Correio da Cidadania

“É uma vergonha Eduardo Cunha comandar o impeachment”

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O impeachment da presidente Dilma ancorado nas chamadas pedaladas fiscais foi aprovado pela Comissão que tratava do assunto na Câmara e sua votação foi marcada para domingo, que promete ser um dia marcante na história política nacional. Para falar deste tema e da crise política, o Correio da Cidadania conversou com o deputado federal Ivan Valente, que não tem dúvida em qualificar de golpe a maneira como se conduz o processo.

 

“É um escândalo que o processo de impeachment tenha sido acolhido como retaliação de Cunha ao governo. O segundo aspecto que torna o impeachment ilegítimo é a inexistência de crime de responsabilidade. Se essas operações fiscais forem interpretadas como crime de responsabilidade, 17 governadores deveriam ser depostos, além de todos os presidentes que precederam Dilma. Sem crime de responsabilidade, o impeachment é golpe”, pontuou.

 

Apesar da indignação com toda a hipocrisia que ronda o desejo de derrubar a presidente Dilma, o deputado faz uma análise de maior fundo a respeito do que estaria em jogo na condução de um Brasil em recessão e cuja classe empresarial exige inúmeras reformas.

 

“Nunca, desde o século 19, a burguesia gozou de tamanha estabilidade quanto na década passada, sob os dois governos Lula. Agora que a crise chegou pra valer ao país, abriu-se uma disputa sobre o fundo público. Muitas das frações burguesas já não acreditam que Dilma tenha condições de liderar uma saída para a crise. Por isso apostam na via do impeachment. A crise, portanto, tem origem numa disputa intra-burguesa”, explicou.

 

Além de ressaltar a necessidade de muita mobilização dos setores populares e progressistas, qualquer seja o desfecho do processo, Ivan lamenta o “escárnio” que significa uma comissão de maioria indiciada, mas lembra que “Cunha negou peremptoriamente que possuísse contas e recebeu o apoio de todos os líderes partidários, do PT ao PSDB. Ele é produto de um sistema político fisiológico, corrompido, dos erros do PT e do cinismo da oposição demo-tucana. Espero que o Conselho de Ética ou o próprio STF possa removê-lo da presidência da Câmara, para o bem da democracia brasileira”.

 

A entrevista completa com Ivan Valente pode ser lida a seguir.

 

Correio da Cidadania: Como avalia a crise política que sacode o Brasil e mantém o governo Dilma na paralisia? Qual a complexidade de todo esse quadro, numa visão de perspectiva também histórica?


Ivan Valente: O sistema político brasileiro entrou em pane. E isso se deve à dinâmica perversa que fundiu interesses econômicos e políticos num mesmo balaio. O financiamento privado de campanha é o meio, não o fim. Ao se render aos ditames da governabilidade, abandonar um programa de reformas radicais e ignorar a mobilização popular, o PT e seus aliados à esquerda fizeram um grande favor às forças do capital.

 

Nunca, desde o século 19, a burguesia gozou de tamanha estabilidade quanto na década passada, sob os dois governos Lula. Agora que a crise chegou pra valer ao país, abriu-se uma disputa sobre o fundo público. As diversas frações da burguesia estão buscando unificar-se em torno de uma alternativa. O governo Dilma, ao jogar no lixo o programa com que foi eleita em 2014, busca incidir sobre a disputa oferecendo um programa a tais setores, baseado na austeridade fiscal.

 

Mas muitas das frações burguesas já não acreditam que Dilma tenha condições de liderar uma saída para a crise. Por isso apostam na via do impeachment. A crise, portanto, tem origem numa disputa intraburguesa. Só recentemente os setores populares entraram em cena pra valer, questionando tanto a saída do impeachment quanto o ajuste fiscal de Dilma.

 

Correio da Cidadania: O que pensa do processo de impeachment da presidente, aprovado pela Comissão que analisa seu pedido?


Ivan Valente: O impeachment é um processo previsto na Constituição Federal. No entanto, o processo em curso, aceito por Eduardo Cunha como represália ao governo Dilma, é duplamente ilegítimo. Em primeiro lugar, porque é acolhido por um presidente da Câmara dos Deputados denunciado no Supremo Tribunal Federal, sem nenhuma condição política de liderar qualquer investigação contra quem quer que seja. Cunha já deveria ter sido julgado pelo Conselho de Ética, o que teria acontecido não fossem as sucessivas manobras de que se utilizou para barrar o processo. Como isso não aconteceu, temos a expectativa de que ele seja afastado pelo Supremo Tribunal Federal e pague pelos crimes que cometeu.

