Correio da Cidadania

O resgate da AP

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Está em vias de virar livro ainda em 2013 a longa (28 anos) pesquisa do jornalista Otto Filgueiras sobre a história da Ação Popular (AP), uma das principais siglas políticas engajadas na resistência à ditadura militar, ao lado da ALN, do PCdoB e da VPR.

 

De origem baiana, o pesquisador é repórter há 36 anos e dedicou a maior parte de sua vida profissional ao levantamento da vida e morte da organização de esquerda que teve entre seus militantes originais o sociólogo mineiro Herbert de Souza (Betinho) e o líder estudantil José Serra, ex-governador paulista que, como candidato do PSDB, já perdeu para o PT duas eleições presidenciais.

 

Empenhado em fazer um balanço da história da organização que nasceu no seio da esquerda católica de Belo Horizonte no início dos anos 1960 e esgotou-se na luta armada na década de 70, Filgueiras está formatando o último dos 150 capítulos do livro REVOLUCIONÁRIOS SEM ROSTOS - Uma História da Ação Popular, que tem envergadura para sair em forma de trilogia, num total de 1000 páginas.

“Não sou personagem”, adianta Otto, lembrando que o livro conta a atuação da AP, desde a fundação em 1962 até a derradeira tentativa (frustrada) de reorganizá-la, no início dos anos 1980. A obra baseia-se principalmente na história documental da organização e, quando comprovado pelo autor, no relato oral dos seus antigos dirigentes, militantes, simpatizantes e familiares.

 

Numa síntese do seu trabalho, condensado em milhares de páginas de documentos e mais de 800 horas de fitas gravadas, o repórter resume: “Realizei mais de 200 entrevistas em vários estados do Brasil com antigos dirigentes, militantes e simpatizantes das várias fases da AP, mas também com familiares de dirigentes e de militantes já falecidos, advogados que atuaram na defesa de pessoas que foram presas, torturadas, processadas e algumas assassinadas pela ditadura militar, além de entrevistas com militantes de outras organizações de esquerda.”

 

A popular AP é pouco conhecida pelas novas gerações. De origem cristã, principalmente com influência de pensadores católicos humanistas como Emmanuel Mounier, Teilhard de Chardin, Jacques Maritain, o padre Louis-Joseph Lebret e o padre brasileiro Henrique Lima Vaz, mas também influenciada por pensadores teóricos progressistas da igreja presbiteriana, a exemplo do pastor estadunidense Richard Shaull, a AP começou a ser articulada pela esquerda católica a partir de 1961, em Minas Gerais, onde surgiu o jornal Ação Popular, editado por Vinicius Caldeira Brant.

 

Inicialmente, a Ação Popular era considerada apenas um movimento, mas logo em 1962 seus articuladores realizaram duas reuniões nacionais, primeiro em Belo Horizonte e depois em São Paulo, quando esboçaram seu estatuto ideológico. Seu congresso de fundação só aconteceu no carnaval de 1963, em Salvador, na Escola de Veterinária da Universidade Federal da Bahia (UFBA), quando foi aprovado seu Documento Base. A partir de então, a AP passou a ter um referencial teórico e se constituiu nacionalmente como organização política, embora sem registro legal jurídico.

 

Ao longo de sua trajetória, a Ação Popular aglutinou mais de 25 mil militantes, simpatizantes e pelo menos um milhar deles foi deslocado para trabalhar em fábricas e no campo a partir de 1968, na chamada “fase maoísta”.

 

Uma das principais bases políticas da resistência ao regime militar, a AP defendeu a luta armada para derrubar a ditadura, mas era contra as ações foquistas. Mesmo se esforçando para manter seus vínculos sociais, inclusive com militância política dentro de partidos (PTB e PSB), terminou isolada e esfacelada pela repressão da ditadura militar.

O livro esmiúça os embates internos que levaram a Ação Popular a migrar do cristianismo esquerdista ao marxismo-leninismo e, também, a história de seus principais militantes e dirigentes, entre eles Jair Ferreira de Sá, um dos fundadores da organização, que esteve  no comando desde o começo e foi seu principal dirigente nos anos mais duros do regime militar. Jair já estava clandestino em 1968, quando coordenou os protestos populares durante as comemorações oficiais do dia 1 de maio em São Paulo, episódio que levou o governador Abreu Sodré a submeter-se aos militares. Além de pesquisar o arquivo de Jair Ferreira de Sá, depositado no Arquivo Público do Rio de Janeiro, Otto recebeu da família o seu arquivo pessoal.

Entre as mais de 200 entrevistas realizadas, destacam-se os depoimentos de personagens históricos, como o Padre Henrique Lima Vaz (já falecido), na época filósofo e principal teórico da esquerda católica, cujas ideias foram decisivas na fundação da organização e na redação do Documento Base aprovado em 1963.

