Correio da Cidadania

Um nacionalismo “assustador”

0
0
0
s2sdefault

 

As razões que levaram o governo de Hugo Chávez à não renovação da concessão pública à Radio Caracas Televisão (RCTV) na Venezuela estão expostas em um documento imperdível denominado Libro blanco sobre RCTV, que o público brasileiro pode facilmente acessar (http://www.mct.gob.ve/nosotros/promoMCT/libro_blanco_RCTV-Web.pdf). Portanto, não recordarei aqui os argumentos do governo venezuelano. Contudo, creio importante refletir sobre o impacto da medida nos demais países latino-americanos, observar o renovado apelo à religião da “liberdade de imprensa” decorrente da medida e analisar a unanimidade dos jornalistas e escritores independentes contra o mandatário venezuelano que se verifica no Brasil.

 

A despeito de outras considerações, o presidente Chávez já possui o mérito de ter recordado a todos os latino-americanos que os monopólios que produzem e difundem a informação são essencialmente concessionários de um serviço público. Eis um conceito que foi gradualmente eliminado do vocabulário quando se trata de comunicação, pois os atuais “cães de guarda” operam de maneira orweliana: serviço público se transformou em “liberdade de imprensa” entendida como o direito que os monopólios possuem de informar e difundir imagens, promovendo alguns temas e dando voz a determinadas personagens no mesmo momento em que calam e ocultam tantos outros.

 

A operação orweliana em curso não se limita, obviamente, a seus elementos primários. Para completar o enredo é importante observar a censura voluntária praticada pela maioria dos jornalistas e órgãos independentes. No Brasil, tanto à esquerda quanto à direita, encontramos uma mesma racionalidade política que impede o exercício radical da liberdade em um regime democrático, tal é a subordinação de intelectuais e jornalistas à razão de estado e aos interesses políticos dominantes. Para entender a censura voluntária, é importante recordar o Prefácio (1945) à edição inglesa da “Revolução dos Bichos”, onde George Orwell observou que, em relação à Rússia, a intelligentsia britânica mantinha uma posição de “fundo nacionalista”, de tal forma que “o que é interessante é que, sempre que a URSS e sua política estão em jogo, não se podem esperar críticas inteligentes nem, em muitos casos, pura e simples honestidade dos escritores e jornalistas liberais, que não sofrem pressões diretas para falsificar suas opiniões”.

 

Ora, é fácil substituir Rússia por Venezuela e verificar que a mesma operação está em curso desde que Hugo Chávez apareceu na cena política de seu país e enterrou para sempre o velho populismo de AD e COPEI, o bi-partidarismo que nossa imprensa denominava de “sistema democrático venezuelano”. Na situação da Inglaterra do pós-guerra, o “fundo nacionalista” registrado por Orwell destinava-se a preservar a aliança existente entre Stálin e Churchill, que passou a comandar a liberdade de escritores e jornalistas. Enfim, os escritores e jornalistas ingleses adotaram livremente a razão de estado, praticando desde então a conhecida servidão voluntária no terreno profissional sob a forma de censura voluntária (1).

 

No caso da Venezuela, as razões pelas quais os jornalistas e escritores dos demais países latino-americanos adotam a censura voluntária e contribuem para o cerco midiático à Revolução Democrática Bolivariana não têm origem em qualquer acordo entre os estados vizinhos, a exemplo daquele que se configurou entre URSS e Inglaterra. Apesar da cordialidade existente entre a maioria dos presidentes, é fácil verificar que ocorre justamente o contrário, pois a razão de estado no Brasil recomenda cautela diante do nacionalismo revolucionário bolivariano que a elite brasileira teme que possa contaminar a opinião pública. Uma vez mais, e tal como advertiu Orwell, os jornalistas e intelectuais temem a opinião pública que dizem respeitar porque no fundo sabem que as propostas oriundas do nacionalismo revolucionário praticado em Caracas são razoáveis e foram amplamente utilizadas pelas potências dominantes tanto no passado quanto no presente, como meio para preservar seus interesses; contudo, estes mesmos meios soam inconcebíveis e muitas vezes são considerados irracionais quando utilizados nos trópicos por um governo popular.

 

A razão para tal comportamento é elementar, mas é necessário recordar: a elite brasileira decidiu que um surto nacionalista em defesa da economia, do território e do povo no Brasil, semelhante àquele praticado na Venezuela, seria nefasto para seus interesses. Exceção feita à recente beatificação de frei Galvão pelo Vaticano, qualquer outro artigo de procedência nacional parece ser símbolo de “mentalidade pré-moderna” e anacronismo endêmico, pois sabidamente vivemos em uma época que, segundo os interesses dominantes, quase tudo pode ser comprado “lá fora”. Preferem, por razões óbvias, a manutenção da “abertura da economia” que reproduz a dependência, potencializa a concentração da riqueza e perpetua o apartheid social, cuja digestão moral a maioria da intelligentsia parece ter realizado sem problemas há algum tempo.

***

 

Notas:

 

(1) Contudo, também a vitalidade crítica de Orwell perde força quando chega ao Brasil. Com freqüência, o elogio ao ceticismo – esta doença que todo estudante de jornalismo parece obrigado a contrair precocemente como condição para o exercício profissional – enterra a vocação crítica presente nos escritos do autor de Homenagem a Catalunha. Talvez por esta razão, o jornalista Daniel Pizza apresentou Orwell tão somente como um “liberal anglo-saxão” que defendia a “democracia e o realismo”; no mesmo diapasão, reduziu a radicalidade do autor inglês ao considerar que, em política, tudo se resume em “concluir qual dos dois males é o menor”. É preciso recordar que Orwell qualificava o capitalismo como “tirania”, adjetivo que torna qualquer escolha política muito mais dramática e finalmente impede de apresentá-lo simplesmente como um “liberal anglo-saxão”. A propósito da importante contribuição realizada pelo jornalista na divulgação da obra de Orwell, não posso senão lamentar a ausência de um texto tão imprescindível para nós quanto necessário para perceber a trajetória intelectual do autor, como Politics and the English Language, ausente em George Orwell, Dentro da Baleia e outros ensaios, Companhia das Letras, 2005, São Paulo.

 

 

 

Para comentar este artigo, clique {ln:comente 'aqui}.

 

0
0
0
s2sdefault