‘No maior campo de petróleo já descoberto do mundo, Dilma conseguiu anular até os avanços de Lula’

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Valéria Nader, Da Redação
22/10/2013

 

 

O que realmente aconteceu no dia 21 de outubro de 2013, com o primeiro leilão do pré-sal do país? É para responder a esta pergunta que, novamente, o Correio conversou com o engenheiro, ex-presidente e atual vice-presidente da AEPET (Associação de Engenheiros da Petrobras), Fernando Siqueira.

De um lado, o governo; de outro, a oposição; e, em meio a eles, a mídia privatista. Todos juntos têm produzido uma avalanche de informações absolutamente desencontradas. Uma guerrilha comercial e pré-eleitoral, onde cada um levanta dados e faz análises de acordo com seus próprios interesses.

 

Enquanto o governo faz um típico discurso ufanista (veja-se pronunciamento da presidente Dilma na noite logo após o leilão), citando o um trilhão de reais que poderão ser aportados ao país nos próximos 35 anos, e os montantes que serão daí direcionados para a sofrível educação e saúde nacionais, a oposição se enrosca e se contradiz em escala crescente. Vai da órbita nitidamente liberal, com acusações a um pretenso dirigismo estatal e às imposições draconianas que teriam sido impostas aos possíveis participantes do leilão, até a adoção da oratória nacionalista, lamentando a utilização irresponsável do caixa da Petrobras pela União, drenando recursos da estatal. E muito bem afinada com este discurso oposicionista está a maioria da grande imprensa do país.

 

Por trás de tantos clichês e lugares comuns, algumas vozes dão, no entanto, o tom do mundo real. Baixa concorrência no leilão por conta de intervencionismo estatal exacerbado? Bem longe disso, diz Siqueira: “A meu ver, foi um jogo de cartas marcadas. A baixa concorrência foi proposital para reduzir a competição e pagar um percentual ridículo sobre um campo descoberto testado e comprovado como o maior do mundo (...) Outro fator que pesou foi a denúncia de espionagem feita pelo Edward Snowden: a Halliburton fornece o software Open Wells, que processa todos os dados estratégicos da Petrobrás. (...) A cada 72 horas, uma massa de dados da Petrobrás é remetida para os Five Eyes: EUA, Inglaterra, Austrália, Canadá e Nova Zelândia. Para atenuar o motivo mais que suficiente  para o cancelamento dos leilões, as empresas dos EUA e Inglaterra saíram.. Mas o braço europeu do cartel ficou: Total e Shell, que participaram, pertencem aos mesmos donos”.

 

Quanto aos números que vêm sendo arrolados pelo governo, Siqueira é também assertivo: “Estes 15 bilhões de dólares pagos à vista, para cobrir o pagamento de juros extorsivos, causaram a redução da oferta em óleo/lucro, que seria o mais importante e que caracteriza a partilha. E, a cada 0,5% ofertado a menos no óleo/lucro, a União perde um bônus, ou seja, perde mais de 15 bilhões. Libra tem reservas superiores a 15 bilhões de barris, a US$ 100 por barril, o que leva a um valor de US$ 1,5 trilhão, ou R$ 3,3 trilhões. Assim, 0,5 % de 3,3 trilhões de reais é mais do que um bônus. Uma estratégia medíocre”.

 

Leia a seguir a entrevista completa.

 

Correio da Cidadania: Qual a sua visão sobre a decisão do governo de persistir no leilão de Libra, ocorrido na segunda, 21 de outubro, a despeito de tantas vozes em contrário de estudiosos, técnicos e movimentos sociais?

 

Fernando Siqueira: Em primeiro lugar, a Dilma traiu totalmente o seu discurso de campanha, onde ela disse que privatizar o pré-sal é crime, é tirar dinheiro da saúde, da educação, segurança e infraestrutura. E isto se dá por uma questão eleitoreira.

 

Ela precisa mostrar que o seu falido modelo econômico funciona. Mas amealha 15 bilhões de dólares para cumprir o pagamento dos juros extorsivos aos bancos e vende o futuro de três gerações de brasileiros. Estes 15 bilhões pagos à vista causaram a redução da oferta em óleo/lucro, que seria o mais importante e que caracteriza a partilha. E, a cada 0,5% ofertado a menos no óleo/lucro, a União perde um bônus, ou seja, perde mais de 15 bilhões. Libra tem reservas superiores a 15 bilhões de barris, a US$ 100 por barril, o que leva a um valor de US$ 1,5 trilhão, ou R$ 3,3 trilhões. Assim, 0,5 % de 3,3 trilhões de reais é mais do que um bônus. Uma estratégia medíocre.

