Correio da Cidadania

A Revolução de Maio de 1810 (2)

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3. O Rei está morto, viva Buenos Aires!

 

Em 17 de maio, o vice-rei Baltazar Hidalgo de Cisneros foi informado, através da chegada de navio inglês, da queda da Junta de Sevilha. Não soube, porém, da formação do Conselho de León, na Andaluzia. Procurando anteceder-se à explosão autonomista, lançou proclamação sobre o vazio de poder: "En el desgraciado caso de una total perdida de la península y falta del Supremo Gobierno, no tomará esta superioridad determinación alguna que no sea previamente acordada em unión de todas las representaciones de esta capital, a que posteriomente se reúnan las de sus Províncias dependientes (... )".

 

Em pronta resposta ao pronunciamento, o partido patriota crioulo pressionou o governo municipal (cabildo) de Buenos Aires para que exigisse ao vice-rei, já sem apoio militar, a convocação de Cabildo Abierto, reunido em 22 de maio, com a presença de 241 dos 450 vizinhos da aglomeração convocados para a deliberação. O congresso reuniu as principais personalidades e proprietários da região − comerciantes, criadores, eclesiásticos, militares, profissionais liberais, funcionários civis etc. Estavam ausentes os delegados da campanha e das províncias do interior e do litoral, onde o partido espanhol detinha ainda o poder. 

 

Mais tarde, ao explicar a sublevação ao soberano, Cisneros afirmou que o controle do ingresso ao cabildo por centenas de patriotas armados determinara uma grande ocorrência de bodegueiros, artesãos, de vizinhos de origens plebéias e, portanto, na visão aristocrática e autocrática espanhola, incapazes de deliberar questões de tamanha transcendência. Anteriormente, em 1806 e 1807, a oligarquia crioula portenha e bonaerense conquistara confiança em suas forças ao participar ativamente da resistência à invasão inglesa de Buenos Aires. O próprio vice-rei refugiara-se no interior quando dos combates, sendo afastado a seguir do posto, em favor de Cisneros. Quando desses confrontos, constituiu-se o "Regimento de Patrícios", formado por patriotas crioulos.

 

O fim do regime colonial

 

A primeira votação da assembléia, na madrugada de 23 de maio, depôs Cisneros e entregou o poder ao Cabildo, com a responsabilidade de eleger junta governativa e convocar congresso com os deputados das províncias do vice-reinado. O que fora lançado fora pela porta, retornou pela janela. A junta eleita durante a madrugada formou-se com Baltasar Hidalgo de Cisneros, presidente, assistido por Cornelio Saavedra (crioulo); Juan José Castelli (crioulo); Juan Nepomuceno Solá (espanhol) e José Santos Incháurregui (espanhol). Dominavam, portanto, os realistas, os espanhóis e os espanholistas. Os chefes militares, mesmo crioulos, aceitaram a solução. 

 

O "povo", ou seja, os proprietários crioulos que "esperavam algo mais radical", opôs-se à solução que desrespeitava a essência do decidido no Cabildo Abierto. Malograda sua ordem de reprimir os patriotas reunidos na Praça Maior (Praça de Maio), Cisneros renunciou ao cargo, eclipsando-se com ele o que restava de poder ibérico em Buenos Aires. A nova Junta Provisional era presidida por Cornélio de Saavedra, comandante do Regimento de Patrícios, secundado por Juan José Catelli, Manuel Belgrano, Miguel de Azcuénaga, Manuel Alberti, Domingos Mateus, Juan de Larrea, Juan José Passo e Mariano Moreno. Todos crioulos, com forte representação dos comerciantes. Com a incorporação de deputados provinciais, a "Primeira Junta" recebeu a designação de "Junta Grande". Antes da Revolução de Maio, ocorreram outros movimentos autonomistas, duramente reprimidos.

 

A Junta desconheceu a autoridade do Conselho de Regência de Espanha e das Índias e reconheceu formalmente a autoridade do rei Fernando 7º, preso, como recomendado por representantes ingleses, devido à guerra européia. A independência das províncias do Prata seria proclamada apenas no Congresso de Tucumán, em 9 de julho de 1816.

 

Inicialmente, a Revolução de Maio foi democrática, no seu formalismo jurídico. Em 28 de maio de 1810, os revolucionários oficiavam: "El pueblo de Buenos Aires no pretende usurpar los derechos de los demás del Virreinato, pretende sí, sostenerlos contra los usurpadores" (RIVERA: 2007, 25). A declaração procurava esconjurar os mais do que motivados temores dos crioulos e das classes proprietárias das demais províncias sobre as intenções dos novos senhores de Buenos Aires.

