Correio da Cidadania

A reorganização da pilhagem

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A classe trabalhadora brasileira e a maioria do povo assistem a um retrocesso histórico sem paralelo em seus direitos. Sob o pomposo nome de reformas, apresentadas como mudanças inadiáveis para retirar o país da crise, busca-se na verdade a destruição sistemática dos nódulos civilizatórios conquistados pelo povo e que lhe garantem o mínimo de dignidade.

A proposta de reforma da previdência apresentada pelo governo Temer representa um ataque sem precedentes aos interesses da classe trabalhadora brasileira. Elevar a idade mínima de aposentadoria para 65 anos, sob a justificativa ter ocorrido um aumento na expectativa de vida da população, é ignorar outras variáveis igualmente importantes. No Brasil, a entrada no mercado de trabalho se faz, para parcelas significativas da classe trabalhadora, ainda na adolescência e em empregos precários e informais. Outro aspecto rotundamente ignorado é o fato de a expectativa de vida não ser a mesma quando se considera a faixa de renda. Parece meio óbvio, mas os mais pobres vivem em média menos do que os ricos.

A reorganização da acumulação

Além da elevação da idade mínima, as mudanças também atingem o valor dos benefícios, pois para receber o valor integral de aposentadoria, um trabalhador precisaria ter 49 anos de contribuição. Considerando a elevação da idade mínima para 65 anos, um trabalhador teria de começar a contribuir a partir dos 16 anos ininterruptamente se quiser receber a contribuição pelo valor integral. A proposta também altera o Benefício de Prestação Continuada (BPC), desvinculando-o do salário mínimo e aumentando a idade para o requerimento de 65 anos para 70 anos. Outro benefício afetado é o da pensão por morte. Este deixaria de ser integral, reduzido a 50% do valor mais 10% por dependente, e também desvinculado do salário mínimo.

Aqui reside uma grande armadilha do governo Temer. A proposta, considerada como extremamente agressiva, pode ser a partir de negociações atenuada. Porém, seu aspecto regressivo ficaria mantido em uma proporção menor do que o projeto original. Mas as propostas de mudança, respaldadas por uma campanha insistente dos grandes meios de comunicação sobre uma iminente quebra do sistema causado por um rombo financeiro, não mexe apenas com o regime da previdência social.

Elas alteram o funcionamento de todo o sistema da seguridade social, uma das maiores conquistas da classe trabalhadora brasileira garantida na Constituição de 1988. A seguridade social inclui a previdência social, a assistência social e a saúde, cumprindo em tese o papel de forjar uma espécie de “solidariedade policlassista”. Para termos uma ideia da importância da seguridade, o BPC, pago a pessoas com mais de 65 anos cuja renda familiar per capita é de até R$ 220, e também aos deficientes físicos, beneficia mais de 4 milhões de pessoas e representa um volume anual de recursos de R$ 50 bilhões.

Acresce-se a esse quadro de profundo ataque aos interesses populares a imposição de um teto aos gastos públicos primários por 20 anos, como a saúde, também integrante da seguridade social. Ou seja, as classes mais empobrecidas, além de terem mais dificuldades para acessar os benefícios previdenciários, terão serviços de saúde e educação bem mais precários e escassos. Logo, a estimativa de vida média tende a ser menor nestas novas condições do que propõem os cálculos de hoje, baseados na evolução da seguridade social atual e não na sua destruição. Porque não há dúvidas de que a seguridade social foi a principal responsável pelo aumento da expectativa de vida dos brasileiros ao longo do tempo. A sua destruição significa a diminuição da expectativa de vida das massas empobrecidas em geral.

Com o desmonte da seguridade social, o Estado burguês no Brasil envia sinais claros de sua disposição em arrasar todas as conquistas sociais dos trabalhadores brasileiros. Conquistas responsáveis por garantir, mesmo em patamares baixos, um mínimo de dignidade a milhões de pessoas.

Pilhagem sem limites

No final de 2016, o governo Temer ainda nos “brindou” com o anúncio de uma reforma trabalhista, cujo sentido é o de destruir os mecanismos legais de proteção ao trabalho, principalmente a CLT. Ao estabelecer a supremacia do negociado sobre o legislado, os sindicatos de trabalhadores poderão negociar, nas convenções coletivas, acordos que flexibilizem jornada de trabalho e diminuição dos intervalos intrajornada. O objetivo não é outro senão o de impor ao trabalhador uma dupla precarização, impedindo-lhe de pleitear na justiça horas-extras não pagas, bem como a diminuição do horário de refeição, pois dos 200 mil processos cadastrados no TST em 2013, quase 30% pleiteiam justamente horas-extras e desrespeito ao intervalo intrajornada. E, além disso, pretende-se, também, aumentar a precarização das relações de trabalho através da terceirização das atividades-fim das empresas.