 

É um escândalo que o processo de impeachment tenha sido acolhido como retaliação de Cunha ao governo. O segundo aspecto que torna o impeachment ilegítimo é a inexistência de crime de responsabilidade. A acusação que dá sustentação à representação de Janaína Paschoal e Ives Gandra Martins são as chamadas “pedaladas fiscais”. Se essas operações fiscais forem interpretadas como crime de responsabilidade, 17 governadores deveriam ser depostos, pra não falar de todos os presidentes que precederam Dilma. Sem crime de responsabilidade, o impeachment é golpe.

 

Correio da Cidadania: O que você comenta da comissão de impeachment, com mais de 30 parlamentares também investigados no comando dos trabalhos?


Ivan Valente: É um escárnio. Mas expressa bem o sistema político brasileiro. Na Câmara existe a bancada da bala, do agronegócio, das igrejas pentecostais etc. Cada parlamentar responde a interesses bem pontuais, descolados das maiorias populares. Dessa forma, não é de espantar que muitos deles estejam envolvidos em escândalos de corrupção: se um parlamentar sobrevive politicamente como representante de um segmento que o beneficia e é beneficiado por ele, o recebimento de vantagens indevidas torna-se algo comum.

 

Correio da Cidadania: Ainda sobre Eduardo Cunha, como é possível vê-lo pontificando na política parlamentar diante de denúncias bastante robustas de recebimento de propinas, contas na Suíça etc., ainda que seja um operador muito sagaz dos regimentos parlamentares?


Ivan Valente: No dia em que Eduardo Cunha esteve na CPI da Petrobrás, o PSOL foi o único partido que o interpelou diretamente sobre a existência de contas suas na Suíça, até então desconhecidas. Cunha negou peremptoriamente que possuísse contas e recebeu o apoio de todos os líderes partidários, do PT ao PSDB. Assim, Cunha é o produto de um sistema político fisiológico, corrompido. Ele é produto dos erros do PT e do cinismo da oposição demo-tucana. Como disse, espero que o Conselho de Ética ou o próprio STF possa removê-lo da presidência da Câmara dos Deputados o mais rápido possível, para o bem da democracia brasileira.

 

Correio da Cidadania: E o que pensa da repactuação de cargos e ministérios pretendida pelo governo, caso escape dessa tormenta?

Ivan Valente: A famigerada “governabilidade” sempre esteve sustentada no fisiologismo e no toma lá dá cá. Não é de espantar que o governo lance mão de recursos dessa natureza para conquistar os votos necessários para barrar o impeachment. É condenável, sem dúvida. Mas não chega a ser surpreendente.

 

O mais inusitado é a posição de Dilma: não pode demitir os ministros remanescentes do PMDB, porque juraram lealdade à presidente e têm alguns votos na Câmara dos Deputados – que podem ser decisivos na votação do impeachment – nem pode negociar seus cargos imediatamente.

 

Enquanto isso, partidos como PP e PR negociam ou negociaram ao mesmo tempo sua permanência no governo Dilma e sua posição num eventual governo Temer. É o retrato do que são esses partidos.

 

Correio da Cidadania: Quanto à oposição conservadora, como enxerga sua atuação neste momento?


Ivan Valente: A oposição demotucana é ontologicamente golpista. Apesar das origens democráticas do PSDB e PPS, hoje esses partidos se converteram na “vanguarda do retrocesso”. Como franco atiradores, não têm nada a perder, por isso se jogam de corpo e alma no impeachment. No entanto, só aconteceu depois de muita vacilação. Só quando o grande empresariado e os ramos financistas da economia engrossaram o “Fora Dilma” é que tais partidos realmente se engajaram. Sem dúvida eles sairão fortalecidos do processo, o que exigirá ainda mais mobilização social, independentemente do resultado do processo do impeachment.

 

Correio da Cidadania: Como acredita que prosseguirá a Operação Lava Jato? Tem cheiro de pizza?


