A crise, o setor elétrico e o PDE 2008-2017: ao sabor dos negócios privados

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Luiz Fernando Novoa Garzon
11/02/2009

 

A exponenciação da crise estrutural do capitalismo levará a uma postura agressiva preventiva da parte do núcleo do capital financeiro e transnacional, o que significa dizer que os oligopólios irão avançar sobre os estoques energéticos disponíveis. A queda acentuada dos preços dos insumos energéticos é apenas o intróito que propicia um desenrolar de reconcentrações brutais à custa dos países/empresas mais vulneráveis.

 

Guerras são prorrogadas ou definidas pelo poder de deslocamento e fogo. Energia, portanto, serve para a guerra, diretamente e por outros meios. No capitalismo, energia é basicamente força produtiva/destrutiva, força remodeladora e direcionadora. O modelo energético reproduz de forma intensificada a natureza concentradora e excludente do modelo econômico que impulsiona.

 

Para dimensionar o abismo com que nos deparamos, é preciso recordar que a partir dos anos 90 o sistema elétrico nacional deixou de ser mero instrumento de acumulação para ser espaço prioritário de acumulação. O fatiamento do sistema elétrico nacional e a conversão de cada fase (geração, transmissão e distribuição) em nichos de mercado forneceram não apenas elevada rentabilidade aos novos operadores privados e transnacionais. Abriu-lhes também a possibilidade de planejar a expansão e condicionar o uso da energia elétrica no país. O país refeito como "economia emergente" por conta da triangulação de investimentos dos países centrais e da disponibilização de plataformas operacionais de suprimento e/ou de montagem para as transnacionais. E como bônus, o oferecimento de toda a sorte de facilidades creditícias e regulatórias. Nem foi preciso a ALCA ou a sanção de acordos de proteção de investimentos para estabilizar tamanha "interdependência". Medidas de desregulamentação/re-regulamentação no plano doméstico, imbuídas por assistências técnicas do BIRD e projeções do FMI, bem como acordos comerciais e financeiros pontuais e setoriais, têm deixado os mercados cada vez mais "confiantes" no Brasil.

 

Não poderia ser diferente com seu setor elétrico, portanto. "Marco regulatório" por definição precisa favorecer a "interação estável" entre os agentes privados, ou seja, a autonomização do setor frente à população e à nação. As alterações introduzidas em 2004 neste marco não mudaram o cenário de descapitalização das estatais, antes multiplicaram as funções de intermediação no sistema dilatando as tarifas pagas pela população e consolidaram um mercado livre de energia para grandes consumidores que distorce o perfil da demanda nacional.

 

Em meio à profunda crise internacional, a manutenção dessa política de liberalização do setor - que inclui o cabresto privado sobre a Eletrobrás e suas subsidiárias - permitirá a virtual anexação de nossas fontes energéticas pelos conglomerados transnacionais e financeiros. Nestas condições a barganha tende a ser feita em termos ainda mais rebaixados. Oferta incondicional de grandes projetos de geração elétrica voltados para o fornecimento de energia subsidiada para atividades primário-exportadoras, com alto retorno financeiro.

 

PDE: expansão da energia ou regime de engorda dos enclaves?

 

A viabilidade do enclave elétrico como pilar de uma série de outros enclaves, com plantas eletrointensivas em expansão no país, exigirá custos de geração decrescentes, maior captura de recursos públicos, além do desmanche do licenciamento ambiental, dos direitos sociais e dos territórios dos povos tradicionais. As agências governamentais do setor, construídas como chanceladoras dos monopólios privados, procuram encerrar este horizonte para os próximos 10 anos. O Plano Decenal de Expansão de Energia (PDE)-2008-2017, posto à "consulta pública" pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), comunica à sociedade o que para o setor elétrico seriam "condicionantes de curto prazo para o crescimento econômico para os próximos dez anos".

 

Na projeção da demanda de energia, a variável demográfica não seria mais relevante que a setorial. Essa equiparação mal oculta o alvo do planejamento pretendido, o aprofundamento da dinâmica ofertista para continuar atraindo investimentos externos. No PDE, a população restringe-se a um aglomerado cuja revisão quantitativa se processa em "interações com o IBGE". Feita tal consideração estatística, a projeção pode se dedicar ao que interessa: "pesquisas junto aos grandes consumidores de energia, principalmente com relação às suas perspectivas de investimento e expansão da produção (PDE 2008-217 Cap. II, p. 2).