 

Novos tempos

 

À exceção de Córdoba, de Montevidéu, de Assunção e do Alto Peru (Bolívia), os cabildos e classes proprietárias das províncias do vice-reinado do Prata reconheceram a Junta de Maio, em Buenos Aires, que decretou a convocação militar dos patriotas pobres e ricos. As famílias patrícias substituíram comumente os filhos por cativos, como permitia a legislação. Milhares de afro-descendentes morreriam lutando pela independência de terra que jamais fora sua, ensejando forte decréscimo da população negra rio-platense. A escravidão desempenhava papel subordinado nas províncias ocidentais do Prata. Com as sucessivas convocações de cativos às armas, ela sofreria duras estocadas. Porém, a instituição seria abolida na Argentina apenas em 1854, e no Uruguai, em 1841. Neste último país, a instituição manter-se-ia, em forma aberta e disfarçada, por longas décadas, especialmente nas estâncias de criadores rio-grandenses ao norte do rio Negro.

 

Sobretudo a partir de dezembro de 1811, emergiram os reais objetivos do novo governo, através de movimento unitarista em prol do controle do poder político, e, através dele, econômico, pelos comerciantes portenhos e, secundariamente, pelos grandes estancieiros bonaerenses. No frigir dos ovos, propunha-se mudar o velho tacão colonial espanhol pela nova ditadura liberal portenha, já como representante dos interesses mercantis ingleses na região. O esforço centralista das oligarquias portenhas determinaria fortemente a história platina nas décadas seguintes.

 

 

 

As rendas alfandegárias nascidas do export-import de todas as províncias passaram a ser usufruídas apenas pelas oligarquias comercial e pastoril do porto e da província de Buenos Aires. Uma situação que acirrou as contradições entre a capital e as províncias do interior e do litoral, unidas na luta pelo federalismo, pela proteção da produção artesanal e pequeno-manufatureira e pela nacionalização das rendas portuárias. O exclusivismo comercial de Buenos Aires levaria ao fracionamento do ex-vice-reinado, com destaque para as províncias Oriental – e seu importante porto de Montevidéu – e do Paraguai, enclausurada nas terras do interior do continente. Por sua própria situação geográfica, o Alto Peru (Bolívia) ficou à margem do esforço centralizador portenho.

 

 4. José Artigas - Independência e Revolução no Prata

 

A ocupação da Península Ibéria por Napoleão, a renúncia e prisão de Fernando 7º e a entronização de José Bonaparte I como rei de Espanha deram derradeiro golpe no Estado colonial espanhol, ensejando a Revolução de Maio de 1810 em Buenos Aires, sob a liderança dos grandes comerciantes crioulos portenhos principalmente. A Banda Oriental, província do vice-reinado, com capital no porto de Montevidéu, não seguiu o movimento autonomista de Buenos Aires. O porto de Montevidéu encontrava-se mais próximo ao mar, era mais acessível aos navios e possuía maior profundidade. Em agosto de 1776, foi designado como sede da esquadra espanhola para o rio da Prata e o sul do Atlântico, privilégio que fortaleceu o porto oriental em sua disputa com Buenos Aires.

 

Dominado por funcionários, comerciantes e militares espanhóis, o cabildo de Montevidéu manteve-se fiel ao governo de Cádiz, último foco do poder espanhol na Andaluzia. Montevidéu transformava-se no centro da ação do partido metropolitano espanhol no Prata. Em 12 de fevereiro de 1811, o agora vice-rei Francisco Javier de Elío (1767-1822) declarou guerra à Junta de Buenos Aires. Por sua vez, a corte portuguesa, instalada no Rio de Janeiro desde 1808, propôs aos senhores de Montevidéu a proteção lusitana da Banda Oriental, pois Carlota Joaquina de Bourbon (1755-1830) era princesa de Espanha, filha primogênita de Carlos 4º e irmã de Fernando 7º, o soberano-prisioneiro.

 

Entretanto, as medidas tomadas e as taxas e impostos determinados pelo vice-rei Francisco de Elío, em Montevidéu, para financiar a guerra contra Buenos Aires, desagradaram setores médios orientais – empregados, artesãos, comerciantes, proprietários de barcos etc. No interior, os patriotas crioulos organizaram-se para lutar pela independência da Banda Oriental, federada às demais províncias do ex-vice-reinado, sob a direção de Buenos Aires. A oposição cidade-interior expressava as contradições entre os grandes comerciantes espanhóis e crioulos da cidade-porto, com a campanha, onde possuíam imensos latifúndios, não raro ocupados precariamente por pequenos e médios posseiros. Havia poucos anos, os terratenientes tinham se oposto à fracassada iniciativa reformista da administração ibérica de distribuir propriedades de uns dois mil hectares na fronteira entre gaúchos, mestiços, nativos e libertos, a fim de interromper a expansão dos criadores luso-brasileiros – o chamado "arreglo de los campos".

