Correio da Cidadania

Grandes consumidores e disputas políticas continuam a dar as cartas no setor elétrico

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Em meados de 2005, o Correio elaborou uma edição especial sobre o setor elétrico brasileiro (agora veiculada em nossa Seção Especial, acessada pela página principal), resgatando as origens das mazelas no setor, desde a antiga promiscuidade entre interesses públicos e privados, as privatizações de FHC e o estrondoso racionamento de energia no período, até as propostas de mudança no modelo elétrico em avaliação no primeiro mandato do governo Lula.

 

Desde então, ficaram claras a reversão de expectativas de técnicos e estudiosos quanto a uma mudança mais profunda no modelo, resgatando um papel central para a Eletrobras no planejamento, assim como a persistência da ótica do mercado na condução do setor, com privilégio para os grandes consumidores.

 

Alguns recentes acontecimentos que afetam diretamente o setor elétrico - entre eles, a demissão do diretor de Gás e Energia da Petrobras, Ildo Sauer, pelo governo, primordialmente em função de discordâncias no que se referia à administração das termelétricas -, ao lado ainda da crescente importância que vêm adquirindo diferentes opções energéticas face à degringolada ambiental, motivou-nos à retomada de tema tão crucial ao desenvolvimento do país.

 

Para fazê-lo, conversamos com o engenheiro, consultor no campo da energia e ex-assessor da presidência da Eletrobras na gestão de Luiz Pinguelli, Roberto D’Araújo. Crítica em relação às anomalias a que foi conduzido o setor, mas mantendo-se dentro de uma larga, responsável e acurada análise técnica, amplamente acessível aos leigos, essa primeira parte de sua explanação é um retrato cristalino da atual conjuntura elétrica do país.

 

Na segunda parte da entrevista, que será também logo publicada por este Correio, serão avaliadas as opções de energia mais viáveis ao nosso país atualmente, os impactos das hidrelétricas, as críticas dos ambientalistas e o risco de novo apagão.

 

Confira abaixo.

 

CC: Em meados de 2005, o Correio elaborou um caderno especial sobre o setor elétrico, e especialistas por nós consultados (você entre eles) foram unânimes na avaliação, já naquele momento, de que o modelo do setor elétrico inicialmente projetado pelo governo Lula havia ido às calendas. O “Pool”, como uma entidade governamental que agregaria o Operador Nacional de Sistema (ONS), o planejamento e a Câmara de Comércio, e que centralizaria a compra e venda de energia, sem a necessidade de leilões, havia se transformado em um modelo caótico em que todas as distribuidoras compravam de todas as geradoras. Como evoluiu isso de lá pra cá?

 

Roberto D’Araújo: Em primeiro lugar, gostaria de dizer que esse modelo, no qual todas as distribuidoras compram de todas as geradoras, com contratos de longo prazo, é muito melhor do que o anterior, de FHC.

 

Para entender a natureza do sistema brasileiro, único no mundo, é interessante começar compreendendo o Operador Nacional de Sistema, que age como se fosse o dono das usinas. Ele diz quem vai operar, quem vai gerar e quem não vai gerar. Se o dono de usina desobedecer a uma ordem do Operador Nacional de Sistema, ele paga uma multa. Isso pelo seguinte: o sistema é um só. É um monopólio natural. Em função dessa característica, nós imaginávamos, no passado, que o ideal seria que, por força dessa tipologia, seria melhor um comprador único que, provavelmente, deveria ser a Eletrobras. Isso assemelharia operação e comercialização do sistema. Mas o governo não quis dar esse papel à Eletrobras – ou seja, não quis uma Petrobras do setor elétrico e buscou uma maneira alternativa de tentar mimetizar o comprador único, mas sem uma entidade forte.

 

O que se propôs a partir daí? Que a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica fosse uma itermediária, ou seja, todas as distribuidoras contratam de todas as geradoras através da Câmara. Tudo se passa como se alguém estivesse comprando energia na Câmara de Comercialização de energia elétrica e, imediatamente, revendendo. Ou seja, procurou-se percorrer o mesmo caminho, mas sem uma figura estatal forte. Penso que o governo quis que o sistema tivesse uma aparência o mais privada possível, apesar de ter sido, mesmo assim, acusado de estatizante.

 

CC: Mas não teria havido uma alteração do programado, na medida em que se abandonou a centralização em uma figura forte, criando problemas, ou, no mínimo, não revertendo as anomalias diagnosticadas no setor?

