Correio da Cidadania

Sob a névoa da conjuntura

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Existem conjunturas nacionais em que se deflagram processos sociais complexos. Um de seus sintomas é a radicalização das posições e do debate político em geral, assim como a simplificação de questões relevantes. Essas conjunturas, no entanto, não se explicam somente pelas disputas entre os grupos internos envolvidos. Também não se esgotam pelas conspirações diárias do jogo político nacional, embora sejam estas um de seus elementos mais importantes.

 

Pode-se supor que perpassam, sobre essas conjunturas, dinâmicas mais profundas, que atuam de modo mais silencioso. Forças que, em geral, não são percebidas claramente no cotidiano, mas que podem balizar o “presente” e “energizar” os atores em luta. São forças de caráter mais perene, de movimentos lentos, depreendidas e ponderadas sobretudo quando analisadas com lentes de maior alcance, voltadas a espaços dilatados (tabuleiros internacionais) e a tempos mais longos (de décadas ou mesmo séculos).

 

Mas o que permite supor a existência de tais forças? Há alguns anos os governos Lula e Dilma implementaram algumas iniciativas estratégicas “não-convencionais” sobre temas sensíveis na área internacional (sobretudo defesa, petróleo e finanças), com desdobramentos complexos em tabuleiros maiores. Embora tenham sido realizadas com base em estratégias de não confrontação, essas iniciativas têm acarretado antagonismos em contextos de assimetrias desfavoráveis ao Brasil, com “agravante” de que, quando pensadas em conjunto, revelam um outro significado, porque existem, em torno delas, fios que as articulam e multiplicam seu potencial perturbador.  Ademais, começaram a vir à tona algumas evidências de articulações internacionais de protagonistas internos.

 

Adverte-se desde logo que nem é preciso avaliar em detalhes o grau de sucesso ou não das iniciativas do governo brasileiro nessas áreas. Algumas não geraram os efeitos esperados, outras são incipientes, parte sofreu ajustes, embora algumas ocasionaram consequências não desprezíveis. Em geral, sobre temas sensíveis, quando algumas iniciativas são assumidas e efetivadas em algum grau, é o suficiente para, como no caso do Brasil, por suas características geográficas, gerar oposições e tentativas de veto de potências estrangeiras. São reações e comportamentos “naturais” ao sistema, decorrentes da própria crônica relação de insegurança e ameaça entre os estados, por conta da pressão competitiva e sistêmica que os impele "para frente", num “jogo” em que a projeção de um representa perdas de posições relativas para outros.

 

Geopolítica, segurança e defesa

 

Em 2005, inaugurou-se a Política Nacional de Defesa e, em 2008, a Estratégia Nacional de Defesa. Decerto, defesa e segurança são os temas mais delicados no campo das relações internacionais desde o nascimento do sistema interestatal capitalista no longo século 16. Daí emanam suas principais hierarquias e suas mais importantes forças propulsoras.

 

Mas, para a conjuntura política brasileira atual, qual a relevância dessa iniciativa? O significado está no seu antagonismo em relação à antiga geoestratégia estadunidense para todo o continente americano.

 

Apesar de diversas adequações ao longo do tempo, sua síntese foi elaborada por Nicholas Spykman em 1942. Para o geopolítico, a primeira linha de defesa dos EUA deveria ser deslocada do continente para as bordas da Eurásia com objetivo de assegurar o equilíbrio de poder naquela região. A política externa deveria, assim, deixar de ser influenciada pelo isolacionismo e passar a ser balizada por parâmetros intervencionistas. Para as Américas, deveria ser bloqueada toda e qualquer tentativa, explícita ou não, de ascensão de uma potência regional ou de uma aliança de países que representasse, de algum modo, um questionamento à sua hegemonia regional.

 

Essa formulação não era propriamente uma novidade histórica. A Doutrina Monroe de 1823 identificava todo o continente americano como o perímetro de segurança dos EUA. Recuando ainda mais no tempo, é possível encontrar evidências dessa visão nos discursos dos “pais fundadores” da nação, a partir da ideia de que os Estados Unidos nasceram para ser o árbitro das relações políticas entre o velho mundo (a Europa) e o novo mundo (as Américas).