Feita a reforma trabalhista da maneira como deseja a burguesia, o governo Temer e seus aliados no Congresso, as camadas mais pobres da classe trabalhadora, mais sujeitas ao trabalho precário e com alta rotatividade, não conseguirão completar em vida os 49 anos de contribuição sugeridos na proposta de reforma que Temer enviou ao Congresso. Quer dizer, a PEC 55, a Reforma da Previdência e a Reforma Trabalhista, se concluídas nos termos em que estão sendo aprovadas e cogitadas, jogarão mais da metade da população brasileira em um estado de grave miserabilidade.

Apresentam-se essas mudanças como necessárias para “modernizar” o país e criar um ambiente econômico capaz de recuperar os investimentos para a economia crescer. No fundo, pretende-se com todas essas alterações aumentar o mecanismo de superexploração da força de trabalho, visando garantir a lucratividade do capital. E isso implica um rebaixamento da inserção econômica do Brasil no mercado internacional causado pela hegemonia da fração rentista, que determina as linhas gerais da política econômica, combinada a uma fração agrária e mineradora, cuja atuação econômica se volta exclusivamente ao mercado externo. Assistimos a uma espécie de reatualização, em pleno século 21, de mecanismos econômicos de nosso passado colonial.

Mas, enquanto a seguridade social é destruída e os gastos públicos primários serão comprimidos por 20 anos, os gastos com juros da dívida pública serão mantidos intactos. Seus principais beneficiários são os parasitas do sistema financeiro. Enquanto nos últimos dois anos os trabalhadores enfrentaram desemprego e arrocho salarial, só em 2015 os cinco principais bancos do país (Itaú/Unibanco, Bradesco, Santander, Caixa Econômica Federal e Banco do Brasil), fecharam o ano com R$ 69,9 bilhões de lucro líquido. A lucratividade desses bancos está fortemente vinculada a aplicação em títulos e valores mobiliários, principalmente a dívida pública, representando 43% da sua receita nos últimos dois anos. O mecanismo da dívida representa uma forma privilegiada de acumulação de capital garantida pelo Estado. Em 2015, dos R$ 2,268 trilhões executados no Orçamento Geral da União, 42,43% foram gastos com juros e amortizações da dívida pública.

Priorizar no Orçamento os interesses do parasitismo financeiro, bem como fortalecer nossa “vocação” agro-mineral-exportadora, em detrimento dos interesses da maioria do povo, deixa claro que o sentido da relação da burguesia brasileira com o espaço nacional tem um caráter predatório, cuja base de apoio sempre esteve ao longo de nossa história nas parcelas politicamente mais reacionárias das camadas médias. Essa relação predatória se constata nas seguintes situações:

1) pela pilhagem de recursos públicos através da corrupção, ou por mecanismos formalmente legais como a dívida pública e a privatização, bem como por uma espécie de loteamento do Estado entre as diferentes frações burguesas.

2) por uma apropriação dos recursos naturais do país (terra e riquezas minerais) por grandes grupos capitalistas privados.

Essa expropriação muitas vezes é executada pela expropriação de pequenos agricultores, quilombolas e indígenas no espaço rural; e no espaço urbano através do processo de gentrificação, especulação imobiliária e a remoção de comunidades pobres.  O caráter predatório, no caso da atividade agrário-mineral, manifesta-se em uma forma de exploração sem quaisquer preocupações com impactos ambientais, sem a partilha dos lucros dessa exploração com o resto da sociedade e por uma atividade que não chega ao fim enquanto não exaurir completamente as reservas exploradas.

3) em uma retirada de quaisquer limites legais, ou mesmo morais, ao processo de acumulação capitalista, cujo exemplo mais significativo são os altos níveis de exploração da força de trabalho.

O blábláblá liberal em torno dessas políticas serve apenas para edulcorar o conteúdo nefasto dessa relação predatória. Seu objetivo real ocultado pelo aparato de propaganda é permitir à burguesia prosseguir com a pilhagem de todos os recursos nacionais, através da espoliação e da imposição de enormes sacrifícios ao povo. É nesse sentido que a crise em curso no nosso país é de uma gravidade sem paralelo.

