Correio da Cidadania

Resenha: Madame Satã

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Praça da Sé, 7 horas da noite da sexta-feira do feriado do corpo de Cristo. Às portas do clássico prédio da Caixa Cultural, entre as ruas Direita, Venceslau Brás e o Largo do Pátio do Colégio, uma roda de samba de bem trajados bambas e cabrochas anima os passantes.

Largados por entre o frenesi dos trabalhadores, malandros, pregadores do evangelho e policiais militares, os mais esquecidos habitantes da metrópole se levantam de seus cobertores, se achegam, são aceitos e logo entram na euforia de um convívio já de longínqua memória.

Emperiquitadas e faceiras, elas vêm e vão em suas vestes como jamais se vê por aquelas temidas esquinas do centro da capital, o que imediatamente acende os radares desses trôpegos viventes.

Vai uma música, duas, três, um que estava de bengala logo abandona o acessório, bebe da cerveja disposta na mureta do poste de luz, pergunta dos meandros da conquista com uma daquelas improváveis damas, no que é seguido por outro parceiro de desventuras.

Acalmados pelos músicos, contentam-se em curtir a rara noite de festa. A roda continua, o público não tira os olhos e só aumenta com os minutos, não há mais ingressos para a sequência do espetáculo, já dentro do prédio e seu auditório.

Os dois senhores de meia idade se engalfinham diante de todos e no enrosco capotam juntos; ouve-se o estrondo de um crânio contra a mureta ajardinada que divisa a calçada da rua, todos se assustam, alguns riem. Enquanto tocam-se as últimas notas na calçada, passa uma moto em ronco furioso, para diante da travesti que esbanja seu samba no pé e lhe passa a faca na barriga, antes de sair em fuga. Silêncio, seguido de aproximação dos curiosos mais destemidos. Todos para dentro do teatro.

Metade dos atos aqui descritos foi encenada, outra metade protagonizada a quente, por “artistas” em tempo real.

Já dentro do auditório, o elenco se apresenta com uma melancólica canção entoada pelo característico mulherio das cidades baixas que esse Brasil tanto conhece.

É Madame Satã em peça, interpretação da célebre drag queen João Francisco dos Santos, protagonizada pelo Grupo dos Dez, vindo de Belo Horizonte e que se encontrou em breve temporada em São Paulo, com ingressos sempre esgotados e sucesso de crítica.

A boemia, loucura e marginalidade de um dos primeiros transexuais a fazer história no Brasil são os principais capítulos do drama. A prostituição, a malandragem na Lapa carioca, a prisão depois de assassinar um policial, a volta ao asfalto, tudo foi dividido em atos muito bem encadeados.

Inteiramente composto por negros, o grupo faz uma sensível reprodução da história que já foi traduzida em ao menos dois importantes filmes do cinema brasileiro (Rainha Diaba, 1974; Madame Satã, 2002) e um desfile da Portela, em 2015.

Isso pra não falar da célebre balada da rua Conselheiro Ramalho, um dos maiores marcos da contracultura dos anos 80, escape de todos os tipos de inadaptados sociais.

E nesses dias onde mais uma Parada Gay levou milhões às ruas, filmes como Meu Amigo Claudia mostram como, apesar de tudo, evoluímos em nossa relação com a homossexualidade.

Na película em questão, conta-se a história da travesti Claudia Wonder, que fez muito sucesso na noite paulistana da década que viu o fim da ditadura e a eclosão incontrolável de diversas expressões culturais proscritas pelos militares.

E o sucesso da travesti, que dá ótimas entrevistas filmadas em tempos atuais, se deu justamente na casa noturna que homenageia João Francisco dos Santos.

Entrevistas de outras drags que viveram a época, além de nomes mais conhecidos do mundo artístico, como Zé Celso Martinez e Glauco Mattoso, dão conta da cápsula de insanidade que a casa significou para toda uma geração, ainda imprevidente das sequelas de tanta liberdade.

Já sem o brilho de afiadas navalhas ou a ameaça das doenças infectocontagiosas, a casa até foi reaberta em 2016, com todas as características contemporâneas e sua nova estirpe, por mais que palavras como underground continuem nas placas e neons.

Voltando à peça, dirigida por João das Neves e produção paulistana de Telma Dias, alegrias e melancolias intercalam o espetáculo, traduzindo perfeitamente os soturnos ambientes subterrâneos daqueles que sempre foram considerados párias sociais.

Subversiva por natureza, Madame Satã representa o drama social tão intensamente retratado mundo afora, da vida mambembe das zonas portuárias e sua vida por fora dos ditames da sociedade das pessoas de bem, como já descreveram magistralmente inúmeras obras, desde O Cortiço de Aloísio de Azevedo ao Capitães da Areia de Jorge Amado, dentre outras incontáveis crônicas.

Aplaudido de pé por cinco minutos, o elenco composto por Juhlia Santos, Bia Nogueira, Alcione Oliveira, Denilson Tourinho, Evandro Nunes, Juliene Lellis, Gabriel Coupe, Carla Gomes, Kátia Aracelle, Nath Rodrigues, Rodrigo Ferrari, Thiago Amador, Junim Ribeiro e Sam Luca (que faz a Drag Queen Azzula), sob arranjos musicais de Alysson Salvador e direção de Rodrigo Jerônimo e João das Neves, se apresentou em São Paulo entre os dias 8 e 18 de junho.

Diante da aceitação do público, aguarda-se a próxima temporada.

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