 

O PDE admite que as alterações trazidas pelo cenário de crise podem produzir "impacto na demanda de energia". Mas o avanço das reformas estruturais e o sucesso "no enfrentamento das principais questões internas, que obstaculizam a sustentação de elevadas taxas de crescimento", sustentam a aposta na manutenção de um ritmo de crescimento superior ao da economia mundial (PDE 2008-217 Cap. II, p.17). Procura-se contornar a crise da demanda, não com a revisão do perfil da demanda, mas com sobreoferta de energia para os mesmos grandes consumidores. A saída da crise é relativa ao lugar de grupo, classe, bloco. Diante da crise de superprodução, até mesmo para evitar a senda da redistribuição e da socialização, a reação natural dos grupos ainda hegemônicos é redobrar a super-exploração e a repressão. O bloco dominante e seus órgãos paragovernamentais estão aqui assumindo esse projeto claramente.

 

Os resultados são "diferenciados", assume o estudo da EPE. A siderurgia, o agronegócio e a celulose são setores dinâmicos "porque se aproveitam das vantagens comparativas que dispõem". Destas, a mais decisiva é a vantagem de contar com políticas de Estado dedicadas a expandir seus negócios, a lhes garantir "segurança energética" a todo custo. A previsão de alta do consumo de energia, 5,5% ao ano a partir de 2008, serve apenas para escorar a lógica de oferta de excedentes energéticos. O terrorismo com a possibilidade de um segundo apagão faz parte do showbusines em cartaz, do espetáculo de crescimento (caudal) prometido.

 

O modelo de país como plataforma energética, uma verdadeira incubadora de plataformas operacionais das transnacionais, seria solução ou problema? Comparemos. Nos países centrais a produção descola-se cada vez mais do consumo de energia, por sua especialização em serviços e na inovação tecnológica, e também pela prioridade dada a programas de eficiência energética. Nesses países diminui, portanto, a elasticidade/renda do consumo de energia elétrica. A "desgraça dos recursos naturais" é ter que dispor território, e destino, à cobiça alheia e irracional do grande capital. O Brasil eletrointensivo não é por si nem para si, por isso a elasticidade seguirá alta, ou seja, os picos de produção continuarão a depender de picos de consumo de energia. O PDE sintomaticamente considera ser "difícil avaliar o ritmo de diminuição dessa elasticidade no Brasil". Nenhum de nós imaginava que o futuro de nossa economia nos pertencia, não é mesmo? O jeito então é avaliar a "nova dinâmica do mercado elétrico" e sua correlação com o ritmo de crescimento desejável (PDE 2008-2017, Cap II, p 24-26). O Plano não procura disfarçar o que de fato é: uma tela de justificação e de propagação dos acordos setoriais que vão sendo construídos pelos mercados.

 

A chantagem térmica e o "aproveitamento hidrelétrico total"

 

A projeção feita no PDE de queda de produção de energia elétrica de matriz hidráulica de 85,9% para 75,9% na matriz nacional é a figuração de quão consumado e intocável é o quinhão energético a ser abocanhado pelos setores eletrointensivos. Não se discute nem o montante da demanda nem sua origem muito particular. Fontes alternativas de energia não bastam, declaram os devoradores de energia. Empreendimentos de pequena escala não bastam para locupletar empreiteiras, grandes geradoras, distribuidoras e complexos exportadores.

 

Se há maior demora e/ou resistência para o engatilhamento de grandes hidroelétricas, simplesmente adicionam fontes térmicas. De quebra, aproveitam para aumentar o poder de fogo contra o licenciamento ambiental, os movimentos sociais e as populações tradicionais. Então está combinado. A expansão da geração térmica, mais poluente e de maior custo, não é resultado do balcão de negócios patrocinado pelo MME e pela EPE, órgãos, aliás, por demais "preocupados" com a população brasileira, com a soberania nacional e com o meio ambiente. Realmente comovente a lamúria do residente da EPE: "Mais térmicas significam aumento de custo e de emissões de CO². É lamentável, sobretudo em um país em que dois terços do potencial hidrelétrico ainda estão inexplorados" (). Atualizada assim a chantagem, o PDE fica à vontade para priorizar a montagem de uma base de dados que possibilitem o "pleno aproveitamento do potencial hidrelétrico nacional" (PDE 2008-2017, Cap. III - parte 1- Oferta de energia elétrica, p.15).