 

Em 1991, mesmo com a reformulação de sua doutrina de segurança, com o fim da Guerra Fria, os EUA não abandonaram suas preocupações com as Américas, pois, desde o governo de Bush (pai), passaram a se orientar por uma ativa atuação contra o aparecimento de potências regionais que pudessem concorrer com eles em qualquer região do mundo. A política de Bush (filho), após os atentados de 2001, radicalizou e consolidou a ideia de ataques e ações preventivas onde se localizassem ameaças à segurança do país. Há, portanto, um antigo e quase perene entendimento geopolítico dos EUA para o continente americano.

 

Uma das novidades consiste na sofisticação das formas de atuação dos EUA depois de 1991. Ao invés de priorizar o emprego de efetivos militares em confrontos diretos, tem-se valorizado cada vez mais a manipulação da opinião pública local, por meio do domínio da informação, baseado na utilização de propaganda e ações psicológicas destinadas ao controle social, político e militar, onde grupos locais descentralizados assumem o exercício de ações operacionais. Essa estratégia difundiu-se após os atentados de 11 de setembro em nome do combate ao “terrorismo”. A troca do “inimigo” ou da “ameaça” a ser combatida não muda a dinâmica do jogo, terrorismo, narcotráfico, corrupção ou o que convier. A ideia é confundir e manipular as populações locais sobre as fronteiras do que realmente está em disputa, municiar grupos locais responsáveis por operações e realizar ações em nome de uma “causa” que permitam vitórias em outros campos e confrontos.

 

Na outra ponta dos antagonismos em sugestão, encontram-se os recém-criados Plano e Estratégia Nacionais de Defesa do Brasil, que foram elaboradas com base no conceito de “entorno estratégico”, cuja ideia chave é irradiar sua influência e promover o desenvolvimento econômico e a segurança de sua região próxima (América do Sul, Atlântico Sul e África Ocidental), de modo a estabilizá-la e, sobretudo, de forma a evitar a presença de potências externas. Alterou-se estruturalmente a ênfase da agenda de segurança nacional. Em detrimento das ameaças internas (primeiro, comunismo; depois, terrorismo e narcotráfico) como pautado pelos EUA desde a 2º Guerra Mundial, priorizaram-se as ameaças externas (sobretudo de potências estrangeiras) e a busca por autonomia e controle de recursos naturais estratégicos (destaque para o pré-sal e a Amazônia).

 

Implementaram-se políticas para o desenvolvimento interno da base da indústria de defesa; a constituição de uma força dissuasória externa (como o caso do projeto de submarino nuclear); e a cooperação com os países da região, seja a integração econômica regional (como a reformulação do Mercosul), seja uma agenda de segurança regional (como a criação da Unasul).

 

Trata-se de iniciativas divergentes não só à tradição brasileira de alinhamento à potência hegemônica (a despeito de exceções históricas importantes), como também aos interesses geoestratégicos da principal potência do sistema.

 

Qual seria, então, a relação entre a geoestratégia estadunidense, a política nacional de defesa e a atual conjuntura de crise no Brasil? Algumas evidências começam a revelar, por exemplo, que ocorreram contatos da Procuradoria Geral da República, em conjunto com integrantes da equipe da operação Lava Jato, com o Departamento de Justiça dos Estados Unidos, quando foram passadas informações secretas (frutos de espionagem) sobre o Programa Nuclear Brasileiro e a Petrobrás. Nas palavras do jornalista Luis Nassif, trouxeram “de lá informações que explodiram na Eletronuclear, depois de encontro com advogada do Departamento de Justiça ligada a escritório de advocacia que atende o segmento nuclear por lá”.

 

Como resultado dessas trocas de informações, deflagrou-se a 16º fase da operação Lava Jato, denominada radioatividade, que ocasionou, por exemplo, a interrupção, por ora, do projeto de construção da Usina Nuclear de Angra 3, cuja importância transcende as necessidades de ampliação da capacidade de geração elétrica brasileira. Angra 3 cria uma demanda necessária por combustível nuclear, viabilizando o processo de enriquecimento de urânio pelas Indústrias Nucleares do Brasil (INB), que deverá atender também ao submarino ainda em construção.

 

O Brasil é um dos seis países do mundo com domínio sobre esta tecnologia sensível, responsável por uma série de tensões internacionais graves. A referida operação também decretou a prisão do Almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva, responsável pelo Programa de Desenvolvimento do Ciclo do Combustível Nuclear e da Propulsão Nuclear para Submarinos no país. Não cabe avaliar aqui o teor das denúncias, mas sim evidenciar o papel que estas ações acabam por cumprir em outros tabuleiros.

