Estados Unidos: a irresistível chegada da recessão

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Jorge Beinstein
11/06/2007

 

 

Acaba de se tornar conhecida a cifra definitiva do crescimento da economia dos Estados Unidos durante o primeiro trimestre de 2007. A porcentagem inicial avaliada em 1,3% anualizados foi reduzida para 0,6%. Trata-se da taxa mais baixa dos últimos quatro anos, que confirma a tendência para a desaceleração já iniciada no último trimestre de 2006.

 

Quando em fevereiro deste ano Alan Greenspan, ex-presidente do Fed (o banco central norte-americano), anunciou a possibilidade de os Estados Unidos entrarem em recessão antes do final de 2007 (sua observação coincidiu com a derrocada bursátil desencadeada pela queda da bolsa de Shangai) choveram desmentidos de peritos e autoridade monetárias dos países centrais. Mas a realidade não pode ser exorcizada com manipulações midiáticas. A acumulação de déficits, a degradação do dólar e, sobretudo, o estouro da bolha imobiliária tornavam inevitável o desenlace. A bolha imobiliária, peça mestra da estratégia econômica da administração Bush juntamente com a avalanche de despesas militares (com a loucura militarista que a acompanhou) e as reduções fiscais, conseguiu tirar a economia estadunidense do estancamento, inflando um consumo não apoiado pelo desenvolvimento produtivo local (a decadência do sistema industrial norte-americano já tem muitos anos). Somaram-se as dívidas internas e externas, os créditos fáceis - em especial os destinados às habitações, que cresceram de maneira desmesurada -, o déficit energético expandiu-se. Ao final de 2006, a dívida total estadunidense (pública, empresarial e pessoal) chegou aos 48 trilhões de dólares: mais de três vezes o produto interno bruto norte-americano e superior ao produto bruto mundial. As dívidas com o exterior saltavam para 10 trilhões de dólares; a corda não podia ser esticada indefinidamente.

 

Tudo vai mal

 

A estratégia do governo Bush pode ser sintetizada como a combinação de duas operações que, apoiando-se mutuamente, deveriam ter relançado e consolidado o poderio imperial dos Estados Unidos: a expansão rápida de uma bolha consumista-financeira para produzir um forte arranque econômico associada a uma ofensiva militar sobre a Eurásia que lhe daria a hegemonia energética global e daí a primazia financeira, encurralando as outras potências (China, União Européia e Rússia).

 

A partir de 2001, apostou numa contundente vitória das suas forças armadas, que lhe permitiria controlar militarmente a faixa territorial que vai desde os Balcãs no Mediterrâneo Oriental até o Paquistão, atravessando a Turquia, a Síria, o Iraque, o Irã, as ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central, a Bacia do Mar Cáspio e o Afeganistão, atapetando-a de implantações militares que vigiariam um complexo leque de protetorados.

 

Os preparativos da ofensiva haviam-se desenvolvido ao longo dos anos 1990 sob governos republicanos e democratas: a primeira Guerra do Golfo, os intermináveis bombardeios sobre o Iraque ao longo de toda a década, a guerra do Kosovo. Tratou-se de uma “política de Estado” que incluiu os dois partidos governantes e o conjunto do sistema de poder. Eles sabiam que a bolha econômica, lançada paralelamente à ofensiva militar, não podia sustentar-se muito tempo: os desajustamentos financeiros iriam acumular e a bolha de créditos estimulando a especulação imobiliária acabaria por desinchar; os anos de 2005 e 2006 apareciam como uma barreira temporal intransponível.

 

Mas nesse momento, apostavam os falcões, a vitória militar do Império permitiria redefinir as regras do jogo econômicas do planeta. Os cowboys do Pentágono chegariam just-in-time para auxiliar os magos das finanças. Mas tudo saiu errado; os cowboys atolaram-se no Iraque e a ofensiva fulminante sobre a Eurásia fracassou na primeira batalha importante enquanto o globo especulativo entrou em crise e já nenhum punho de ferro pode salvá-lo.

 

Sinal de alarme, desaceleração, interrogações

 

A partir de 2005, peritos de orientações ideológicas muito diversas começaram a alertar acerca do próximo esvaziamento da bolha imobiliária. Em agosto desse ano, a revista The Economist assinalava as conseqüências mundiais da inevitável contração do globo especulativo (1). Mas nos Estados Unidos, onde o fosso entre os empréstimos imobiliários e os rendimentos pessoais crescia sem cessar, a festa financeira continuou imperturbável aos alertas, ditando o ritmo das outras potências econômicas. O contágio chegou a regiões muito remotas da periferia.

 

Finalmente, em 2006, os preços das habitações começaram a descer e a bolha estadunidense contraía-se inexoravelmente. A partir desse momento, seu impacto negativo sobre a procura e a seguir sobre o conjunto do Produto Interno Bruto era só uma questão de tempo.

 

Ao final de 2006 apareceram os primeiros sintomas de desaceleração econômica, que se tornaram dramáticos durante o primeiro trimestre de 2007. Em fevereiro, produziu-se um abalo nas bolsas internacionais, afetando em primeiro lugar a China, país extremamente dependente da capacidade de compra do mercado norte-americano.

 

Agora, em meados de 2007, independentemente de altos e baixos e recuperações efêmeras, a interrogação central é como e a que ritmo o arrefecimento se propagará ao conjunto da economia mundial. Por exemplo: como afetará os preços das matérias-primas, em primeiro lugar o do petróleo, empurrado para cima pelo processo de redução de reservas (a aproximação do Pico Petrolífero global) e pressionado para baixo pela desaceleração dos grandes sistemas industriais?

