Correio da Cidadania

A era dos veículos elétricos e a urgência de pensar o lítio brasileiro

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Triângulo do lítio pode levar a América do Sul ao centro da economia global
Nas últimas semanas de setembro, o lítio ganhou grande destaque na televisão brasileira. A meu ver, isto marca um notável contraste com a escassez de informações sobre o assunto em 2017, quando comecei a escrever e pesquisar sobre o lítio no Brasil.

Como tenho alertado em minha coluna no Jornal da USP, embora não seja a única matéria-prima estratégica na transição energética, o lítio tem sido a mais destacada devido ao seu papel crucial nas baterias para os veículos elétricos. Sua importância deverá aumentar ainda mais com a assinatura do Projeto de Lei Combustível do Futuro, lançado em setembro, que visa descarbonizar a matriz energética brasileira, com foco na transformação do setor de transportes e no aumento da eficiência dos veículos.

No Brasil, o lítio tem laços estreitos com o Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, e mais recentemente também com o Nordeste brasileiro, onde o Serviço Geológico do Brasil (CPRM) identificou ocorrências do metal e as pesquisas de prospecção estão em andamento.

Compondo a lista de minerais estratégicos brasileiros, o lítio passou por mudanças significativas em seu uso nas últimas décadas, seguindo as tendências políticas e econômicas mundiais. Nos anos de 1980, a iniciativa privada, com o apoio do governo brasileiro, investiu esforços significativos para desenvolver a indústria do lítio no Brasil. O objetivo era não apenas atender ao mercado nacional de sais de lítio, mas também fabricar compostos e produtos de alta tecnologia nas indústrias nuclear, aeronáutica e espacial.

Nessa perspectiva e sendo uma política pública, o Decreto nº 11.120, que vigorou até 2022, desempenhou um papel fundamental como política de Estado, protegendo o lítio brasileiro, que na época era utilizado predominantemente na indústria nuclear, graxas e farmacologia. É importante notar que, mesmo durante essa fase inicial, já se projetava a utilização do lítio em baterias. Enquanto o Brasil se esforçava no desenvolvimento de sua indústria, instituições científicas nos EUA, Japão e Europa estavam avançando nas pesquisas relacionadas às baterias de lítio. Essas baterias não seriam apenas para dispositivos portáteis e eletrônicos, mas também para alimentar a mobilidade elétrica.

Com as indústrias de baterias já bastante avançadas e considerando o atual contexto de transição energética, debater o lítio no bojo das matérias-primas estratégicas é, acima de tudo, um diálogo sobre industrialização e desenvolvimento, sendo inerentemente uma questão global. Nesse contexto, a disputa em torno do sentido da transição energética reflete uma dualidade intrínseca: ela expõe tanto a necessidade de mudanças sistêmicas na ordem econômica quanto a persistência de padrões socioambientais autodestrutivos. Além disso, esse debate não apenas delineia os contornos da economia global, mas também reconfigura o cenário político, destacando a intersecção complexa entre economia, tecnologia e política.

Esta interseção torna-se evidente quando saímos do Brasil para observar o panorama global; fica claro que a China, ao controlar a cadeia de produção de diversas matérias-primas cruciais como o lítio, o cobalto, as terras raras e a importante indústria de semicondutores, emerge como a única nação capaz de desafiar a tradicional hegemonia norte-americana. Como resposta estratégica a essa dinâmica, os Estados Unidos estão adotando medidas significativas para tornar suas cadeias de produção mais domésticas. Além dos incentivos já discutidos nesta seção, como a Lei de Redução da Inflação (IRA – sigla em inglês), o Departamento de Energia dos EUA está atualmente em negociações para fornecer um financiamento recorde de um bilhão de dólares para um projeto mineiro em um dos maiores depósitos de lítio do país.

Nesse contexto, o que discuti meses atrás sobre a Europa e os Estados Unidos se empenhando na reindustrialização e no fortalecimento de suas cadeias de suprimentos para enfrentar o domínio chinês está se tornando cada vez mais evidente.

Recentemente, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, anunciou uma investigação sobre o apoio estatal da China aos fabricantes de veículos elétricos. O tom desafiador adotado nessa medida, embora pouco compreendido por alguns, reflete a crescente assertividade europeia que, diante da produção de veículos chineses, vê a sua indústria ameaçada.

De acordo com um estudo realizado pelo Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS – sigla em inglês), a ascensão da China como exportadora de automóveis é impulsionada também pela crescente importância da indústria de veículos elétricos. Embora muitos desses veículos sejam fabricados por empresas estrangeiras, como a norte-americana Tesla, as empresas chinesas estão se tornando competitivas devido ao apoio do governo e à inovação. O estudo afirma que os veículos elétricos (VE) fabricados na China são exportados para a Europa devido à elevada procura, bem como às baixas tarifas de importação e aos substanciais subsídios governamentais para VE, independentemente da origem.

Os carros elétricos chineses que entraram na União Europeia já representam 8% do mercado total e são 20% mais baratos do que os concorrentes europeus. Para alcançar a meta de 30 milhões de veículos elétricos circulando nas estradas até 2030, a União Europeia está impulsionando a sua indústria, mesmo que isso exija descurar da qualidade no design dos modelos fabricados, como afirmado em artigo do Financial Times. Consequentemente, o crescimento do setor deverá aumentar a demanda por lítio e outras matérias-primas.

Em termos gerais, a crescente competição entre países produtores e altamente industrializados pode reduzir os custos e acelerar a transição para veículos elétricos (VE), beneficiando os consumidores, que podem adquirir veículos elétricos a preços cada vez mais baixos. Dessa forma, os veículos elétricos tendem a se popularizar. No entanto, essa tendência também pode refletir e reforçar uma visão individual e meramente substitutiva de um veículo a combustão por um elétrico.

Todos esses eventos nos ajudam a compreender o motivo pelo qual o lítio se tornou um assunto midiático e o inserem em um debate público mais amplo, o que é ótimo, já que este é um tema que não pode ser ignorado ou reduzido ao carrocentrismo. Como mencionei inicialmente, toda essa cadeia envolve questões tecnológicas, econômicas e geopolíticas das quais o Brasil faz parte e deve se posicionar, mesmo que seja, mais uma vez, como exportador de matérias-primas.


Elaine Santos é pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP.
Publicado originalmente em Jornal da USP.

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