Correio da Cidadania

Agro: os números de um mega-retrocesso

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Os dados de dezembro de 2017 da balança comercial do agronegócio ainda não foram divulgados pelo Ministério da Agricultura. De janeiro a novembro, as importações brasileiras de produtos do agronegócio somaram US$ 13 bilhões, o que representou um crescimento de 700 milhões de dólares frente ao mesmo período de 2016. Nesses valores não estão incluídos os US$ 5 bilhões em dispêndios com as compras externas de agrotóxicos e fertilizantes. Também não estão computadas importações de máquinas e implementos agrícolas entre outros itens. Com essas singularidades nas suas contas externas, o saldo comercial do agronegócio no período em referência foi de US$ 76 bilhões, dado que as exportações do setor atingiram US$ 89 bilhões. Mesmo com essa ‘pedalada’ as contas externas do agronegócio foram fundamentais para o resultado superavitário da balança comercial do país, de US$ 62 bilhões (jan/nov), ou US$ 67 bilhões no ano.

Contudo, à medida que a ambição temerária do país tem sido a de se transformar no ‘fazendão do mundo’ para um restrito grupo de produtos, caberia, pelo menos, transformar em real a capacidade econômica potencial dessa opção política restritiva para o país.

Claro que considero a estratégia uma soma de “complexo de vira lata” das elites dirigentes conservadoras com a sua submissão à cobiça do capital nacional e internacional pelo lucro fácil, imediato e inconsequente, à revelia dos interesses nacionais. Somente esses atributos justificam a subutilização econômica dentro da natureza predatória desse projeto para o Brasil.

Centro a crítica, em particular, na indução da economia perdida pelo grau acentuado de commoditização dos produtos exportados pelo agronegócio, com o encurtamento das respectivas cadeias e a consequente transferência de renda, emprego, e possibilidades de agregação de valor e desenvolvimento tecnológico para outros países. Os atuais níveis de primarização das exportações agropecuárias do Brasil podem ser observados com os exemplos abaixo:
 

Tomando-se o caso da soja, principal commodity agrícola do mundo, da qual o Brasil se tornou o principal exportador com divisas geradas em 2017, de US$ 30,5 bilhões (janeiro a novembro) as perdas para o Brasil com o atual perfil das exportações são bilionárias. As exportações de farelo de soja, o insumo proteico mais barato e de menor custo/benefício para a produção de carnes participam com apenas 15% das exportações totais do produto. Já o óleo de soja participa com pouco mais de 3%. Praticamente o Brasil transferiu para a China toda a riqueza proporcionada pela agregação de valor na soja.

De acordo com estudo realizado pela ABIOVE (Associação Brasileira da Indústria de Óleos Vegetais), entidade que obviamente tem interesse na agregação de valor, em 2013, um hectare de soja produziu 3.010 kg na safra de verão a um valor de US$ 533 a tonelada, o que resultou em exportações de US$ 1.604. Após a colheita da soja, também foram produzidos, nesse mesmo hectare, 5.780 kg de milho a um valor médio de US$ 237 por tonelada, propiciando exportações adicionais à soja em grão de US$ 1.370. O embarque ao exterior de ambos os grãos levou ao ingresso anual de US$ 2.974 por hectare.

Utilizando o mesmo volume de grãos que foram exportados in natura, o Brasil conseguiu produzir e exportar 4.515 kg de carne de frango a US$ 2.049 a tonelada, o que gerou uma receita de US$ 9.251. A agregação de valor também fica evidente no exemplo alternativo da carne suína: o mesmo hectare de soja e milho, transformado em farelo proteico, que adicionado ao milho gerou ração, resultou em 3.251 kg dessa proteína, cuja cotação no mercado externo, em 2013, foi de US$ 2.627 a tonelada. A receita com a exportação de carne suína foi de US$ 8.540. A industrialização da soja para produção de ração proteica também gerou 587 kg de óleo vegetal exportado a US$ 1.003 a tonelada, totalizando US$ 588.

Com esse estudo a ABIOVE chama a atenção para a diferença expressiva entre exportar soja em grão e milho (US$ 2.974, conforme o exemplo) e exportar produtos de valor agregado – óleo e carnes de frango ou suína (US$ 9.839 ou US$ 9.128).