A burguesia, para manter seus lucros em patamares elevados, aproveita-se de uma conjuntura na qual a classe trabalhadora se encontra politicamente muito fragilizada, para perpetrar contra esta um ataque sem precedentes aos seus direitos. Não estamos diante de uma mera crise econômica ou fiscal. Muito menos estamos diante de uma mera crise político-institucional. Ambas são usadas como justificativa das desgraças que nos querem impingir.

Terra arrasada

A origem da crise em curso, como foi apontada acima, está na acentuação das contradições geradas pela relação predatória e espoliadora da burguesia com o espaço nacional. Essa relação predatória foi dramaticamente acentuada a partir da substituição, por parte da burguesia brasileira, de um projeto nacional-desenvolvimentista pelo neoliberalismo. Nota-se uma clara mudança na posição ideológica da burguesia brasileira quanto a sua relação com o espaço nacional. Sua fração hegemônica, como indicado, é liderada pelo rentismo e por uma burguesia associada, ambas com fortes vínculos com o circuito financeiro internacional e com os mercados externos.

A voracidade da agenda financeira sobre o Estado e o país, com seu alto grau de parasitismo, associada à burguesia agrário-mineral exportadora, acentua essa relação predatória. Já as frações subalternas da burguesia, principalmente aquelas cuja produção está dirigida preferencialmente ao mercado interno, ainda que tenham num primeiro momento seus lucros diminuídos por causa da política econômica de interesse do rentismo, recebem como compensação uma proposta de reforma trabalhista que acentua a superexploração do trabalho.  

A base dessa relação predatória se situa nos fatores estruturantes do capitalismo brasileiro: superexploração do trabalho (ainda maior quando se incluem fatores étnicos, de gênero e regionais), que atua como condição para garantir os altíssimos níveis de concentração de renda e de riqueza de parcelas ínfimas da população e como resultado do papel subordinado do país na cadeia imperialista. Esse regime de acumulação e de reprodução do capital busca constantemente obstruir, pelo uso recorrente dos aparelhos jurídico-repressivos do Estado, ou pelo controle político sobre os aparelhos administrativo-burocráticos, o atendimento de medidas de cunho reformista que efetivamente atenuem os efeitos dos aspectos estruturais acima indicados. Às massas populares cabe o “direito” de viver na barbárie cotidiana.

Esse é o capitalismo real

O capitalismo realmente existente em nosso país conhece periodicamente processos de reatualização desses fatores estruturantes. Essa necessidade de reatualizar ou, se preferirmos, de modernização sem mudanças substanciais em nosso capitalismo, não se deve a um atavismo cultural de nossa classe dominante. Suas determinações obedecem a razões bem mais práticas, como o estágio da luta de classe, os reordenamentos impostos à economia mundial pelas potências imperialistas e a necessidade de recompor as taxas de lucro em condições de garantir a reprodução ampliada do capital.  

O atual movimento de reatualização da relação predatória, porém, ao ter como força hegemônica o parasitismo rentista e a burguesia agrário-mineral exportadora, tem um aspecto que chama a atenção. O apodrecimento sem paralelo da sociabilidade burguesa no Brasil. Seus sintomas são vividos diariamente pela massa trabalhadora do país na forma de aumento da violência, da criminalidade, da disputa entre facções criminosas pelo controle de redes de tráfico de drogas, pela exacerbação da violência machista, pelo racismo, pelo aparecimento de movimentos separatistas e pelo ataque sistemático a qualquer projeto igualitarista, tenha ele cunho reformista ou revolucionário.

Nesse caldo político e social ganham audiência as soluções místico-religiosas e político-autoritárias de caráter conservador. Ambas apelam para a necessidade de se implantar “reformas conservadoras”, vistas ilusoriamente como as únicas capazes de nos trazer de volta a “paz social”.

Um ramo do aparelho de Estado tem demonstrado, mais do que qualquer outro, os efeitos desse apodrecimento. Trata-se do sistema político. Este, em qualquer país capitalista, cumpre dois papéis fundamentais, cujas determinações político-ideológicas concretas refletem o estágio da luta de classe. Primeiro é o de regular o acesso aos aparelhos de Estado das frações burguesas concorrentes. Segundo é o de obstaculizar o acesso das classes dominadas a esses mesmos aparelhos de Estado. Em essência, sua finalidade é sempre a de garantir a dominação de classe, mesmo que para isso as classes dominantes tenham que fazer concessões político-econômicas às classes dominantes.