 

RD: O importante é que o problema maior do setor não está nessa configuração de que todas as geradoras vendem pra todas as distribuidoras. Com essa configuração, uma usina ruim ou, por outro lado, uma usina barata é dividida por todos. É um sistema que democratiza os males e os benefícios do setor. O que o setor privado queria no modelo anterior? Queriam construir uma usina e, por exemplo, fazer contratos somente com a Eletropaulo e com a Light, que são distribuidoras ricas.  E “sobraria” para o governo vender energia para a Cepisa, por exemplo, que atende ao sofrido Piauí.

 

Teria sido um absurdo total manter um modelo destes. Nesse sentido, houve, portanto, um avanço. O modelo tem outros defeitos, mas, nesse ponto, é bem melhor do que o que se almejava implantar.

 

CC: E quais são esses defeitos mais graves?

 

RD: O grande problema tem sua gênese no racionamento. É preciso ter muito clara a correta dimensão: o racionamento brasileiro foi, até hoje, o maior racionamento já feito em países em tempos de paz. Nenhum país, a não ser os que estão em guerra, teve que cortar 25% de seu consumo.

 

E o que aconteceu depois do racionamento? Nós economizamos uma quantidade monstruosa de energia, e, mesmo assim, tivemos que pagar. Isto devido ao decreto, que estabeleceu que a diferença tarifária, referente ao que não fosse consumido, deveria ser adiantada pelo BNDES, o que, ao final, rebateu nas contas dos consumidores. Contudo, finalizado o decreto, em fevereiro de 2002, surpreendentemente, o mercado de energia elétrica não reagiu. Passou-se a consumir, praticamente, menos 20% da tendência anterior. Resultou, assim, uma situação de enorme sobra de energia.

 

E o que o governo Lula manteve do modelo anterior? A determinação de que, a partir de 2003, os contratos iniciais, das estatais, deveriam ser descontratados 25% por ano. A idéia do modelo de FHC era abrir ao mercado estes contratos das empresas estatais: elas os perderiam, e, em seu lugar, entraria o setor privado. Surpreendentemente, Lula manteve essa determinação, o que ensejou várias reações contrárias de nossa parte, já que estava claríssimo, desde 2002, que o mercado de energia não ia reagir. Mantido o descontrato, obviamente, as estatais iriam ficar com o “mico” em suas mãos.

 

Assim, as estatais acabaram por absorver toda a sobra. Estavam proibidas de fazer contratos e só podiam participar de venda de energia nos leilões. Por sua vez, os leilões não tinham compradores. Considerando que o sistema brasileiro exige a separação entre a parte comercial e a parte operativa, o Operador Nacional de Sistema não considera se, por exemplo, Furnas ou a Chesf não têm contrato. Ele simplesmente determina que as usinas hidráulicas gerem a energia necessária. E o que aconteceu com essa parcela que vinha sendo gerada, mas não tinha contrapartida em contrato? Ela não estava sendo paga por nenhuma distribuidora, mas sim liquidada no Mercado Atacadista de Energia – o MAE.

 

Criou-se daí “o caldo de cultura” para que os grandes consumidores se aproveitassem. Em 2003, o preço que, por exemplo, Furnas recebia por gerar era de R$4/MWh, pois esse “o valor da água”, que, naquele momento, sobrava. Mas, recebendo apenas R$4, Furnas gera a energia que substitui uma usina térmica. Esta, pela lógica operativa, não devia gerar, pois há muita água. Do outro lado, essa Térmica, por ter um “certificado” de energia, pode ter sido contratada no lugar de Furnas, recebendo, por exemplo, 100 reais. O sistema brasileiro, sob esse tipo de regulação, é capaz de produzir essas situações ridículas.

 

Dai resultaram dois gravíssimos defeitos.

 

1 - Utilizaram-se as usinas hidráulicas, remuneradas por uma ninharia, para produzir uma energia garantida, remunerada como energia secundária (barata), mas faturada por outro agente.

 

2 - Além disso, em função da enorme sobra, criou-se uma situação na qual quem pode comprar grandes quantidades de energia, o grande consumidor, passa a ter enorme poder de mercado. O Brasil criou o poder de mercado do lado da demanda.

 

Os consumidores livres, usando essa situação esdrúxula das térmicas - que, pela lógica operativa, sabiam que não iam ser despachadas -, passaram a fazer contratos de curto prazo com base nos certificados dessas térmicas. Conseguiram preços extremamente baixos.

 

Para o futuro do setor elétrico brasileiro, isso é um desastre, pois ninguém constrói uma usina hidrelétrica para vender energia por seis meses. Constrói-se uma usina pra vender energia por vinte, trinta anos. Os contratos de longo prazo é que fazem com que investidores, estatais ou privados, invistam em energia elétrica.

