Nova reforma tributária reforça desigualdade na distribuição de renda

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Gabriel Brito e Valéria Nader
29/02/2008

 

Na semana em que foi enviado ao Congresso o novo projeto de reforma tributária, o Correio da Cidadania conversou com o economista Rodrigo Ávila, também membro ativo da Rede Jubileu Sul, que, entre outras frentes, luta contra a militarização, a ALCA e o pagamento da dívida externa, não apenas do Brasil, como também de outros países.

 

Ao comentar as propostas feitas pelo governo nessa nova tentativa de reforma tributária, Ávila afirmou que tais iniciativas não resolveriam os reais problemas da taxação de impostos no país e que injustiças referentes a essas cobranças continuarão existindo.

 

Para ele, os principais pontos do que seria uma verdadeira reforma não são sequer colocados em discussão pelo governo, mantendo velhas injustiças e distorções na coleta de impostos. "Em primeiro lugar teriam que revogar essas isenções que foram concedidas ao grande capital pelo governo Fernando Henrique e também por Lula".

 

O economista ainda frisa que o Brasil insiste em focar a cobrança de impostos pelo consumo, não pela renda, garantindo privilégios ao grande empresariado, exportadores e, para completar, estrangeiros que investem na dívida interna do país.

 

Por fim, o economista, que classificou a desoneração da folha de pagamento como "um roubo ao dinheiro do trabalhador, porque quem vai embolsar isso é o empresário", ainda listou algumas medidas que, em sua opinião, deveriam ser contempladas pela reforma, como cobrança sobre fortunas, lucros das grandes empresas e heranças, o que tornaria mais equilibrada e socialmente justa a coleta de impostos.

 

 

Correio da Cidadania: Como você analisa, de maneira geral, a reforma tributária, tal qual está sendo proposta pelo governo no momento atual?

 

Rodrigo Ávila: De uma forma geral, essa reforma não muda a estrutura tributária do país. Incide principalmente sobre os trabalhadores e consumidores enquanto que os mais ricos, com mais patrimônio e renda, não são tributados o suficiente. A reforma não muda essa lógica. Ela tem algumas propostas de unificação de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), de alguns tributos federais, mas não altera nada para quem paga a conta.

 

Os trabalhadores e as classes de rendas mais baixas vão continuar pagando tributos sobre consumo, enquanto o grande capital vai continuar usufruindo das isenções. Por exemplo: isenção de imposto de renda sobre distribuição de lucros para sócios das empresas, tanto no Brasil como no exterior; isenção de imposto de renda para remessa de lucro e também para investidores estrangeiros na dívida interna brasileira, uma invenção do Lula em 2006.

 

Portanto, todas essas distorções continuam na reforma tributária, que só se limita a fazer essa unificação de ICMS, de tributos federais, mas não altera quem paga a conta e também não recupera o pacto federativo. Os estados, os municípios, vão continuar recebendo o mesmo de hoje em termos da partilha do tributo arrecadado.

 

CC: A despeito de sabermos, então, não se estar mexendo no substancial, mas pensando em alguns pontos específicos que estão sendo tratados, essa questão da legislação única para o ICMS e da alteração da cobrança do estado de origem para o de destino, uma velha discussão, traria algum avanço?

 

RA: Até pode facilitar o procedimento de pagamento de ICMS. Quando você unifica a legislação pode até simplificar. Alguns estados vão perder, outros vão ganhar, mas uma coisa é certa: o trabalhador vai continuar pagando. A questão que está sendo discutida é qual Estado vai ficar com o dinheiro, mas o trabalhador vai pagar e isso é certo. Na verdade, o problema é esse, mudam-se só alguns aspectos operacionais da questão tributária, mas não se altera a essência, que é hoje concentrada na tributação sobre o consumo e sobre a renda do salário, não sobre os lucros do capital financeiro, que é isento. Esse é o problema que vemos na reforma: ela não ataca isso.

 

CC: E sobre o novo IVA (Imposto sobre Valor Agregado) federal, que unificaria impostos federais, como você o avalia?

 

RA: O IVA federal é a unificação de alguns tributos que já existem. Unifica a Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), PIS (Programa de Integração Social), Cide (Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico), IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) e também o salário educação. Isso seria talvez uma simplificação do procedimento, mas também não muda a essência, que é a tributação sobre o consumo. E o pior, corre-se o risco de se perderem recursos para a educação. Porque seria desconstitucionalizada a destinação. O governo garante que uma parte desse IVA federal irá para a educação, de modo que não haja perdas, mas vamos ver se isso realmente vai ocorrer.

 

Na medida, ainda, em que PIS e Cofins transformam-se em IVA e a CSLL (Contribuição Social sobre Lucro Líquido) é incorporada ao Imposto de Renda, você transforma contribuição em imposto, o que significa que não haverá uma legislação específica. Assim, será também retirada da Constituição a destinação para a seguridade social.

 

Certamente, então, vai ser mais fácil uma iniciativa futura de desviar esses recursos da seguridade, porque deixam de ser contribuição (tributação com legislação prevista). Portanto, tem de se avaliar como será isso, pois podem surgir brechas para desvios da seguridade. E, mais uma vez, a proposta do governo não muda a contribuição tributária, só unifica alguns impostos que já existem, mas aqueles que pagam a conta continuarão sendo os mesmos de hoje.