Ainda de acordo com essa entidade, a geração de empregos é quatro vezes maior quando a soja é processada e transformada em carnes.

Como álibi para a “incompetência”, governo, grandes fazendeiros, tradings e lideranças políticas do setor, de pronto responsabilizariam pela primarização as práticas distorsivas do comércio agrícola mundial, resultantes das diretrizes protecionistas dos países ricos. Como se as tradings não tivessem responsabilidade na fixação dessas restrições ao comércio! Apontam, em particular, a “escalada tarifária”, pela qual os países ricos majoram as tarifas de importações com o maior grau de elaboração do produto. Essa prática é real; porém, está longe de constituir em óbice para as exportações de produtos primários industrializados ou processados. Afinal, por que somente 20% das exportações argentinas de soja são de grãos enquanto as do Brasil são de 82%? Por suposto, as exportações argentinas não estão livres da escalada tarifária!

Além do mais, as “sobretarifas” impostas pelos países importadores aos produtos mais elaborados têm efeitos econômicos zero ante os incentivos bilionários recebidos internamente pelos produtores rurais brasileiros. Tais benesses garantem a plena competitividade internacional dos produtos agrícolas brasileiros. Somente em desonerações a agricultura recebeu R$ 25 bilhões em 2017, afora outros bilhões em subvenções no crédito, incluindo o endividamento, nos preços e compras governamentais. Considerem-se, ainda, os perdões de passivos ambientais e previdenciários, e concluiríamos que, de fato, a escalada tarifária não impediria uma pauta brasileira de exportações agropecuárias com produtos mais elaborados.

De outra parte, muitos críticos desse quadro não hesitariam em diagnosticar a primarização como resultante da Lei Kandir. É óbvio que esse instrumento estimula a exportação de produtos primários e reflete os interesses das tradings que controlam a comercialização de grãos no mundo. No entanto, a lei estende os benefícios da isenção do ICMS para os produtos semielaborados e, ainda assim, cada vez mais as nossas vendas externas são intensivas em bens primários!

Em resumo, a Argentina e os estímulos internos bilionários oferecidos à agropecuária desautorizam a identificação da “escalada tarifária” como impeditiva da agregação de valor aos produtos agropecuários exportados pelo Brasil. Quanto à Lei Kandir, claro que constitui um forte estímulo às exportações de commodities. Mas a própria legislação não foi fruto de geração espontânea; traduziu os interesses dos setores antes mencionados e, em especial, a negligência do governo FHC com os interesses nacionais. A intenção de induzir a primarização pela Lei Kandir foi tão deliberada e ostensiva que a mesma foi constitucionalizada (Emenda Constitucional 42, de 2003).

Portanto, o perfil indiferenciado dos produtos que integram a pauta das exportações agropecuárias do Brasil constitui uma opção política que tem refletido a subordinação das classes dirigentes do país aos interesses do capital externo expressos nas ações das tradings que controlam o comércio agrícola mundial. A Lei Kandir é funcional a esse projeto e a escalada tarifária serve como álibi para “justificar” essa realidade deletéria para a economia e para os maiores interesses do país.

Decorrem desse quadro de exportações intensivas de produtos agrícolas em estado bruto, anomalias de toda ordem que até depõem contra a inteligência nacional. Por exemplo, em 2017 (janeiro a novembro) o Brasil importou o equivalente a US$ 76.3 milhões em café industrializado. Somente da Suíça, que obviamente não planta café, as compras brasileiras totalizaram US$ 47.5 milhões. Note-se que aquele país vendeu o produto industrializado para o Brasil a partir de produto in natura importado de outros países, pois as importações suíças do café verde brasileiro não passaram de US$ 7.4 milhões. No ranking dos importadores do café do Brasil a Suíça ocupa a 42ª posição!

O mais preocupante é a tendência de consolidação desse perfil do agronegócio exportador do Brasil caso se confirme o anúncio feito pelo Banco Central segundo o qual o crédito rural oficial, quando muito, deverá atender apenas a agricultura familiar. O problema é que a privatização plena do crédito num contexto de total ausência de regulação do agronegócio colocará o território do “fazendão do mundo” sob a gestão direta e plena do capital financeiro internacional, por meio das tradings.

Gerson Teixeira é engenheiro agrônomo e presidente da Associação Brasileira da Reforma Agrária.
Retirado de Outras Palavras.

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