 

CC: Existem situações semelhantes a essa em algum outro país, especialmente naqueles que partiram para um sistema de mercado?

 

RD: Se pensarmos em termos comparativos, na Inglaterra, implantou-se o sistema de mercado. Qual o motivo? Principalmente porque ela precisava se livrar das usinas caras que possuía – usinas a carvão, poluentes, com problemas políticos gravíssimos em função dos sindicalistas da indústria do carvão, que viviam brigando com o governo.  Margareth Thatcher foi dura com eles, implantou o sistema de mercado e trouxe para a Inglaterra a melhor tecnologia de geração térmica, gás ciclo combinado. Portanto, quando a Inglaterra implantou o sistema de mercado, ela estava “se livrando” de uma tecnologia antiga, que era a geração a carvão, muito poluente. Quem não se lembra dos ‘fogs’ londrinos? Eles não existem mais, pois foram extintas as usinas de carvão.

 

Outro exemplo é a Califórnia. Na década de 70, no desespero da crise do petróleo, a Califórnia obrigou as distribuidoras a comprarem qualquer energia de pequenas usinas pelo preço que oferecessem. Portanto, quando a Califórnia implantou o sistema de mercado, ela queria se livrar dessas energias antigas, que se chamavam ‘qualifying facilities’, para substituir o petróleo. E ela conseguiu.

 

E nós, o que fizemos? Por incrível que pareça, implantamos o sistema de mercado para nos livrarmos das hidrelétricas amortizadas, a fonte mais barata de energia. Os contratos iniciais, que foram descontratados em 2003, variavam de 60 a 70 reais por MWh. E quando se deslocou a energia das estatais, além dessa “farra” dos consumidores livres, algumas distribuidoras ainda passaram a contratar de empresas coligadas muito por valores mais caros.

 

O caso mais preocupante é o da CELPE, distribuidora de Pernambuco, que contratou, pra substituir a CHESF, que tinha um preço em torno de 40 reais por MWh, uma térmica dela mesma por quase 150 reais por MWh.

 

CC: Ou seja, as termelétricas passaram a operar de forma lucrativa ao liquidarem seus contratos de fornecimento de energia: compravam energia barata que sobrava das estatais e eram remuneradas como se estivessem incorrendo nos custos mais altos de geração termelétrica.

 

RD: Olha só que bizarro: eu descontrato da CHESF, deixo de pagar os 40 reais, contrato uma térmica por 150, e repasso o valor final pro consumidor, provocando um monstruoso aumento de tarifa. Agora, a térmica de 150 está gerando? Não, quem está gerando é a CHESF!

 

Não vejo como resolver essa confusão, que resulta da adaptação de um modelo mercantil a um sistema que é totalmente cooperativo, e onde uma usina não vende sua própria energia. A usina vende uma parcela do total, parcela que é aquela que o sistema acha que essa usina contribui para o todo.

 

CC: Essa situação esquizofrênica que você está enfatizando não estaria também associada aos contratos de remuneração garantida para as termelétricas, alguns deles pela Petrobras? Ela foi de alguma forma revertida pelo ex-diretor de Gás e Energia da estatal, Ildo Sauer (recentemente demitido do cargo pelo governo), na medida em que ele promoveu a revisão desses contratos?

 

RD: Havia uma forma de implantar termelétricas no Brasil, chamada Merchants, pelos quais as térmicas operariam sem contrato, venderiam somente no mercado atacadista. Toda vez que o preço de curto prazo do Mercado Atacadista de Energia, o MAE, ultrapassasse o valor pelo qual a térmica conseguisse gerar, ou seja, quando o preço do MAE ficasse mais caro que o preço da térmica, ela venderia energia. Ocorre que, toda vez que o preço do MAE estivesse abaixo desse valor, quem cobria o prejuízo era a Petrobras. E toda vez que o preço subisse acima desse valor, a Petrobras só tinha direito à metade do lucro.

 

Por exemplo, se o preço de geração da usina fosse US$ 60, e o preço do MAE subisse a US$ 80, o lucro seria de US$ 20, dos quais US$ 10 iriam para o dono da usina e os outros US$ 10 para a Petrobras.

 

Considerando-se a situação específica do Brasil, agravada com a sobra de energia após o período do racionamento, os preços de energia elétrica são baixos na maioria do tempo. Preços altos são um indicativo de que não há água, de que se está próximo de racionar, o que é uma situação rara. Evidentemente que, nessa conjuntura de alta probabilidade de preços baixos, quem tinha um contrato desse tipo com a Petrobras possuía uma enorme vantagem, pois ela estava correndo um risco muito maior que o risco da contratante.

