A geopolítica dos biocombustíveis e a crise dos alimentos

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Carlos Walter Porto Gonçalves
19/05/2008

 

O bloco de poder tecno-científico-agroindustrial-financeiro-midiático se vê, pela primeira vez, tendo que responder perante a opinião pública pelo aumento dos preços dos alimentos, ainda que diante do aumento da oferta. Não que não houvessem críticas fundamentadas sobre os riscos da aventura de submeter os alimentos à lógica da liberalização dos mercados. Havia muitas e boas. O complexo de poder tecno-científico-agroindustrial-financeiro-midiático é de tal modo abrangente e abarcador que impede o livre debate, privando a sociedade do direito mínimo ao contraditório. É que as vozes críticas são vistas como "os do contra", "os mesmos de sempre" que "não são propositivos" e toda uma rede discursiva que a priori desqualifica o outro como um sem-razão, antes mesmo de ser um sem-terra, um sem-teto, um sem-emprego.

 

Insisto em chamar a atenção para as duas pontas desse bloco de poder – a tecno-científica e a midiática –, posto que se trata de um conjunto de conhecimentos que vêm do mundo da tecnociência e tem, na outra ponta, a mídia fechando o ciclo que estrutura esse bloco de poder . A página da ABAG (Associação Brasileira de Agribusiness, (http://www.abag.com.br/) explicita esse complexo de poder. Pablo Gonzalez Casanova, em seu livro "As Novas Ciências e as Humanidades – da academia à política" (Editora Boitempo, 2006), já havia nos alertado que é preciso uma dialética complexa para entender um capitalismo complexo onde o conceito de burguesia, por exemplo, se mostra pobre para dar conta desse novo complexo de poder que vem comandando o mundo, tendo como instituição-chave as grandes corporações e seus tentáculos nos organismos (nada) multilaterais e nos Estados devidamente reestruturados para atender a seus fins.

 

Estamos diante de um momento de explicitação do quão nocivo vem sendo para a humanidade e para o ambiente de todo o planeta a irresponsabilidade dessas políticas liberalizantes, agora por vozes que não mais "aquelas de sempre" e "daqueles do contra". Ainda recentemente pude assistir num desses debates entre iguais, ou pelo menos entre aqueles que se colocam num mesmo campo ainda que tendo diferenças, a repórter Mônica Waldvogel (da Globo News, uma das empresas do bloco de poder tecno-científico-agroindustrial-financeiro-midiático que consta da página na web da ABAG) manifestar, mesmo não sendo partidária da teoria da conspiração - uma teoria que eles mesmos inventaram e colocam na boca dos que querem criticar -, que haveria alguém por trás dessas críticas ao biocombustível brasileiro. É claro que a senhora Mônica Waldvogel jamais colocou a si a questão de investigar se haveria alguém por trás de todos aqueles que defendem o biocombustível, como se fosse simplesmente lógico e racional defendê-lo. É esse tipo de argumento que, de antemão, acredita que os críticos são sempre ilógicos e irracionais, a não ser que se coloquem no mesmo campo.

 

Tentar ver alguma conspiração contra o biocombustível brasileiro na atual crise de alta dos preços dos alimentos é ignorar as profundas ligações dos agronegociantes brasileiros com o complexo de poder que comanda o mundo e seu tenaz esforço por controlar o complexo de produção de energia, sobretudo depois da derrota político-militar da aventura dos EUA no Iraque e no Afeganistão e a perda do controle em países chaves como o Irã, a Venezuela e a Bolívia.

