Correio da Cidadania

Crítica social e previsão em Marx

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Hegel havia ensinado a seus alunos ver a história do mundo como um processo dialético, ditado e dirigido pelo espírito absoluto ou pela razão implícita dos acontecimentos. Esses se sucederiam segundo uma férrea lógica: tudo o que é fenece em decorrência de sua contradição interna; tudo o que é sobrevive na síntese superior em que tese e antítese se unem.

 

É de se perguntar se os últimos resultados da história, as formas mais desenvoltas da sociedade e do pensamento também obedecem a tais leis. Será possível aplicar o método dialético, evidenciar a tensão entre elementos contrários e apresentar previsões quanto a sínteses superiores, que se concretizarão em seu devido tempo?

 

Pensamentos desse tipo não são considerados pela Filosofia da História de Hegel. Segue o desenrolar dos séculos e mostra como a necessidade interna desemboca num estágio final no qual as contraditórias tendências passam a coincidir. Mostra que o passado sobrevive no presente, e que este não é produto do acaso e sim o resultado mais apurado de um processo. Caso contrário a postura conservadora do velho Hegel não se coadunaria com a realidade manifesta. Na ordem dada ele percebe um sistema de valores, que não pode ser espoliado por nenhum projeto de futuro de qualquer salvador do mundo. Encontra a passagem de Deus pelo mundo nos símbolos do Cristianismo protestante, expressando explicitamente as verdades mais profundas do cristão estado germânico ou de uma monarquia constitucional na qual todos são tidos como livres.

 

A esquerda hegeliana considerava questões não percebidas ou não reconhecidas por seu grande mestre em Berlim. Defendia poder dirigir a dialética para formas culturais e sociais existentes. Piedade mal direcionada não impediria o pensador de desnudar suas latentes contradições. Seu dever não seria o de justificar o existente e sim o de esclarecê-lo como um estágio transitório a caminho de modos superiores de vida. O manifesto seria absorvido pelo processo como uma das partes de seu encadeamento.

 

Cada ponto final de uma série era visto como o início de outra. Aquilo que foi objeto de um enfoque dialético é superado ao nível do pensamento. Segundo os hegelianos não somos dominados pelo objeto, reconhecemo-nos homens livres para provar a realidade. Um hegeliano de esquerda defende que só o racional é verdadeiramente real; a situação considerada sendo em muito irracional seria, portanto, irreal. Defendem a dialética como um instrumento de emancipação espiritual.

 

Bruno Bauer, o líder dos jovens hegelianos, enaltecia o espírito crítico com um entusiasmo quase religioso. Para esse crédulo ateu o enfoque hegeliano apresentava-se como uma salvadora deidade, uma força superiora liberando as almas do domínio da fé autoritária e descortinando ilimitadas perspectivas de futuro. A crítica passaria assim a ser desenvolvida num plano teológico. Ao perderem sua auréola os sagrados credos mostraram-se incapazes de deter o livre desenvolvimento do espírito. As questões políticas fizeram-se atuais. As antigas formações sociais deveriam ser superadas da mesma forma que as antigas crenças, com descompromissada crítica, forjada no melhor espírito da filosofia dialética.

 

Marx manteve traços essenciais do enfoque dos jovens hegelianos. Viu a tradição nostálgica como uma força adversa e considerava a filosofia carente de um crítico acerto de contas com os seus fundamentos. Não hesitou em afirmar ser a religião o ópio do povo. Mas ao contrário da fé de Bruno Bauer na capacidade do puro pensamento em se libertar e se recriar, Marx afirma que a idéia não passa de gafe quando não vem ligada a algum interesse. Obedece à seguinte construção:

 

A crítica é uma atividade social; pressupõe um público receptivo à sua argumentação. Noutro caso não passaria de uma arenga no vazio, sem sentido. Em que circunstâncias poderá se dirigir a alguém que dê atenção e se impressione? Só com o interesse dos ouvintes voltando-se em favor do crítico; senão reagiriam contrariamente ou restariam indiferentes, como se a questão não lhes dissesse respeito. O auditório ou o círculo de leitores precisa entender que as instituições e as ideologias atravancam o caminho de suas exigências de uma vida melhor. Então e só então levará em conta uma crítica capaz de evidenciar com motivos incontestáveis a falta de conteúdo da comunicação.