 

Petróleo

 

A partir da confirmação, em 2007, de expressivas reservas de petróleo de considerável qualidade na região do pré-sal brasileiro, o governo Lula aprovou, em 2010, uma nova regulamentação das atividades nessa nova fronteira, colocando a Petrobrás ao centro do seu processo de exploração.

 

O petróleo constitui-se, desde a 1º Guerra Mundial, num dos mais importantes recursos estratégicos. “Tornou-se, há tempos, o principal combustível das forças armadas em geral; encontra-se ao centro da matriz de transporte de praticamente todo o mundo; e tem uso difundido e diversificado nas mais diferentes cadeias produtivas”. O desafio da segurança energética transformou-se num imperativo.

 

Por ser um recurso escasso à maioria dos países, o petróleo adquiriu considerável importância nas relações internacionais. “É amplamente utilizado no 'jogo diplomático' como arma de pressão, retaliação, dissuasão, apoio ou sustentação, cujos cálculos, interesses e iniciativas respondem às disputas geopolíticas inerentes à competição interestatal” (ibid.). Ademais, as receitas decorrentes de sua exportação possuem uso estratégico potencial para flexibilização das restrições à capacidade de importação de um país.

 

A nova legislação para o pré-sal (Lei 12.351 de 2010) significou um avanço, sobretudo porque o seu Artigo 12º resguarda ao governo a possibilidade de entregar à Petrobrás, sem necessidade de leilão, áreas mais promissoras, “visando à preservação do interesse nacional e ao atendimento dos demais objetivos da política energética”.

 

O pré-sal ao resguardo da legislação de 2010 potencializa a atuação da política externa brasileira, que, desde 2003, está voltada a uma inserção mais autônoma do país, com base na defesa do multilaterismo, priorizando o eixo sul-sul e o seu “entorno estratégico”. Há uma sinergia em potencial com força perturbadora nada desprezível quando se articulam as iniciativas de uma política externa independente e um controle mais efetivo do estado sobre expressivas reservas de petróleo, seja para a garantir a segurança energética do país ou de aliados, seja para utilizá-la como instrumento de suas relações com outras nações, seja também como fonte em potencial para se contornar, quando oportuno, o problema da escassez de divisas, via exportação de petróleo.

 

Desde os vazamentos de documentos da Agência de Segurança Nacional (NSA) dos EUA, em julho de 2013, pelo ex-técnico Snowden, tornou-se público que a Petrobrás há tempos é alvo de espionagem. É provável que tenham ocorrido o repasse dessas informações aos operadores da Operação Lava Jato, que acabaram por criar uma conjuntura que tem fragilizado a própria empresa para além do necessário à averiguação de responsabilidades por malversações, forçando-a a se desfazer de ativos estratégicos e comprometendo a cadeia produtiva ligada a ela.

 

Produziu-se também o contexto político adequado para se iniciar o processo de revisão do marco regulatório de 2010, ora já aprovado no Senado e na pauta da Câmara dos Deputados. Em nome do combate à corrupção, acaba-se por retirar do Estado brasileiro sua capacidade de iniciativa estratégica no setor, atendendo aos objetivos geopolíticos de outros países e de suas respectivas empresas nacionais.

 

Possíveis conexões entre interesses estratégicos estrangeiros e a Operação Lava Jato foram bem observadas, mais uma vez, pelo jornalista Luis Nassif. “De repente, um juiz de primeira instância em Curitiba, Sérgio Moro, tendo como fonte de informação apenas um doleiro, Alberto Yousseff, tem acesso a um enorme volume de informações sobre a Petrobras e consegue nacionalizar um processo regional (...) Até hoje a Lava Jato não revelou como chegou às primeiras informações sobre a Petrobras, que permitiram expandir a operação para todo o país”.

 

Moeda e finanças internacionais

 

O Brasil, no âmbito dos BRICS, tem participado de iniciativas ousadas no que se refere ao ordenamento monetário internacional, outro tema sensível entre as grandes potências.

 

No final do século 19, a Inglaterra logrou um feito original até então: impôs sua moeda nacional como a de referência internacional. Depois de um processo histórico secular, seu coroamento ocorreu com término da Guerra Franco-Prussiana (1870-71), por meio do enquadramento da França e a adesão da Alemanha de Bismark ao padrão libra-ouro em 1872.

