Correio da Cidadania

Em defesa do voto proporcional

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No enredo da arrastada novela da reforma política, capítulos cruciais são ocupados pelo embate em torno da reforma da legislação eleitoral. A tal ponto que até parece, muitas vezes, que a novela inteira ficou reduzida a esta importante parte. Faz sentido. Afinal, é aí que se definem os procedimentos onde o voto do eleitor se traduz em poder político real: cadeiras no parlamento e postos no executivo.

Há, neste particular, uma disputa surda entre os que advogam uma engenharia eleitoral que privilegia a obtenção da governabilidade, que é o princípio do sistema do voto distrital ou majoritário, e os defensores da continuidade do voto proporcional, cujo princípio é a primazia da representação. Ela nunca se apresenta como tal, de forma aberta, mas sempre dissimulada na miríade de questões efetivamente relacionadas ao tema. Aliás, não existem no mundo dois países que tenham o mesmo sistema eleitoral. No entanto, cada arranjo particular desta imensa diversidade está atravessado pela prevalência de um destes dois tipos de representação: a majoritária ou a proporcional.

O voto proporcional se estabeleceu no Brasil com o regime de 1946, na atmosfera democratizante do imediato pós-guerra. O intervalo trevoso da ditadura militar não tocou nele. O poder político real emanava dos quartéis e suas alavancas principais não estavam em jogo nas eleições de simulacro. A “eleição” indireta do presidente, dos governadores e prefeitos das capitais e de incertas cidades colocadas como área de segurança nacional, além do bipartidarismo compulsório e das sublegendas nas eleições proporcionais, resolviam o problema na linha direta do autoritarismo. Depois, com o fim do período ditatorial, o impulso democrático voltou a apontar, com as demandas de uma cidadania mobilizada, para a permanência e aprimoramento do sistema da representação proporcional.

A proposta de reforma liberal-conservadora, que se articula como contraponto a este momento, objetiva aumentar a “eficiência governamental” à custa da redução da representatividade. Desde, pelo menos, a Comissão Afonso Arinos, que antecedeu o processo constituinte, passando por proposta de autoria do então deputado José Serra e pelo famoso relatório do senador tucano Sérgio Machado, o mote é o mesmo. Aliás, muito bem definido pelo último: “governabilidade, portanto, é o que importa neste debate sobre reforma política e partidária. Se estamos começando um processo de mudanças econômicas e sociais, por meio da estabilidade da moeda, da modernização do Estado e da abertura para o mercado mundial, devemos avançar também em nossa estrutura política”.

Os que advogam o princípio da governabilidade não descuram da representação, mas adotam para ela uma visão controladora e aspiram bloquear as formas de cidadania não reguladas pelo Estado. Eles temem o alargamento dos espaços de participação política e, a partir dos interesses estabelecidos como dominantes, buscam travar o processo de transformação das maiorias sociais em maiorias políticas.

Os que advogam o princípio da representação não devem descurar da governabilidade, mas precisam situá-la no contexto mais amplo, não como sinônimo de capacidade estatal de governar, mas como esforço de adequação das estruturas institucionais ao dinamismo do movimento social. Quem defende a democracia participativa, a presença plena da cidadania no processo político, o pluralismo da livre manifestação das diferenças, em um país de dimensões continentais e marcado por tantas desigualdades sociais e regionais, como é o nosso, deve cerrar fileiras em defesa do voto proporcional.

 

 

Léo Lince é sociólogo.

 

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