 

Os níveis de expansão pretendidos, sob coação da nação, dependem do aproveitamento de cada gota turbinável dos rios brasileiros, especialmente dos rios da Amazônia. A centralidade da fonte hidráulica é apresentada na forma de ultimato, pois as opções imediatas de fornecimento são avaliadas em função "da postergação das hidrelétricas". Ou seja, o potencial dado será o potencial instalado, é tudo uma questão de tempo. Consequentemente, quanto mais rápido melhor, e mais lucrativo.

 

A categorização da avaliação ambiental proposta por nível de impacto (socioeconômico e físico-biótico) dos projetos hidrelétricos serve, pois, para sinalizar riscos regulatórios e políticos, não para municiar o planejamento público deles. Projetos com impacto pouco significativo pertenceriam ao grupo 1; com impacto significativo, ao grupo 2; com impacto muito significativo, ao grupo 3; e com impacto muito significativo, nas duas dimensões de análise, ao grupo 4. A antecipação do conhecimento das "questões socioambientais" relativas aos projetos previstos serve para medir o "nível de ação necessário para a viabilização de cada um deles". Notem que os projetos em si mesmos são impreteríveis, todo o resto são apenas "questões" a serem equacionadas.

 

A evidência da instrumentalidade dessa categorização é a divisão dos projetos em três classes segundo o grau de previsibilidade de seus cronogramas. Os projetos compatíveis são os que seguem em inabalável linha de montagem, sem atraso. Na sequência, as duas categorias que exigem um maior enquadramento, os projetos com "potencial de pequeno atraso" e com "potencial de atraso". Para calibrar esse enquadramento, a prescrição de distintos níveis de suporte e acompanhamento. O "nível de ação" pode ser baixo, intermediário ou alto. No "nível de ação alto", incluir-se-iam os projetos dos grupos 3 e 4, de maior impacto, invariavelmente com maior potencial de atraso.

 

Esses projetos, "de interesse estratégico para a expansão setorial", requerem redobrada blindagem política e institucional. Por isso o "nível de ação alto" solicita o envolvimento de todos os setores do governo "na obtenção das licenças ambientais, na estruturação financeira e nos prazos de implantação". Casar o processo de inventário com o de licenciamento é o objetivo embutido na diretiva de "análise de conjunto de projetos hidrelétricos" trazida por este PDE, cuja finalidade é "observar as possíveis sinergias espaço-temporais do conjunto". O que se quer é o aproveitamento hidrelétrico integral, nos prazos que forem definidos nos contratos de construção e operação.

 

A AAI (Avaliação Ambiental Integrada) que nos oferecem é um cavalo de Tróia que procura incorporar de roldão bacias hidrográficas inteiras ao mercado de energia, com monitoração prévia dos riscos advindos dessa incorporação. Longe de representar a busca de um planejamento integrado da utilização de um bem natural em um determinado território, de acordo com as necessidades da população local e da nação, a AAI, aplicada pela EPE, é antes um mecanismo de prevenção contra "fatores que poderão constituir obstáculos significativos ou impeditivos à concretização de determinados aproveitamentos hidrelétricos" (Cap. 3, parte III, Análise Socioambiental do Sistema Elétrico, p.41 a 46). Ou seja, estuda-se e licencia-se todo o potencial, de uma só vez, para que não se constituam impeditivos "determinados".

 

Nenhum esforço para vincular esses projetos a um conjunto de programas e políticas de desenvolvimento nacional e regional. Empenho total na viabilização de sua execução, se possível em bloco. Consensos corporativos, devidamente costurados na esfera institucional, prontamente se intitulam projetos de "interesse nacional". O PDE, como acordo-quadro dos conglomerados privados, procura antecipar a aplicação da nova lei de Gerson no setor elétrico, a iniciativa proposta pelo ex-diretor da ANEEL, Jerson Kelman, que impõe um licenciamento ágil e diferenciado para projetos assim definidos. Salvo conduto para negócios bilionários não é pouca coisa a se oferecer. Lobistas em cargos públicos, porta-vozes oficiosos do setor, não iriam se esforçar tanto à toa. A formatação deste Plano Decenal com foco na melhoria progressiva da razão risco-retorno dos projetos hidrelétricos no âmbito de marcos regulatórios flexíveis que consolidem o controle privado do setor elétrico é prova suficiente disso.

 

() TOLMASQUIM, Maurício. O Paradoxo Ambiental. Carta Capital, nº 531, fevereiro de 2009, p. 45.

 

Luis Fernando Novoa Garzon, sociólogo, é membro da ATTAC, da Rede Brasil sobre IFMs e da REBRIP, e professor da Universidade Federal de Rondônia. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

 

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