

 

O abandono das antigas bandeiras socialistas pelo PT já se insinuava há muito, assim como a adoção de uma estratégia crescentemente eleitoral, especialmente a partir de 1994. A extensão desse abandono e o grau do aprofundamento de medidas conservadoras pelo governo deixaram, porém, estarrecidos até mesmo os críticos de primeira hora. Hoje se impõe a todos a constatação de uma rápida e intensa adesão das lideranças do PT ao credo liberal, que veio hiper-compensar seu caráter tardio.

 

A crise política deflagrada pelas denúncias de compra de votos de parlamentares, de corrupção e de financiamento eleitoral irregular trouxe a alguns esperançosos a expectativa de uma mudança de rumos. Depararam-se, pelo contrário, com um trágico e melancólico recrudescimento conservador, inteligível, todavia, à luz dos princípios inerentes ao atual modelo econômico.

 

Neste mesmo momento em que se elaboram estas páginas, correm a passos largos projetos para o aprofundamento da política econômica em curso. Dentre algumas das medidas almejadas, estão em preparação: 1) o aprofundamento da liberalização financeira através do fim da cobertura cambial, com o que os exportadores não mais necessitariam internalizar os dólares provenientes da atividade exportadora; 2) um ambicioso programa de ajuste fiscal com horizonte de dez anos, centrado na contenção de gastos e na ampliação da Desvinculação de Receitas da União (DRU), de 20 para 35%, reduzindo a destinação obrigatória de recursos para áreas como saúde e educação; 3) novas medidas para afrouxar as regras para as importações no âmbito da OMC e do próprio Mercosul, com o estabelecimento de menores tarifas de importação.

 

Sicsú faz uma avaliação e um prognóstico contundentes nesse sentido: "A crise política do governo acabou foi por fortalecer a equipe econômica e limpar todos os focos de resistências. É bom lembrar que qualquer suspeita nesse governo tem sido resolvida com a demissão: houve, por exemplo, demissões em vários ministérios e a saída do presidente da Eletrobrás, enquanto o Banco Central e a equipe econômica permanecem intocáveis. O momento agora é, portanto, extremamente favorável ao aprofundamento de medidas mais conservadoras. E as eleições do ano que vem vão chamar Lula para o campo de uma ortodoxia mais pura, exatamente para sinalizar aos mercados financeiros que um segundo mandato não seria de mudança. A autonomia do Banco Central poderá, nesse sentido, sair no próximo ano. O presidente se torna, cada dia mais, um candidato confiável ao sistema financeiro".

 

Como pensar em comprometer ainda mais o crescimento econômico, com despesas correntes crescendo abaixo do PIB por mais dez anos para reduzir a dívida pública, se, mesmo através dos superávits fiscais superiores às metas do FMI, essa dívida permanece acima de 50% do PIB? O bom senso não deveria levar finalmente à promoção do crescimento, do qual adviria maior arrecadação para cobrir a dívida e promover gastos urgentes? Quem responde a esta pergunta não são, infelizmente, os interessados no desenvolvimento e no bem-estar da população. Têm prioridade nessa resposta os interesses de uma equipe econômica aliada do capital financeiro, que concorda com a máxima Tired of Globalisation, but in need of much more of it (Cansados da globalização, mas diante da necessidade de aprofundá-la), manchete da revista britânica The Economist, de 5 novembro de 2005.

 

Perspectivas futuras

 

Toda a celeuma em torno da permanência no cargo do ministro da Fazenda, Antonio Palocci, deve ser vista com atenção. Afinal, seria bem mais elegante afastar-se em função do velho e respeitado embate entre monetaristas e desenvolvimentistas do que açoitado por denúncias de corrupção. O conhecimento das engrenagens desse governo autoriza, ademais, o prognóstico de que uma eventual saída de Palocci terá impacto marginal na economia, a partir de alterações cosméticas e oportunisticamente voltadas à liberação de verbas em um ano eleitoral. É o próprio presidente que corrobora essa projeção ao deixar sempre muito claro para o mercado que quer um superávit fiscal um "pouco menor", mas "não vai mexer na política econômica": "a disputa entre a Dilma e o Palocci se restringe a 2% do PIB. A ministra é a favor do superávit fiscal, só não quer aumentá-lo", declarou o economista e professor da Unicamp Marcio Pochman à revista Época de 21 de novembro de 2005.

 

As forças de esquerda que ainda crêem que o Partido dos Trabalhadores e o atual governo serão postos à prova nas próximas eleições - o primeiro ao traçar um novo programa de governo e o segundo ao encampá-lo ou não - trilham, assim, uma visão, se não simplista, ingenuamente esperançosa. Se a construção de novos instrumentos de luta para a esquerda não pode ser um "ato de vontade", desprezando o acúmulo de experiência do PT, acreditar que o governo será fatalmente colocado à prova em um momento específico do futuro é, isto sim, um ato de vontade e uma apreensão estanque da realidade.

 

Os especialistas consultados nesta edição não projetam um cenário otimista para o futuro próximo. Salvo a eclosão de uma crise externa, o candidato do PT em 2006, seja ele quem for, deverá apresentar um projeto bem parecido com o atual, em face da desarticulação da esquerda e da desmobilização dos movimentos sociais provocadas pelo atual mandato. No entanto, para o médio e longo prazos, os economistas aqui entrevistados são unânimes em sua crença na existência de projeto alternativo ao neoliberalismo, seja socialista ou social-democrata.

 

Sampaio, que acredita na mudança somente a partir de profunda ruptura, com uma nova radicalidade para se pensar a economia, faz uma alvissareira advertência final, que deixa mais à vista a luz do fim do túnel: "o governo Lula conseguiu, via clientelismo e políticas compensatórias, algum apoio de setores mais indigentes da população. Mas não podemos nos deixar confundir pela conjuntura. Esse apoio é efêmero. A situação é muito instável e não é impossível que haja uma aceleração do tempo histórico, pois há muitas contradições e muita insatisfação social. E existem muitos militantes de esquerda no MST, no PT, entre os que saíram do PT, dentre outros. A tendência é, portanto, de crítica ao neoliberalismo, um sistema altamente anti-social e anti-nacional. Haja vista os exemplos que têm vindo de toda a América Latina e do próprio Brasil: caiu o apoio ao governo e a própria popularidade presidencial".

 

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