 

CC: Essa medida que tem gerado interesse dos empresários, a desoneração da folha de pagamento, parece, também, lesiva aos trabalhadores?

 

RA: Isso é outro perigo, parece que o governo propõe desonerar a folha, mas não faz nada para compensar. Se essa medida vingar, seria na verdade um roubo do dinheiro do trabalhador, porque quem vai embolsar isso é o empresário, até porque o dinheiro do INSS não é do governo, é do trabalhador. Você diminui a contribuição previdenciária sobre a folha e não se tributa o empresário para compensar.

 

O resultado é que o salário do trabalhador continuará sendo reduzido. Ou seja, a mais-valia do capitalismo vai aumentar. Seria um ataque aos direitos dos trabalhadores e propiciaria ao governo no futuro vir com aquela falácia do déficit da previdência, porque iria considerar que a arrecadação da previdência diminuiu, e aí tem que fazer reforma... Há que se tomar cuidado para que os trabalhadores não percam parte de seus benefícios.

 

CC: Quais medidas você acredita que deveriam ser tomadas em uma autêntica reforma tributária, o que deveria ser realmente discutido?

RA: Em primeiro lugar, deveriam ser revogadas essas isenções que foram concedidas ao grande capital pelo governo Fernando Henrique e também por Lula. Por exemplo: essa isenção no imposto de renda sobre distribuição dos lucros; e a dedução de juros sobre capital próprio, que permite às empresas deduzirem do IR os juros que elas teriam pago se tivessem tomado seu capital emprestado, uma ficção jurídica que beneficia principalmente os bancos, que são muito capitalizados. Outra questão é a lei Kandir, que hoje isenta produtos exportados de ICMS. Grandes produtores, agrobusiness, mineradores - principalmente a Vale do Rio Doce, que lucra dezenas de bilhões por ano e não paga ICMS – são beneficiados, ou seja, é um grande privilégio a pessoas que poderiam pagar ICMS e não pagam, embolsando um lucro bilionário. É uma injustiça que deveria ser revogada.

 

O consumidor brasileiro paga imposto, enquanto os produtos exportados não pagam. Hoje em dia existe um falso consenso de que a exportação tem de ser isenta. O governo, na verdade, deve ter a prerrogativa de tributar a exportação quando os preços das commodities sobem. A China, ano passado, por exemplo, aumentou o imposto das exportações exatamente para desestimular essa primarização da economia, que leva a uma depredação ambiental. Ou seja, países fazem isso normalmente, não é dogma nenhum a tributação da exportação; a não tributação é que constitui uma falácia.

 

Outra isenção: os bancos pagavam até 1998 uma alíquota de 30% de CSLL, que depois foi reduzida para 9% e agora o governo propôs aumentar para 15%. Não é suficiente, tem que voltar a 30%. Essa seria outra medida importante.

 

Quanto aos capitalistas estrangeiros que investem em dívida interna no Brasil, em 2006, o governo, através da lei 11.312, isentou de IR os investidores estrangeiros que vêm aqui e lucram horrores com a dívida interna. Isso é uma injustiça. O trabalhador tem que pagar imposto a partir de uma tabela de IR super defasada, que confisca sua renda, enquanto o estrangeiro que vem investir em dívida interna está isento. Então, todas essas isenções deveriam terminar.

 

Por outro lado, deveria ser instituído o imposto sobre grandes fortunas, que está na Constituição e nunca foi complementado. Outra medida urgente seria a reforma do IR de pessoa física, de modo a reajustar a tabela para acabar com a defasagem, que faz a classe média e até a baixa pagarem IR, enquanto os mais ricos não pagam, porque são capitalistas e sobre a distribuição de lucros não incide o Imposto de Renda.

 

Outro ponto é o fim da DRU, que pega 20% dos recursos que deveriam ir para fundos ou destinações previstas em lei, como, por exemplo, educação, seguridade social etc. O governo pode pegar 20% disso e botar onde quiser, provavelmente para pagar a dívida, que é o que eles fazem.

 

O ITR (Imposto Territorial Rural) arrecada, hoje, 300 milhões de reais por ano, é quase o que um bairro de São Paulo arrecada de IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) ao ano, é ridículo. O ITR deveria ser reformulado, de modo que os grandes proprietários pagassem.

 

Finalmente, é preciso cortar os impostos sobre o consumo e começar a tributar mais a renda, o lucro, a propriedade. Países desenvolvidos sempre fizeram isso. Nos países desenvolvidos, a principal fonte de arrecadação é a renda, enquanto, no Brasil, é o consumo. Essas seriam, portanto, as medidas que poderiam ser implementadas e nenhuma delas está na reforma tributária do governo.

 

CC: Você enxerga alguma possibilidade de essas medidas serem contempladas pelo atual governo?

 

RA: Seis anos de governo Lula e nada disso foi feito, apesar de muita luta dos trabalhadores, inclusive na campanha pela auditoria da dívida; sempre divulgamos esses dados em cartilhas. As próprias entidades do fisco pedem o fim dessas distorções e o governo não fez nada, pelo contrário, instituiu a isenção do IR de aplicações dos estrangeiros na dívida interna e manteve todos os privilégios tributários que Fernando Henrique instituiu.

 

Infelizmente, só mesmo com a luta da classe trabalhadora que a gente pode pensar em reverter isso. Porque a questão tributária é, ao lado das dívidas, a maior fonte de injustiça social.

 

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