 

CC: Mas a Petrobras conseguiu reverter essa situação, ao menos em parte?

 

RD: Pelo que sei, a Petrobras perdeu algo em torno de 2 bilhões de dólares com esse tipo de contrato. Ela fez um contrato pelo qual não era obrigada a construir uma usina, mas o que foi gasto daria para ter construído. Acertou-se, portanto, que ela compraria a usina, pra não continuar incorrendo em prejuízos. Ela preferiu ser dona das usinas para estancar o fluxo negativo.

 

Esse era um defeito do setor elétrico relacionado à Petrobras especificamente, mas que, sem dúvida, teve um rebatimento na estrutura do setor, que é muito bizarra. Você não encontra no mundo nada parecido.

 

CC:  Nesse sentido, e considerando um problema recente, a Agência Nacional de Energia Elétrica, a Aneel, com apoio do governo, acabou por aplicar multa à Petrobras pelo não cumprimento de promessas de entrega de gás às usinas que não pertencem à estatal, hoje no total de quatro. O ex-diretor de Gás da estatal justificava esse ato pelo fato de se constituir um pesado desvio empresarial, e também legal, a obrigação de a Petrobras fornecer gás natural, sem contrato e a preços pré-fixados pelo PPT (Programa Prioritário de Termelétricas), para usinas de terceiros. O governo não deveria contar com a energia dessas usinas que, mesmo comercialmente ativas, não possuíam garantia de suprimento firme, segunda a Petrobras. O que você pensa dessa polêmica mais recente no setor?

 

RD: Aqui, outra vez, presente essa peculiar situação do setor elétrico do país.

 

Na maioria dos paises, o dono de uma usina diz que tem uma geradora com características específicas em termos de seu potencial de suprimento e singularidade de funcionamento, e entra no leilão oferecendo um preço para a sua própria energia. Se o preço é alto, ele não gera. No Brasil, isso não acontece; conforme destaquei anteriormente, a energia que uma usina vende ao sistema não é a dela, mas o que ela “agrega” ao sistema em média. Para se estimar esse valor, faz-se uma simulação de como a usina entra no sistema no futuro. Assim a Aneel emite um certificado, explicitando que a usina tem uma determinada quantidade de energia assegurada, que, repito, não é a sua energia, mas uma fatia do sistema total. Se as suposições que são feitas na simulação não se confirmam, é preciso uma revisão. Por exemplo, se não há gás suficiente pra gerar na proporção que foi assumida na simulação, evidentemente que se deve baixar o certificado de energia assegurada da usina. Nesse ponto, a Aneel está com a razão.

 

Agora, o que o Ildo dizia era o seguinte: quando uma usina entra no sistema, ela ganha um certificado de energia, que é um certificado que incrementa a energia assegurada total; entretanto, em uma situação de sobra, na qual as térmicas não geram, sem contrato, e com o preço da energia no Mercado Atacadista lá embaixo, quem se aproveita dessa situação são os consumidores livres. Ao final, configurar-se-ia a seguinte anomalia: eu construo uma térmica, não consigo contrato, e quem consome essa energia adicional (que não me paga nada, pois quem gera é uma hidráulica) são os consumidores livres que estão se aproveitando da situação.

 

É preciso lembrar que houve uma inacreditável liquidação de energia no Brasil. O mundo está ávido por energia, o preço do petróleo está batendo em US$ 90, e o Brasil promoveu nos últimos anos uma liquidação de energia, das estatais, vendida por quase nada.

 

CC: As grandes geradoras brasileiras, especialmente as estatais, continuam sendo descapitalizadas no processo de leilão, qual seja, a oferta de energia continua muito superior à demanda?

 

RD: Tem havido ligeira melhora nesse quadro, uma vez que o período da descontratação, determinado por FHC e mantido por Lula, que foi de 2003 a 2006, já passou. E em 2006 o mercado de energia reagiu um pouco.

 

Mas vale ressaltar que a energia de uma empresa estatal antiga não tem o mesmo custo daquela originária de uma usina nova. Esse é um outro aspecto que o sistema mercantil não reconhece. Uma usina hidrelétrica não dura somente 30 anos, que é o período de concessão. Ela dura 100 anos. Quem se apropria dessa energia excedente? Evidentemente, ela deve ser mais barata. Mas não é o mercado, num momento de sobra, que deve dizer quanto ela vale.