 

Do ponto de vista do observador externo, visto objetivamente, essas pessoas estão destituídas de qualquer interesse em manter uma situação estabelecida. Não têm nenhuma participação nas vantagens que possa oferecer. Querem-na melhor. Podem, no entanto, aceitar sua situação como uma necessidade inevitável alegando que o mundo sempre foi assim, e assim sempre será. Talvez desde a mais tenra idade tenham recebido imagens de tradições, justificando a ordem estabelecida, e condenam toda resistência a grupos sociais dominantes. Talvez sintam de forma pouco clara que essas ideologias sejam contrárias a seus anseios de uma existência mais digna. Diz-se de tais desejos que são presunçosos e infrutíferos: temos que ser submissos contentando-nos com a situação que um poder superior nos proporcionou.

 

A crítica social de Marx procura tornar os grupos desfavorecidos conscientes de seus interesses objetivos. Com argumentos cientificamente imbricados evidencia as realidades sociais não observadas ou mascaradas por falsas idealizações. Explica a situação social reinante como um estágio e um desenvolvimento ainda em curso; arrancando assim as bases do fatalismo que leva à passividade social. Finalmente mostra que as imagens endoutrinadas são ideologias estranhas cuja função é manter os interesses da classe dominante. A força demolidora do corpo teórico deixado por Marx abre campo para a renovação social, tarefa do proletariado consciente.

 

Em Marx a crítica não é uma condição suficiente para a emancipação. Nada pode realizar se não apelar para latentes interesses tornando-os claramente conscientes. É para ela uma condição necessária; sem sua contribuição a grande obra de reconstrução social não é realizável. Para Marx o pensamento crítico tem ainda uma outra função: provar as idéias que se evidenciam no mundo do trabalho e eliminar os elementos sem fundamento real. Sobrevivências de antigas formas de pensar têm que ser rastreadas e neutralizadas; entre elas está a aversão à sociedade industrial e o reacionário sonho de retorno a uma sociedade de pequenos produtores e artesãos. Insustentáveis utopias sociais têm que ter seus intentos desmascarados. Assim como todo obscuro e mal pensado revolucionarismo romântico. A emancipação dos trabalhadores tem que ser obra deles mesmos, reza o Manifesto Comunista. Marx observa com toda energia que os trabalhadores precisam ser formados para uma compreensão da realidade livre de ilusões, para que sua luta não resulte em decepções e fracasso. Via como uma prazerosa obrigação exercer o papel de educador.

 

Bakunin e outros adversários acusaram Marx de ilimitada sede de poder aborrecendo-se com seus modos autoritários. Certamente sem motivo. Ele era altamente intolerante em relação a opiniões divergentes quanto ao socialismo. Sabia, no entanto, sempre motivar seus atos com a necessidade de se resguardar de falsos educadores, condutores das massas ao engano. Entre esses se encontrava Proudhon, com suas arengas sobre a justiça eterna; Bakunin, com sua retumbante retórica, ocultando confusão e pobreza intelectual; e Lasalle, uma figura suspeita, que secretamente conspirava com Bismarck, imperador da Prússia, e induzia os trabalhadores a acreditar no Estado como instituição protetora.

 

Convém lembrar ainda que o primeiro programa dos social-democratas alemães, o programa de Gotha, não obteve o apoio de Marx; discutíveis heresias haviam se infiltrado no mesmo. Marx via o caminho claro baseando-se no inabalável alicerce da ciência*.

 

* Não confundir com o sentido corriqueiro de ciência limitado às chamadas ciências exatas.

 

Frank Svensson, professor titular aposentado da Universidade de Brasília, é membro do CC do PCB.

 

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