Ivan Valente: A Operação Lava Jato cumpriu, no geral, um papel positivo. Quem imaginaria ver o presidente da Odebrecht atrás das grades? É fato que havia muita corrupção na Petrobrás, e que beneficiava agentes públicos, partidos e operadores. Não é novidade. A novidade é que a operação também alcançou os corruptores, que são as empreiteiras.

 

Há setores que buscam enterrar a Lava Jato tão logo Dilma seja derrubada. Lutaremos contra, para que as investigações prossigam e desvendem todos os esquemas de corrupção dessa natureza, atinjam quem atingirem. Os excessos do juiz Sérgio Moro, no entanto, têm comprometido a Operação.

 

Correio da Cidadania: Posto isso, como avalia a atuação de Sergio Moro, Polícia Federal e Ministério Público? Pensa que serão capazes de alcançar políticos de todos os tipos?


Ivan Valente: Nesse momento, Sérgio Moro e sua condução à frente da Lava Jato são a maior ameaça à Operação. Seus excessos geraram uma onda de questionamentos extremamente negativos. O uso político de medidas judiciais como a condução coercitiva ou as escutas telefônicas levantaram muitas suspeitas sobre os reais objetivos de Moro. Além disso, há uma clara seletividade nas investigações. Por exemplo, Aécio Neves apareceu em quatro depoimentos como beneficiário dos esquemas de corrupção e nunca foi sequer convidado a depor. Por quê?

 

Correio da Cidadania: Como enxergouas massivas manifestações de rua do mês de março, tanto à direita quanto à esquerda?


Ivan Valente: É inegável que as marchas lideradas pelas forças conservadoras mostraram enorme vigor no começo do ano. Os excessos da Lava Jato e o sentimento de que era preciso “equilibrar o jogo”, no entanto, fizeram com que milhares de pessoas que não estavam dispostas a sair às ruas em defesa do governo Dilma, que ataca os direitos dos trabalhadores e aplica um brutal ajuste fiscal, se mobilizassem contra um impeachment ilegítimo.

 

Os setores populares voltaram às ruas e reequilibraram a luta pelos rumos da crise política. O PSOL faz parte deste processo, negando qualquer apoio ao governo Dilma, mas denunciando sem medo a manobra golpista de Cunha, Temer e da oposição demo-tucana.

 

Correio da Cidadania: Como fica a esquerda fora do lulismo no meio disso tudo? Acredita que ficou mais difícil se apresentar como alternativa do momento em que a polarização atinge graus tão altos?


Ivan Valente: Pelo contrário. Ao assumir uma posição francamente contrária ao impeachment, o PSOL manteve um diálogo profícuo com os setores populares que tomaram as ruas em defesa da democracia. Há um enorme contingente de democratas que não estão dispostos a outorgar seu apoio ao governo Dilma, mas tomaram as ruas contra o que pode ser caracterizado como um “golpe institucional”. São esses os setores com os quais temos buscado dialogar, credenciando o PSOL como alternativa à falência do PT enquanto projeto de transformação radical da sociedade brasileira.

 

Correio da Cidadania: Em sua visão, qual seria a melhor saída para a crise? Uma espécie de acordo entre os partidos dominantes ou eleições gerais, conforme sugestão de uns e outros atores e grupos?


Ivan Valente: Neste momento, nenhuma delas. Primeiro, porque os partidos que lideram a oposição demo-tucana não têm qualquer compromisso com a democracia e as conquistas sociais. Segundo, porque a proposta de convocação de novas eleições sustenta-se no pressuposto de que trocando o governo, muda-se a política. É uma saída simpática, mas inócua.

 

Isso porque o sistema político brasileiro está completamente capturado pelos interesses privados. Logo, tirar Dilma para eleger qualquer outra coalizão que não tenha como centro programático uma profunda reforma do sistema político e econômico – e hoje só o PSOL poderia liderar esse processo – é trocar seis por meia-dúzia.

 

É preciso ter como centro a formação de um novo bloco político e social capaz de dar corpo a um novo projeto político de esquerda, socialista e democrático. Assim poderemos fortalecer uma saída radical. Sem isso, qualquer alternativa será hegemonizada pelas velhas formas de tratar a política.

 

 

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Gabriel Brito é jornalista do Correio da Cidadania.

 

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