Correio da Cidadania

A esquerda, o big data e a era da informação

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"A commodity mais valiosa do mundo é informação e não o petróleo". A manchete é de uma reportagem de maio do The Economist. Mas alguém sabe explicar o por quê? O que significa isso, como se vendem informações, quais as consequências da informação ser uma commodity? Infelizmente, o discurso crítico a tais transformações está tão desatrelado das mudanças da Era da Informação que ficamos presos na discussão sobre privacidade individual, vazamento de nudes e esse tipo de coisa. Eu gostaria de discutir um outro ângulo completamente distinto: commoditização da informação ataca, acima de tudo, a democracia e o discurso público. Quando ouvirem falar em "venda de data/dados", pensem mais em "fim da democracia" do que em nudes. E, não, eu não estou falando do uso de big data em eleições.

O termo "big data" não tem exatamente uma tradução, nem mesmo uma definição clara. A melhor metáfora que já li sobre o tema faz uma comparação física: quando reduzimos muito a escala, chegando ao nível das partículas, as propriedades físicas mudam completamente, a gravidade deixa de ser relevante etc.; quando aumentamos muito a escala de informações, as propriedades estatísticas mudam consideravelmente.

Quando olhamos um gráfico do Google sobre o aumento das buscas de um termo, como por exemplo, "queermuseu", podemos de forma fria saber que houve alguma polêmica entre os dias x e y a respeito desse termo. Isso é small data. Quando sabemos todas as pesquisas no Google, divididas por áreas, tempo, se clicou ou não em algum link e qual, deixamos de ser capazes apenas de saber que houve uma polêmica com o queermuseu e passamos a saber quem começou, onde se montaram grupos para impedir a entrada em museus, quem resolveu lucrar com o assunto e quem só se pronunciou por ser polêmica.

Aliás, o big data sai de termos como "quem" para termos como "persona": não é mais um "alguém virou moralista", mas o funcionamento, os hábitos, o cotidiano, como se comportam e o que farão, os moralistas. Ou seja, o big data transporta a discussão sobre informação do meandro da privacidade e individualidade e passa para o meandro da coletividade, da cultura, da ideologia.

Tá perdido? Vou tentar explicar um pouco a partir do exemplo clássico de big data, a gripe H1N1. Em 2009, muitos se preocupavam com a gripe H1N1, que poderia ser "a nova gripe espanhola". O Centro de Controle de Doenças (CCD), aquele cenário do final da primeira temporada de Walking Dead, em Atlanta, tinha um sério problema para conter a doença. Gripes são altamente contagiosas e as informações de prontuários médicos demoram uma semana para serem compiladas no CCD. Então, a Google se ofereceu para ajudar.
    
O Google traçou seu banco de dados com o banco de dados do CCD. Assim, ela percebeu que na região tal teve um aumento de X% nos casos de gripe. Logo, deveria haver um aumento próximo a X% no número de pessoas que buscam soluções para gripes na internet, na mesma região. Assim, o Google descobriu quais os 45 termos mais buscados quando se tem gripe. Note, não é mais chutar as palavras "queermuseu" e "MBL" quando uma polêmica surge, mas descobrir qual é matematicamente o léxico de uma polêmica para observar a evolução dessa polêmica pelos números.

Depois de descobrir quais os 45 termos mais usados, o Google passou a descobrir quase instantaneamente onde havia um surto de H1N1. Se uma região tal tivesse aumento na busca por essas 45 expressões, havia certeza de que essa região era um foco da gripe. Você busca "nariz escorrendo remédio" no seu computador, assim como todos que tiveram contato com o mesmo vírus e desenvolveram a mesma doença e o Centro de Controle de
Doenças sabe imediatamente que sua cidade tem foco de gripe. Com informações suficientes, é possível descobrir o paciente zero da doença, de quem cada uma das pessoas gripadas pegou o vírus, qual foi a taxa de transmissão, qual o lugar público com mais riscos de infecção.

Repetindo: a partir de uma dada quantidade, a informação deixa de ser sobre indivíduos e passa a ser sobre sociedade.

Ok, então, isso é positivo, não? Quem não quer ganhar uma ferramenta para conhecer a sociedade? Não seria justamente o que faltava para termos um melhor debate público, informação em escala grande o suficiente para evidenciar como é a sociedade? Quem não quer ajudar a prevenir gripes?