 

Correio da Cidadania: O que você pode dizer do fato de ter havido um único vencedor no leilão, que foi o único concorrente, o consórcio composto por Petrobras, Shell, Total e estatais chinesas? O fato de a Petrobras ser a cotista majoritária traz algum refresco para os interesses do país?

 

Fernando Siqueira: O resultado foi o pior possível; 40% do petróleo irão para o consórcio para pagar os custos de produção; 15% dos royalties irão para o consórcio (ele paga os royalties em reais e recebe de volta em petróleo), e 60% destes 55% irão para as estrangeiras; a União vai receber 41,65% dos 45% que sobraram, ou seja, 18,72% em média, pois o edital criou uma variação nesse percentual que favorece o consórcio. Uma excrescência inédita em contratos de partilha.

 

Explicando: quando as condições forem muito favoráveis (produção acima de 25.000 barris por poço), o consórcio dá para a União mais 3,91% (41,65+3,91 = 45,56%). Mas, quando as condições forem as piores, ou seja, produção diária abaixo de 4.000 barris/dia e o petróleo abaixo de US$ 60 por barril, a União cede 31,72% do seu percentual (41,65 – 31,72= 9,93) para o consórcio. Assim, o que vai para a União variará de 9,93% a 45,56 do óleo/lucro, que é 45%. Logo, a União receberá de 4,45% (9,93x45) a 20,5% (45,56x45) do total do óleo produzido. Então, o consórcio vencedor ficará com 95,55% a 79,5% do petróleo de Libra; 40% disto irá para a Petrobrás e 60% para empresas estrangeiras.

 

Portanto, mesmo a União recebendo 15% de royalties em dinheiro e 15% de Imposto de Renda, o resultado foi péssimo para o país. Lembro que, no mundo, os países exportadores ficam com a média de 80% do óleo produzido.

 

Correio da Cidadania: O último boletim da Auditoria Cidadã da Dívida traz, de fato, um dado assustador quanto ao percentual mínimo de 42,65% que a União receberia em óleo excedente: 'observando-se o Edital do leilão (págs. 40 e 41), verifica-se que, a este valor ofertado pelas petroleiras, serão aplicados redutores de até 31,72%, fazendo com que a parcela da União possa cair para ínfimos 9,93%'. Diz ainda o boletim que 'a Petrobrás – que terá uma participação mínima de 30% no consórcio vencedor do leilão – já foi em grande parte privatizada, pois seu lucro é distribuído preponderantemente aos investidores privados, e a parcela pertencente à União deve ser utilizada obrigatoriamente para o pagamento da questionável dívida pública, conforme manda a Lei 9.530/1997'. O que você poderia comentar face a cada uma dessas duas alegações?

 

Fernando Siqueira: A Auditoria da Dívida presta grande serviço ao país ao denunciar os juros absurdos pagos aos banqueiros, e esses dados vêm ao encontro do que acabei de mencionar. O ministro Lobão argumentou comigo que não poderia devolver Libra à Petrobrás (este campo havia sido cedido a ela por conta da cessão onerosa) porque ela tem ações em mãos privadas, sendo 31% no exterior. Respondi que a opção do governo era muito pior: o leilão foi dirigido para empresas estrangeiras e elas têm 100% das ações no exterior. A Petrobrás tem 48% do capital em mãos do governo, que a controla, 10% em fundos de pensão de trabalhadores brasileiros e 3% são do FGTS de trabalhadores.

 

Correio da Cidadania: Qual é o significado, a seu ver, da baixa concorrência para o leilão, atribuída pela mídia comercial  ao ‘intervencionismo’ e ‘estatismo’ do governo Dilma?

 

Fernando Siqueira: A meu ver, foi um jogo de cartas marcadas. A baixa concorrência foi proposital para reduzir a competição e pagar um percentual ridículo sobre um campo descoberto testado e comprovado como o maior do mundo. Previ isto em audiência pública no Senado no dia 25/9/2013.

 

Outro fator que pesou foi a denúncia de espionagem feita pelo Edward Snowden, que também mencionei na audiência: a Halliburton fornece o software Open Wells, que processa todos os dados estratégicos da Petrobrás. Seus analistas de sistemas têm acesso a todas as informações da Companhia. Snowden revelou que, a cada 72 horas, uma massa de dados da Petrobrás é remetida para os Five Eyes: EUA, Inglaterra, Austrália, Canadá e Nova Zelândia. Para atenuar o motivo mais que suficiente para o cancelamento dos leilões, as empresas dos EUA e Inglaterra saíram... Mas o braço europeu do cartel ficou: Total e Shell, que participaram, pertencem aos mesmos donos.

 

Correio da Cidadania: Que papel terá a estatal PPSA (Pré-Sal Petróleo S/A) como gerenciadora dos blocos leiloados?