 

Enfrentaremos logo uma recessão com queda geral de preços ou antes uma combinação de recessão e inflação semelhante à estagflação dos anos 1970? Assistiremos a grandes contrações de negócios financeiros ou a sua combinação com novos surtos especulativos (por exemplo, euforias nos mercados de metais preciosos)?

 

Por fim, quais serão as conseqüências políticas, militares e ideológicas desta grande perturbação do capitalismo mundial? De algo devemos estar certos: esta crise não se parece com nenhuma das anteriores, pois este nível de hipertrofia financeira nunca fora atingido. Também é inédito o grau de interdependência entre todas as grandes economias e, além disso, misturam-se perigosamente aspectos característicos de uma crise de sobreprodução com outros próprios de uma situação de subprodução de produtos decisivos para a sobrevivência do sistema. Este último exprime-se por agora só no tema energético, mas ao mesmo tempo está impulsionando outras penúrias - por exemplo, a de alimentos devido à utilização de terras cultiváveis na produção de biocombustíveis.

 

Para além das conspirações

 

Seria ingênuo atribuir a crise à aplicação de uma estratégia errônea por parte da Casa Branca. Devemos inserir a referida estratégia no contexto mais amplo da decadência da sociedade norte-americana e a mesma como parte (decisiva) de um processo de crise global. Se focalizarmos o médio prazo, desde princípios dos anos 1990 (fim da guerra fria) observaremos como a economia estadunidense foi se convertendo num sistema baseado na especulação financeira e no déficit comercial, ao qual se acrescentaram o déficit fiscal e as dívidas de todo tipo num processo geral de concentração de rendimentos.

 

Em suma, uma dinâmica elitista e parasitária, cuja primeira etapa teve uma certa aparência produtivista em torno das chamadas indústrias de alta tecnologia. Seu centro motor foi a euforia nas bolsas e as célebres “ações tecnológicas” expressas no índice Nasdaq, que crescia vertiginosamente.

 

Os peritos-comunicadores da época assinalavam que se havia posto em andamento um círculo virtuoso que empurrava a economia norte-americana para uma espécie de prosperidade infinita. Segundo eles, a expansão do consumo alentava novos desenvolvimentos tecnológicos que impulsionavam a produtividade e, em conseqüência, os rendimentos e, portanto, o consumo, etc. Na realidade, o que estava a ocorrer era uma euforia nas bolsas que proporcionava rendimentos financeiros presentes e futuros a empresas e indivíduos, incitando-os a gastar mais e mais.

 

A festa acabou no início da década atual e a economia estancou-se. A nova administração republicana não encontrou outro caminho de saída senão uma nova bolha muito maior que a anterior, desta vez baseada numa avalanche de créditos imobiliários.

 

Junto ao delírio financeiro, desenvolveram-se outros fenômenos como a criminalidade e a criminalização estatal das classes baixas, em especial de algumas minorias como a dos latino-americanos e afro-norteamericanos pobres ou a degradação do sistema político (corrupção, submissão aos grupos de negócios ascendentes).

 

Em especial, criou-se uma convergência de interesses que foi reconfigurando o tradicional “complexo militar industrial” para transformá-lo numa extensa rede de grupos financeiros, petroleiros, industriais, políticos, militares e paramilitares mafiosos. Em princípios da presente década verificou-se um salto qualitativo, representado pela chegada de George W. Bush e seus falcões.

 

Num enfoque a mais longo prazo, desde o fim do padrão dólar-ouro em 1971 e da crise planetária que o seguiu, observamos uma crise de sobreprodução que foi adiada, emplastrada, na base da expansão dos negócios financeiros e do superconsumo norte-americano inscrito numa corrente mundial de concentração de rendimentos.

 

A aventura militar-financeira não foi uma descarga súbita ou um desvio neofascista do sistema de poder norte-americano e sim um arranque estratégico lógico (fortemente impregnado de componentes fascistas) do núcleo central de poder dos Estados Unidos que desse modo prolongava e acentuava as tendências econômicas, ideológicas e políticas dominantes - que foram crescendo até se tornarem hegemônicas a partir da presidência Reagan, passando por Bush pai e Clinton até chegar aos auto-atentados do 11 de Setembro de 2001 e à invasão do Iraque.

 

O fim das ilusões

 

A prosperidade fictícia do Império forjou, sobretudo nos anos 1990, a ilusão de um poder mundial avassalador perante o qual só era possível adaptar-se. Surgiu uma direita global triunfalista que cobriu com um discurso neoliberal a orgia financeira, mas também um progressismo cortesão que na base da submissão ao capitalismo pretendia adorná-lo com matizes humanistas.

 

Tanto para uns como para outros a vitória do universo burguês era definitiva ou pelo menos de muito longa duração. Mas quando, ao iniciar-se a presente década, começaram a despontar as primeiras fissuras do sistema, optaram em geral por negar fanaticamente a realidade: o declínio do dólar ou o superendividamento norte-americano eram apresentados como expressões de uma recomposição positiva na marcha do capitalismo global, a desordem financeira como o ocaso da especulação superado por uma próxima reconversão produtivista da economia de mercado, enfim, cada amostra de fracasso era transformada em demonstração de rejuvenescimento.

 

É possível que isso ainda continue por mais algum tempo. Inclusive, o declínio dos Estados Unidos e de outras potências arrastadas pelo gigante pode dar lugar a ilusões passageiras acerca da ascensão de capitalismos nacionais ou regionais autônomos na periferia ou em reconversões milagrosas de algumas economias centrais. O truque de substituir a realidade pelos desejos ilusórios costuma dar bons resultados a curto prazo. O problema é que as grandes tendências da história acabam por impor-se.

 

(1) "The global housing boom. In come the waves", The Economist, 16/06/2005.

 

 

Jorge Beinstein é economista argentino.

 

Fonte: http://www.resumenlatinoamericano.org

 

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