O problema não está no conceito de "dados", "big data" ou mesmo "privacidade". O problema está em commoditização, em tornar mercadoria. Hoje, quem pode valer-se de big data são empresas que, de alguma forma, produzem um volume absurdo de informações. Isso exige grana, cadeia de lojas, sites líderes de mercado ou algum outro mecanismo similar. São, além de gigantes do controle de informações como Google, Twitter, Uber, Waze, NSA, CIA e Facebook, empresas operadoras de cartão de crédito, rede de lojas, controle de tráfego via câmeras etc.

Essas poucas empresas e departamentos estatais têm, hoje, o controle exclusivo sobre um dos bens mais preciosos de entendimento da realidade. E poder na mão de poucos é oligocrata, autocrata, tecnocrata e desgraçadocrata, mas, sem dúvidas, nada democrata. A própria formação de tais bancos de dados já diz muito sobre a pouca democracia de nossa sociedade, sobre o controle financeiro das possibilidades democráticas; a maioria absoluta dos mineradores de big data são empresas, sempre sob o controle dos departamentos estatais que defendem o interesse econômico norte-americano, como NSA e CIA.

O big data é a TV do século 21, um mecanismo de controle de difusão de informações verticalizado, ainda mais controlado por poucos do que a TV era no século passado (ou suas reminiscências são hoje). Quem tem data sabe como a sociedade se comporta, como ela é, tem vislumbres quase mágicos do funcionamento social. Quem não tem, tateia no escuro, a partir da própria vivência, teorias e práticas, para compreender o que acontece no entorno.

Sinceramente, eu não quero ficar discutindo dados na esfera da "privacidade". Não estou nem aí para saberem ou não se eu pesquisei "remédio para gripe" no Google. O que eu quero, e acho que é a verdadeira agenda desse século para a esquerda, é que esses bancos de dados sejam desprivatizados, deixem de ser controlados por poucos e passem a ser acessíveis ao público (o que não se confunde, ainda mais quando falamos de informação, com "controle estatal").

Hoje, empresas correm para tornar o big data uma ferramenta rentável. E é fácil fazê-lo. Todo nosso padrão de consumo está facilmente minerável. Porém, pense no que poderia ser feito se mais casos como o da gripe H1N1 fossem permitidos? Já que ainda estamos em setembro (quando o texto foi elaborado), mês de conscientização sobre suicídio, pense como uma ferramenta como essa pode nos ajudar a saber as causas e como preveni-lo (ou sabermos separar o suicídio existencialista, filosófico, da depressão e demais psicopatias)?

O controle empresarial do big data, a commoditização, opera como o controle empresarial e commoditização operam em qualquer área: escolhem determinadas perguntas a serem feitas e ocultam outras. Como fazer o consumidor comprar como queremos é uma pergunta comum; como saber onde o consumo gera mais dano ambiental e como evitar esse dano, é a típica pergunta esquecida.

Posso dar outro exemplo simples: o que o controle empresarial sobre a produção de medicamentos fez ao longo do século passado? Focou em doenças difíceis e caras de serem tratadas, abandonou as doenças que estatisticamente mais matam. Zilhares de remédios para um tipo específico de câncer, nenhum para a malária, doença que mais mata (e mata majoritariamente pobres de países periféricos e etnias oprimidas) no mundo. Agora que descobrimos o uso na medicina social do big data, o que o controle empresarial promete para nós? Uso do big data para salvar milhões de pessoas da malária, ou uso do big data para convencer as pessoas a comprarem mais e mais remédios inúteis ou questionáveis?

E de quem é o big data? Big data é geralmente formado pela soma de informações simples, que qualquer um daria sem medo, tais como "você ficou doente nos dias tais e tais?" ou "você foi de carro comprar uma escova de dentes?". Dificilmente, são informações que estão na esfera da "privacidade", dado que essas são mais raras e mais contidas. Ora, se estamos falando do conjunto de informações de uma sociedade que voluntariamente as entrega, o big data, essa nova forma de riqueza, deveria ser de toda a sociedade e não de poucos. Se a classe operária toda informação produz, a ela toda informação pertence, é o que Marx diria se vivesse nesse século.

A palavra de ordem não é "protejam os nossos dados". Essa é uma ilusão feita para evitar que discutamos o que importa. A palavra de ordem é "queremos controle público sobre nossos dados".

Caio Almendra é advogado.

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