 

Ignacy Sachs, um dos principais pesquisadores ligados à temática da conciliação entre desenvolvimento e meio ambiente, teve a infeliz idéia de saudar os benefícios que o aumento dos preços dos combustíveis fósseis estaria trazendo para a mudança da matriz energética ao viabilizar a produção de combustíveis a partir da biomassa. Sem sabê-lo, Ignacy Sachs estava antecipando a aliança que em 2006 ataria os interesses do complexo de poder estruturado a partir do controle dos combustíveis fósseis estadunidenses, mais especificamente do petróleo, aos agronegociantes brasileiros. Sobretudo do setor sucroalcooleiro, por meio da criação da Associação Interamericana de Etanol, cujos presidentes são os senhores Roberto Rodrigues e Jeb Bush, pelo Brasil e pelos EUA respectivamente, se é que ser de algum país tenha alguma importância para esses protagonistas, a não ser para instrumentalizar os aparelhos estatais para seus fins corporativos, como vem acontecendo abertamente.

 

Como se vê, não são razões ambientais que estariam movendo esses agronegociantes em direção a uma transição energética mais amiga do planeta e da humanidade. Estamos aqui diante da tese do "desde que", ou seja, serão ambientalmente corretos "desde que" possam ter lucros que, no fundo, é o verdadeiro ‘leit motiv’. E, pior, é que são os mesmos protagonistas que especulam com os preços do petróleo que, na outra ponta, se apresentam com a "solução" do etanol e do biodiesel. Afinal, como afirmara em 2006 o economista Helder Pinto Jr., da UFRJ, na mesma linha de Ignacy Sachs, com o petróleo abaixo de US$ 40 por barril "a transição para uma matriz energética mais limpa seria postergada (...) a esse preço, a implantação dos biocombustíveis dependeria de subsídios governamentais, o que não faz o menor sentido", afirma o professor. "Com o preço do barril oscilando entre US$ 40 e US$ 80 (...) haveria uma tendência de os países usarem o álcool e o biodiesel como alternativas aos derivados de petróleo, inclusive importando esses combustíveis" (http://www.pnud.org.br/energia/reportagens/index.php?id01=2475&lay=ene). Os preços do petróleo atingiram US$ 120 por barril no início de maio de 2008. Os agrobionegociantes estão rindo á toa com a miséria alheia, como se não tivessem nada a ver com isso!

 

Há, inclusive, uma contribuição do aumento nos preços dos alimentos advinda do aumento do petróleo, como reconhecem até mesmo os ardorosos defensores dos biocombustíveis, como o senhor Lula da Silva. Deveria reconhecer, também, que sem esse aumento do petróleo não seria possível o desenvolvimento dos biocombustíveis.

 

Sabemos que o aumento dos alimentos não tem uma causa única, mas o componente do preço do petróleo bem que poderia ser minimizado, pelo menos nos países que são auto-suficientes, como é o caso do Brasil. Bastaria, simplesmente, desatrelar os preços internos do mercado internacional, já que não há nenhuma relação entre o aumento dos preços do petróleo e o aumento dos custos de produção e sequer com a diminuição da oferta do produto no mercado que, como informa a OPEP, vem aumentando. Mas isso ocorreria se a Petrobrás, por exemplo, fosse gerida de acordo com os interesses nacionais e não tratasse o petróleo como uma mercadoria e os negócios acima dos interesses do país.

 

Não é preciso lançar mão de nenhuma teoria conspiratória para ver a ligação entre o exponencial e meteórico aumento dos preços do petróleo e os interesses no etanol e no biocombustível. A migração de grandes capitais para esse setor demonstra o quanto os donos do poder de hoje procuram se mover para controlar a nova matriz energética. Afinal, a energia é a capacidade de realizar trabalho e o trabalho é a capacidade de transformar a matéria. Por isso, a energia é a matéria das matérias a ser controlada.

 

Quem controla a energia controla toda a capacidade de realizar trabalho. As velhas oligarquias brasileiras jogam uma cartada estratégica como um verdadeiro ‘global player’, como gostam de se afirmar. Sua presença internacional, seja no Haiti, seja em Gana (aqui inaugurando um centro de pesquisa da Embrapa), faz parte dessa estratégia dos grandes latifúndios empresariais monocultores de exportação.

 

Carlos Walter Porto Gonçalves é professor da Universidade Federal Fluminense e membro do CLACSO (Conselho Latino-americano de Ciências Sociais).

 

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