Um general diferente

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Mário Maestri
05/08/2011

 

 

Com o falecimento de Nélson Werneck Sodré, em 13 de janeiro de 1999, o Brasil perdeu um dos seus mais longevos e brilhantes pensadores. Werneck Sodré nasceu em 27 de abril de 1911, há cem anos, e ingressou, jovem, na carreira militar, alcançando o generalato. Ainda jovem oficial, dedicou-se ao estudo da sociedade brasileira, publicando, em 1938, seus dois primeiros livros, Panorama do Segundo Império e História da literatura brasileira: seus fundamentos econômicos. 

 

O título do segundo livro − que, ampliado, conheceu inúmeras reedições – assinalava a opção metodológica do autor. Até sua morte, Sodré dedicou-se à análise materialista da sociedade brasileira. Apesar de ter se consagrado sobretudo como historiador, produziu vasta obra sobre múltiplos aspectos da formação social brasileira - literários, geográficos, sociológicos, políticos etc.

 

Nos anos quarenta, cinqüenta e sessenta, Sodré desempenhou singular importância na formação da intelectualidade brasileira, em geral, e de esquerda, em particular. O fato de ter sido o mais brilhante defensor da existência de relações semi-feudais no passado do Brasil, tese defendida pelo PCB, então maior partido da esquerda, determinou forte desvalorização de sua produção teórica, quando da crise daquela organização, atingida pelo golpe de 1964.

 

Antes e após o golpe, diversos pensadores de esquerda propunham, em oposição a essa leitura, o caráter capitalista acabado da sociedade nacional e, portanto, um programa socialista para o país. Na época, a ideologização da discussão historiográfica levou a que parcelas da intelectualidade e da militância de esquerda negassem, em bloco, a produção de Sodré.  O debate entre passado semi-feudal e capitalista seria superado, em 1978, por Jacob Gorender, dirigente dissidente do PCB, ao propor a essência escravista do Brasil, até 1888, em O escravismo colonial.

 

Intelectual e politicamente ativo após a redemocratização, Sodré permaneceu, com Oscar Niemeyer, de sua geração, ao lado de Luiz Carlos Prestes quando o velho secretário-geral rompeu com o PCB, acusando sua direção de revisionismo. Na década de 80, sob a pressão da maré neoliberal, o marxismo conheceu forte desprestígio entre a intelectualidade, sendo praticamente defenestrado dos cursos universitários. Nesses anos, intelectuais de esquerda abandonaram suas posições sob a pressão da conjuntura hostil. Mesmo após o fim da URSS, o velho general perseverou em suas concepções.

 

Nesses anos, construiu-se uma quase conspiração de silêncio em torno da obra de Sodré. Diversas gerações de cientistas sociais formaram-se escutando que o velho pensador constituía anacronismo a ser esquecido. Em geral, essa desqualificação foi realizada sem o estudo da obra em questão, comumente, por críticos que não a conheciam. Tal era essa ignorância que os próprios críticos continuaram veiculando conteúdos, corretos e incorretos, atuais ou vencidos, cunhados ou difundidos pelo historiador.

 

A negativa à apreciação sistemática da obra de Sodré devido a seu conteúdo e opções metodológicas determinou empobrecimento das nossas ciências sociais. Na sua práxis, esse autor aventurou-se por sendas, sobretudo historiográficas, que décadas mais tarde seriam apresentadas como último grito da pós-modernidade, em geral em sentido conservador. Em seus livros encontram-se páginas magistrais sobre a história da vida quotidiana e das mentalidades; das relações entre história e literatura; sobre aspectos inusitados da história política etc.

 

Sodré distinguiu-se também pela plena consciência dos nexos essenciais, também nas ciências sociais, da forma e conteúdo. Por escrever com virtuosismo de artista e de artífice, a leitura de muitos de seus livros permite verdadeiro prazer estético.

 

A obra sodreana construiu-se através de seis décadas - um dedo a mais da metade de história republicana do Brasil! Ela constitui tentativa de reflexão sistemática, desde o método marxista, da sociedade brasileira, passada, presente e futura, e singular registro da evolução de importante vertente da intelectualidade nacional.

 

Mário Maestri é professor do curso e do programa de pós-graduação em História da UPF.

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