 

Cada etapa da internacionalização da libra teve como resultado a alavancagem da capacidade de gasto do Estado inglês. A demanda por ativos denominados em libra, sobretudo moeda e títulos da dívida pública inglesa, cresceu de modo desproporcional. Estes ativos foram transformados no principal instrumento de estabilização para as demais economias nacionais. Grosso modo, o acúmulo de reservas denominadas em libras permitia-os contornar os problemas nas contas externas, ao mesmo tempo em que ampliava a capacidade de endividamento do Estado inglês. Não menos importante, o sistema passou a funcionar de modo estabilizador à economia inglesa e de forma instável às demais economias por conta da liberdade de movimentos dos capitais.

 

No entreguerras, ocorreu uma disputa político-diplomática entre a Inglaterra e Estados Unidos sobre a moeda de referência internacional. Nas negociações de Bretton Woods, em 1944, os Estados Unidos garantiram para si o “privilégio exorbitante” de que gozavam os ingleses. Desde então, a diplomacia monetária dos Estados Unidos seguiu sendo orientada pela mesma estratégia: veto e oposição permanente a qualquer iniciativa de substituição do dólar como moeda de referência internacional, sobretudo nas instituições financeiras multilaterais (FMI e Banco Mundial) criadas em 1944; e “precificação” em dólar de mercadorias estratégicas globais (petróleo, sobretudo).

 

Ao longo da história do Banco Mundial e do FMI é possível observar uma certa coerência entre as modalidades e as exigências relativas às operações financeiras dessas instituições e a política externa dos países do centro, em especial a dos EUA, o que balizou a atuação dessas instituições aos objetivos estratégicos deste país.

 

Nesse contexto, chamam atenção as iniciativas dos BRICS no campo financeiro internacional, sobretudo no que se refere à criação de instituições semelhantes ao FMI e ao Banco Mundial, mas cujo controle será compartilhado por um conjunto de países que antagonizam com os EUA em outras áreas sensíveis. Envolvem dois dos principais rivais dos Estados Unidos no campo militar, Rússia e China; além de Índia, Brasil e África do Sul.

 

A criação do Arranjo de Contingência de Reservas (uma espécie de “FMI dos BRICS”) e o Novo Banco de Desenvolvimento (o “Banco dos BRICS”) permitirá aos países com dificuldades em seus Balanço de Pagamentos o endividamento em moeda estrangeira fora da alçada de influência e do controle das instituições consagradas nos Acordos de 1944. Em caso de sucesso e projeção global, essas instituições financeiras dos BRICS ganham potencial para, em outro momento, pressionarem a própria hierarquia monetária internacional atual, por meio da difusão do uso de uma moeda de referência diferente do dólar norte-americano.

 

Observa-se, por fim, que a VI Cúpula dos BRICS ocorreu em Fortaleza, em julho de 2014, onde se anunciou a assinatura do Acordo constitutivo do Novo Banco de Desenvolvimento e do Tratado para o estabelecimento do Arranjo Contingente de Reservas. Aos olhos de outros, a foto de encerramento da Cúpula não passou despercebida. A presidenta Dilma estava ao centro dos presidentes da Rússia, V. Putin, e da China, Xi Jinping, cercados, por sua vez, pelo primeiro-ministro indiano, N. Modi, e o presidente da África do Sul, J. Zuma.

 

Arrematando, não é com indiferença que potências estrangeiras analisam as iniciativas de projeção internacional do Brasil por meio de uma política externa autônoma e de uma política de defesa organizada com base em ameaças externas, articuladas a instrumentos militares assentados em energia nuclear, tendo por trás reservas expressivas de petróleo, garantidoras da segurança enérgica nacional, com potencial de uso enquanto instrumento de política externa e, também, como instrumento para reforçar, quando conveniente, as reservas internacionais em moeda estrangeira do país. Alguns dos alvos da Operação Lava Jato constituem-se pilares deste conjunto de iniciativas. Sob a névoa das disputas políticas domésticas, as conexões estrangeiras da Operação Lava Jato ainda não estão claras, mas seus efeitos já se fazem sentir.

 

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Mauricio Metri é professor de Economia Política Internacional da UFRJ.

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