 

Fernando Siqueira: Deverá ter um papel fundamental: evitar que as duas maiores causas de fraudes na produção mundial ocorram: o superfaturamento dos custos de produção (ressarcidos em petróleo) e a medição a menor do petróleo produzido. Todavia, a Dilma nomeou raposas para esse galinheiro: o presidente será o Osvaldo Petrosa, primeiro brasileiro a defender o fim do monopólio e braço direito do David Zilbertstajn na ANP; e Antonio Claudio, sócio do presidente do IBP (Instituto Brasileiro de Petróleo), que na realidade comanda o lobby em favor das empresas estrangeiras por aqui. Este é o preocupante futuro desta empresa: fiscalizar quem eles defendem.

 

Correio da Cidadania: Dentre as vozes que se levantam a favor do leilão, a partir de argumentos pretensamente progressistas, está a do ex-diretor da ANP Haroldo de Lima. Para Lima, e de acordo com o discurso da própria presidente Dilma após o leilão, há uma diferença enorme entre privatização do patrimônio público, o que foi feito com o sistema Telebrás, e a concessão de um serviço, caso do petróleo –  cujo sistema contratual, no caso do pré-sal e em função do interesse nacional, teria sido, inclusive, alterado da modalidade concessão para a de partilha, e poderia render à União até 80% da produção total de Libra, a se considerarem a soma dos 15% de royalties, o mínimo de 41,65% de excedente de óleo para a União e os impostos. O que responderia àqueles que assim argumentam?

 

Fernando Siqueira: O Haroldo Lima, depois de velho, assumiu o triste papel de lobista de multinacionais e tem mentido de forma vergonhosa. Como já afirmei, o máximo que ficará com a União será a média de 30% a 50%, sendo a grande parte em dinheiro. O petróleo, que é o bem ultra-estratégico, irá para o consórcio (60% para o exterior).

 

O edital do leilão é tão ruim que conseguiu nivelar a partilha com o contrato de concessão, que é péssimo. Sendo Libra campo gigante, na concessão apareceria a Participação Especial, que seria da ordem de 20%; e, como os royalties subiram para 15%, com a concessão, a União ficaria com 35%, que, somado o Imposto de Renda, chegaria a 50%.

 

Isto atesta o absurdo desse leilão: num campo já descoberto, testado e comprovado como o maior do mundo, os avanços conseguidos pelo governo Lula foram anulados pelo governo Dilma. Um retrocesso brutal.

 

Correio da Cidadania: Diz-se, também, dentre os defensores do leilão, entre eles o citado Haroldo de Lima, que ‘o quadro mundial no setor petrolífero se alterou bastante. As onze maiores petroleiras detentoras de reservas do mundo passaram a ser estatais, entre as quais a Petrobras. E nenhuma delas se apoiava mais em monopólio de petróleo (...)  só sobrevivendo em um país dos que têm petróleo, que é o México'. O que diria aqui?

 

Fernando Siqueira: Diria que é o contrário: 90% das reservas mundiais hoje estão em mãos de empresas estatais. O cartel que já dominou 90% das reservas tem hoje menos de 5%. Assim, na Venezuela (300 bilhões de barris – a maior do mundo), no México, na Rússia, no Irã, há monopólios. O Iraque tinha o monopólio, mas o país foi violentado. Nos Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita, todos têm suas reservas controladas pelo Estado. Ou seja, os lobistas não param de tentar enganar as pessoas.

 

Correio da Cidadania: Existe, a seu ver, alguma possibilidade de cancelar os resultados desse leilão, até mesmo em função da quantidade de recursos que estão rolando na justiça?

 

Fernando Siqueira: Acho que sim. Eu denunciei pelo menos três ilegalidades que subsidiaram as ações, a saber: a) o artigo 2º da nova lei define áreas estratégicas: são aquelas com baixo risco e alta produtividade. Libra tem risco zero e é o maior campo do mundo; o artigo 12º diz que áreas estratégicas devem ser entregues à Petrobrás em contrato de partilha e sem leilão; b) o edital cria uma variação do percentual, como já citado, que fará com que, na maior parte do tempo, o percentual do óleo/lucro da União fique abaixo daquele estipulado pelo CNPE (Conselho Nacional de Política Energética), ferindo a Lei; c) o artigo 2º (2,8.1) e o item 6.3 do contrato dizem que o consórcio terá o direito de ser ressarcido, em óleo, do valor do royalty que pagar. Isto fere as Lei 12.351/10 (e 12.734/12) do petróleo no artigo 42 § 1º, que diz que o royalty não pode ser ressarcido em nenhuma hipótese.

 

Portanto, ilegalidades não faltam. O que tem faltado é independência e coragem aos juízes para julgar com isenção.

 

Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania.

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