 

Aqui é importante novamente pensar no que é feito mundo afora. Existe um tipo de regulação por custo, ou seja, o regulador avalia o valor do serviço pelo seu custo. Estimam-se os ativos não amortizados, chegando-se a uma tarifa que pague esses ativos, acrescida de uma remuneração. O Canadá e Estados Unidos ainda utilizam esse sistema. Ocorre que o Brasil optou pela regulação via mercado, onde, em situações normais, não se distingue energia amortizada de energia nova.

 

Isso não significa que as empresas estejam no prejuízo, pois fizeram ajustes estruturais, cortando funcionários e reduzindo os investimentos. Mas capacidade de investimento via recursos próprios das estatais reduziu-se muito.

 

CC: Na medida em que os grandes consumidores continuam dando as cartas, escolhendo livremente o fornecedor de energia, você corrobora a idéia de que o “mercado livre” implantado por FHC chegou a extremos no governo Lula, passando de 2% para 30% da energia produzida no país?

 

RD: É verdade. Ou seja, a privatização se transmutou. Não se privatizam mais as empresas, mas sim a energia. E o pior não é isso, mas sim o que vai acontecer no futuro. O erro maior nessa situação não é dos grandes consumidores, que estão no seu papel. A sociedade brasileira, em função da sua complexidade, nem conhece e a situação, e o governo, com uma regulação incompleta, se omite.

 

Os consumidores cumpriram seu papel: aproveitaram-se dos preços baixos e fizeram contratos de curto prazo. Mas como acabaram as sobras, eles não estão conseguindo renovar esses contratos. Ninguém pensou em construir usinas para esses consumidores livres, até porque ninguém está interessado em construí-las pra vender energia por R$ 40/MWh, que era o preço dos contratos de curto prazo.

 

Podemos, assim, concluir, que, setorialmente, sob a ótica dos grandes consumidores, houve uma situação favorável, em que eles conseguiram um baixo preço para um insumo básico. Mas considerando-se que a sociedade necessita de um mercado saudável de energia elétrica, a situação beira a irresponsabilidade, já que mesmo contratos de 2 anos não geram novas usinas. Todo mundo sabe disso.

 

CC: Considerando acontecimentos recentes, poder-se-ia inferir de seu relato sobre o setor que, na medida em que, por exemplo, o ex-diretor de Gás e Energia da Petrobras, Ildo Sauer, pôs o dedo na ferida e tentou romper com algumas anomalias, acabou sendo vencido na queda de braço com o governo, em função da influência dos grandes consumidores?

 

RD: Acredito que o Ildo tenha saído por questões políticas. E, realmente, lamento profundamente essa utilização dos cargos das estatais como moeda política.

 

Sou originário de Furnas, onde trabalhei durante vinte e seis anos, fui do Conselho de Administração logo no início do governo Lula, e acho que fui mandado embora justamente por ter protestado, lá dentro, contra a descontratação de energia das estatais - o que fiz por escrito. Lamento, assim, que a empresa esteja sob o comando de alguém que, além de não entender do setor, esteja a serviço de interesses partidários.

 

Evidentemente que você pode ter na presidência de uma estatal alguém que não entenda do setor; basta ter bons assessores. Mas qual é a função que tem um partido dentro de uma estatal? Isso, não consigo entender.

 

Realmente acho que o Ildo foi embora por injunções políticas, mas ele fez o que pôde. Manter usinas termelétricas com aqueles contratos esdrúxulos, através dos quais a Petrobras pagava tudo, era inconcebível. Nos contratos havia a previsão de tribunais arbitrais e a briga judicial demoraria anos. A decisão de não esperar e comprar as usinas foi acertada.

 

E uma outra questão é o preço do gás - o gás tenderá ser uma commodity no futuro. A Petrobras fica em conflito, já que os acionistas querem que ela aja como uma petrolífera a exemplo de todas.  Ademais, com a falta de estudos para projeção de novas hidrelétricas, as térmicas vão ter que entrar.

 

Estamos diante de um problema muito sério. E, mais uma vez, ressalto que a origem de tudo está lá na década de 90, com a destruição do planejamento do setor elétrico e da Eletrobrás.

 

CC: A origem dos problemas está obviamente lá atrás, mas o governo Lula não fez muito pra reverter isso.

 

RD: Fez muito pouco. Defeitos do modelo anterior permaneceram.

 

CC: A ministra da Casa Civil, Dilma Roussef, é quem realmente continua dando as cartas do setor elétrico?

 

RD: Parece que sim.


 

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