 

Otto Filgueiras também registra o depoimento de outras figuras:

 

+ o operário Ênio Seabra, que liderou as greves de Contagem (MG), em 1968;

+ o operário José Barbosa (já falecido), um dos líderes da manifestação contra a ditadura no 1 de maio de 1968, na Praça da Sé, em São Paulo;

+ o mineiro José Gomes Dazinho (já falecido), líder operário nas minas de ouro e prata, em Nova Lima (MG), e deputado até 1964, quando foi preso e torturado;

+ o líder camponês Manoel Conceição Santos, dirigente da organização;

+ Jean Marc, ex-presidente da UNE;

+ Doralina Rodrigues Carvalho, José Fidelis Sarno, José Luiz Moreira Guedes, Maria Nazaré Pedrosa,  ex-dirigentes da UNE; Maria Auxiliadora Arantes e Anete Rabelo;

+Aldo Arantes, Haroldo Lima e Renato Rabelo, atualmente dirigentes do PCdoB;

+ O pessoal que participava do Movimento de Educação de Base (MEB) no governo João Goulart, a exemplo de Nilson Batista e Zélia Rezende;

+ Felícia Andrade de Moraes, militante da AP e companheira de Rui Frazão, morto pela ditadura;

+ Tibério Canuto e Emiliano José, ex-dirigentes da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES).

 

Com esses e outros, o pesquisador reuniu dados sobre a presença da AP nos movimentos estudantil, camponês e operário, particularmente de Contagem (MG), Osasco, São Paulo e no ABC paulista nas décadas de 1960 e 1970.

 

Com base na documentação encontrada nos arquivos foi possível esclarecer também a prisão e morte dos militantes e dirigentes da AP Jorge Leal Gonçalves, Raimundo Eduardo da Silva, Luiz Hirata, Paulo Stuart Wright, Umberto Câmara, Honestino Guimarães, José Carlos da Mata Machado, Gildo Macedo, Eduardo Collier e Fernando Santa Cruz. Eles foram presos em agosto, setembro  e outubro de 1973, e em fevereiro de 1974, durante uma operação executada pelo Centro de Informações do Exército (CIE), que capturou mais de 60 pessoas da organização. Morto no DOI-CODI de São Paulo, o dirigente Paulo Stuart Wright, de pais norte-americanos e origem presbiteriana, foi enterrado no Cemitério de Perus com o nome de Pedro Tim, mas seu corpo nunca foi encontrado.

 

O relato de Otto Filgueiras configura, talvez, a mais perturbadora viagem às prisões do governo militar, pois revela grandezas e misérias do comportamento dos dois lados da história. O repórter achou nos arquivos policiais um documento do Ministério da Justiça que orienta como interrogar e torturar os militantes da AP. Segundo o documento, o pessoal da AP era bem preparado ideologicamente, resistia para “falar” mesmo sob tortura e, quando dava depoimento, “inventava estória”. Por outro lado, alguns capítulos se referem à colaboração de pessoas ligadas à AP com os órgãos da repressão. Foi a partir dessas delações que o CIE promoveu o cruel desmantelamento da AP em 1973.

 

Segundo Otto Filgueiras, seu livro entrega a identidade completa, incluindo data de nascimento, local onde nasceu, nome de pai e mãe, de uma das figuras mais sinistras da polícia política brasileira durante a ditadura: o Dr. Cláudio, agente do CENIMAR. Especialista em AP, Dr. Cláudio acompanhou o interrogatório de quase todos os militantes da organização que foram presos e, “certamente, guarda segredos sobre aqueles que foram mortos e hoje são dados como desaparecidos”.

 

O pano de fundo da história escrita por Otto Filgueiras é a luta pelo socialismo em face do processo capitalista no Brasil, que vem crescendo enquanto os regimes comunistas perderam-se  – definitivamente?  – na voragem da História.

 

Lembrete de Ocasião

“O conjunto dos bens da terra destina-se, antes de mais nada, a garantir a todos os homens um decente teor de vida.”

Papa João XXIII (1881-
1963), um dos inspiradores da Teologia da Libertação, que exigia da Igreja Católica a “opção preferencial pelos pobres”.

 

Geraldo Hasse é jornalista.

Originalmente publicado no jornal Século Diário - http://www.seculodiario.com.br

Comentários   

0 #1 Eu vi! estava lá !Ninguém me contou! Só que eu não tinha ideias do acontecido.Agata Desmond 05-04-2013 17:16
Eu estivi lá! Trabalhava na Merck,que ficava na rua Clarisse Indio do Brasil,no horário do almoço eu e minha amiga Jamile,andavamos um pouco para almoçar lá na Une,mais conhecida como Calaboço, que meus amigos do Colégio maria José Imperial,costumavam a dizer:Calabouca. Quase sempre nós iamos almoçar lá,por ser mais barato e pelos rapazes que tinham por lá.Fui ao encontro de minha amiga ,nesse dia na cidade após o trabalho e jaz uma confusão na cidade os soldados estavam a cavalo com bombas de gáz lacrimogenico jogando em todos . Corremos e nos refugiamos em um prédio da ABI e lá estava o Vladimir Herzog...acompanhei o enterro do Edson até o cemitério São João batista,carregando junto com outros o caxão deles. Mas o que me emocionou mesmo,foi em 1970,na Praça da Sé,quando as bancas de Jornais foram incendiadas,eu também estava lá. Foi terrivél
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