 

Grito de Asencio

 

Em 27 de fevereiro de 1811, nas margens do arroio Asencio, no atual departamento de Soriano, sob a direção de Pedro José Viera e Venancio Benavides, um punhado de orientais comprometeu-se a combater as forças espanholas. Para tal, solicitou o apoio de Buenos Aires e iniciou a ocupação das vilas de Mercedes, Soriano, Rosário, San Carlos, Maldonado, Sacramento, entre outras. Não havia dúvidas em que direção pendia a vontade da população oriental da campanha. 

 

José Gervasio Artigas (1764-1850) aderiu à revolta pela autonomia, tornando-se o líder máximo da sublevação na Banda Oriental, sua terra natal. A seguir, derrotou os realistas em 18 de maio de 1811, no importante combate de las Piedras, em que se enfrentaram uns 2500 combatentes. Durante a batalha, parte das tropas do partido espanhol desertou e engrossou as filas dos patriotas. A seguir, Artigas sitiou Montevidéu, poderosamente defendida e amuralhada, agora o derradeiro reduto realista e espanholista na Banda Oriental.

 

Ao sentir a derrota próxima, o vice-rei Francisco Élio aceitou a oferta envenenada da coroa lusitana. Em 21 de julho de 1911, o chamado Exército de Pacificação da Banda Oriental, com quatro mil soldados, cavalaria e artilharia, ingressou na Banda Oriental e ocupou Melo, a fortaleza de Santa Teresa, Rocha e Maldonado, enquanto a armada espanhola, sediada em Montevidéu, bloqueava o porto de Buenos Aires desde 3 de setembro de 1810. Preocupada com seus negócios e com regiões tidas como mais importantes, o primeiro governo das Províncias Unidas, sob a hegemonia dos comerciantes portenhos, não pensou duas vezes. Negociou armistício, sancionado em 20 de outubro de 1811, que entregava sobretudo a Banda Oriental em troca do fim do bloqueio do porto de Buenos Aires.

 

La Derrota

 

Apesar de indignado com a traição das populações e dos interesses da província oriental, José Artigas obedeceu à ordem da Junta de Buenos Aires de abandono da Banda Oriental pelas tropas patriotas. Para tal, levantou o cerco de Montevidéu e iniciou retirada em direção ao norte. Desde o início, o movimento foi acompanhado por civis, entre eles alguns proprietários, com seus cativos, mas sobretudo por orientais pobres, com mulheres e filhos, que se negavam a voltar a viver sob a autoridade espanhola ou portuguesa.

 

A retirada massificou-se, formando coluna de talvez dez mil e mais migrantes, de carretas, cavaleiros e homens, mulheres e crianças a pé. A longa expedição, em direção de Salto Chico, nas proximidades da atual cidade de Concordia, em Entre Rios, deixou o interior da Banda Oriental semi-despovoado. O movimento foi conhecido como "la redota", corruptela de "la derrota", ou seja, "a derrota". Em forma mais erudita, a historiografia uruguaia denominou-o de "Êxodo do Povo Oriental". Ele é tido como momento fundacional da consciência nacional uruguaia.

 

Em 26 de fevereiro de 1813, Artigas retomou o cerco de Montevidéu. Muito logo, a autonomia em relação à Junta de Buenos Aires transformou-se em defecção. No acampamento militar artiguista foram eleitos os deputados orientais enviados à Assembléia Geral Constituinte de 1813, convocada por Buenos Aires. Artigas orientou-os a defender os direitos e a igualdade da Banda Oriental e de todas as províncias na federação em relação a Buenos Aires. Deviam reafirmar, igualmente, os limites territoriais da província oriental diante dos lusitanos.

 

No acampamento militar consolidava-se a consciência nacional oriental e a proposta de federação democrática das províncias do ex-vice-reinado do Prata. Sob a direção de Artigas, esse programa alçaria a luta pela independência a sua mais elevada expressão política e social na América hispânica. Ele integraria à proposta de autonomia democrática o programa de democratização da posse da terra, com a distribuição de pequenas estâncias entre os gaúchos, índios e negros, crioulos pobres que lutavam pela independência. Esse projeto ameaçava incendiar o Prata. Ele foi liquidado pelo esforço conjunto da coroa lusitana, do governo de Buenos Aires e da oligarquia de Montevidéu, após cruenta guerra contra-revolucionária, na qual pereceu boa parte da população oriental.

 

Leia mais:

A Revolução de Maio de 1810 (1)

 

Mário Maestri é historiador e professor do programa de Pós-Graduação em História da UPF.

E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

 

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