Neste caso, a relação predatória assume um caráter de pilhagem dos recursos públicos, através da corrupção pura e simples, ou recorrendo a mecanismos “legais” como apropriação de fundos estatais através da dívida pública, privatização, terceirização ou concessão de serviços públicos. Desse modo, as eleições não passam de mera disputa entre máfias político-empresariais pelo controle dos ramos executivo e legislativo dos aparelhos de Estado. O intuito claro é o de garantir, a partir de posições importantes no interior da máquina de governo, o acesso a uma massa considerável de recursos públicos para, a partir daí, realizar toda a sorte de negócios escusos. Reside aqui um aspecto importante da relação predatória.

A disputa política atual é apenas pela chave do cofre

Trata-se de uma luta intraburguesa, no sentido de loteamento do Estado e mesmo de pedaços do território nacional. O rentismo controla os instrumentos de político-econômica. A fração agrário-mineradora domina pedaços do território nacional. Patrimônios históricos e naturais são entregues à gestão de empresas privadas. E as burguesias regionais lutam pelo controle dos aparelhos de Estado locais através da terceirização ou concessão de serviços públicos.

Mas a regressão social observada pela reatualização da relação predatória só adquire a força atualmente vista pelas dificuldades de as massas trabalhadoras oferecerem uma resistência de proporção idêntica. Dificuldade que resulta, principalmente, dos efeitos anestésicos causados por 13 anos de mandatos petistas em termos de desmobilização, despolitização e baixo nível de consciência de classe.

A luta de classe se rebaixou ao mais reles economicismo, pois os mandatos petistas não se propuseram a defender qualquer reforma progressista capaz de mobilizar os trabalhadores e o povo, além de fazer avançar seu nível de consciência e de politização. Temos uma classe trabalhadora, atualmente, desarmada política e ideologicamente para responder à ofensiva da burguesia contra os seus direitos e barrar o processo de pilhagem.

A resposta da burguesia para quem não aceitar morrer na miséria se reflete na criminalização e na repressão jurídico-policial, com instrumentos criados inclusive pelo governo Dilma, como a lei antiterrorismo. Este é um dos motivos para o governo Temer ter deixado de fora da reforma da previdência os militares, responsáveis por mais da metade do déficit observado no sistema. Fica claro seu objetivo de não se indispor com o aparato repressivo do Estado, pois dele precisará para reprimir duramente as parcelas insatisfeitas da população.

Encruzilhada histórica

As frações hegemônicas da burguesia brasileira, ao reatualizarem nas condições atuais a relação predatória com o espaço nacional, levam a um agravamento da crise social e da barbárie cotidiana vivida pela grande massa trabalhadora do país. As tendências em curso indicam um crescente esgarçamento da sociabilidade burguesa, acentuada pelo desmonte da seguridade social e dos mecanismos de proteção ao trabalho. A reação das parcelas mais combativas da classe trabalhadora é respondida com mais violência estatal e criminalização dos movimentos sociais. Agravam-se, com o recurso cada vez mais comum à violência, a luta concorrencial entre as frações burguesas por uma repartição mais equilibrada do poder político e econômico. Por fim, a crise tende a agravar a criminalidade e a disputa entre facções criminosas, que se arraigam cada vez mais no sistema político.

As conclusões acima podem parecer apocalípticas. Todavia, preferimos pecar pelo realismo pessimista a ficar no otimismo vazio e sem base real e concreta. Estamos, sem exagero, diante de uma espécie de “mexicanização” do Brasil: alinhamento total das frações burguesas hegemônicas com os Estados Unidos, desnacionalização da economia, precarização das relações de trabalho, empobrecimento ainda maior da maioria da população, disputa violenta entre as frações burguesas pelo controle de espaços de poder no interior do Estado, aumento da violência e da criminalização contra os movimentos sociais mais combativos e domínio do crime organizado (principalmente as redes de tráfico de drogas) sobre parcelas do território nacional e mesmo no interior do Estado.

A única saída para essa crise de dimensão histórica, que pode hipotecar o futuro do país pelas próximas décadas e até mesmo inviabilizá-lo como Estado nacional, está na mobilização da classe trabalhadora e do conjunto do povo para botar abaixo os aspectos estruturantes de nosso capitalismo e preparar as bases para a construção de uma sociedade socialista. São óbvias as dificuldades atuais para que esse movimento se concretize. Todavia, trata-se de uma tarefa inescapável, se quisermos superar as consequências catastróficas produzidas pelo atual movimento de reatualização da relação predatória da burguesia brasileira com o espaço nacional.

 

Renato Nucci Jr. é ativista social.

Fernando Luz é historiador.

 

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