Correio da Cidadania

Resenha: Complexo Fabril

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O trabalho duro na indústria têxtil, os péssimos salários, a insalubridade, a exaustão, a desilusão, o assédio moral, as leis, a justiça e a polícia a serviço do patrão.

Num primeiro momento, o leitor deve pensar nos bolivianos escravizados pelas empresas terceirizadas que fornecem roupas para as Marisas e Zaras. Mas é a Coreia do Sul, pujante como um tigre, cujo padrão de desenvolvimento econômico foi saudado em 10 de cada 10 reportagens da mídia que ora luta pra manter as reformas do governo Temer em pauta.

Se no Bom Retiro e adjacências o sofrido povo oriental tem sua imagem associada ao trato desumano de migrantes ilegais e miseráveis, o filme de Im Heung-Soon, em cartaz na 6ª Mostra Ecofalante de Cinema Ambiental, traz uma Coreia do Sul desconhecida, cujos níveis de exploração do trabalho explicam bem sua força econômica e impulso tecnológico associado ao “ocidente democrático”.

Ao retratar somente a saga das mulheres operárias, cujos modos trazem aquela intrigante delicadeza oriental, quase monástica, o filme tem um apelo ainda maior para aqueles que ainda se permitem comover com os lances reais da luta de classes.

Dividido em eixos temáticos, a Mostra, que vai de 1 a 14 de junho em São Paulo, com todas as exibições gratuitas, traz neste ano abordagens do meio ambiente (com especial destaque para a Amazônia), consumismo, América Latina e mundo do trabalho, complementados por uma competição de curtas-metragens universitários.

Em tempos de polaridades políticas a cada minuto mais esvaziadas ideologicamente, a mostra de cinema é obrigatória para aqueles que se preocupam em entender o que realmente se passa neste mundo neoliberal que completa uma década de crise. E que não oferece sinais de saída, por mais que se fabriquem notícias pouco respaldadas em elementos concretos, a anunciar “tímidas recuperações econômicas”.

“Nas últimas décadas do século passado floresceram muitos mitos acerca do trabalho. Com o avanço das tecnologias da informação e comunicação não foram poucos os que passaram a acreditar na era de felicidade que se iniciava: trabalho online, digital, a era informacional, enfim, adentrávamos finalmente o reino da felicidade. O capital global só precisava de um novo maquinário, agora descoberto”, escreveu Ricardo Antunes, talvez o maior intérprete brasileiro do mundo do trabalho, em texto publicado no livro-guia da mostra.

Ao lado dos demais filmes que compõem o time de películas que retratam a dura faina da classe que produz os bens e as riquezas, a Mostra Ecofalante faz o enorme serviço de nos permitir uma atualização da crítica ao capitalismo e seus graus de exploração, algo que parece fora de moda até mesmo entre setores que se proclamam de esquerda.

O punhado de filmes serve ainda para ajudar a reacender a velha chama da solidariedade internacional entre os trabalhadores e trabalhadoras, cujas lutas continuam semelhantes e necessariamente globais.

Serve ainda para sairmos da prostração histórica que ainda impede os supostos defensores do mundo do trabalho, sindicalismo incluído, de fazerem a crítica honesta e coerente da realidade.

Isso porque o momento é profícuo para tais análises, por todos os quadrantes do planeta, o que inclui o Brasil dos anos Lula e seu governo tido como “trabalhista”.

Afinal, o cinema nacional também começa a contar com registros históricos deste desenvolvimentismo onde todos ganhariam, como no brilhante documentário “Jaci – 7 pecados de uma usina amazônica”. Produzido pela equipe do Repórter Brasil, retrata toda a barbárie que garantiu a construção das usinas no Rio Madeira, marcada por uma até hoje desconsiderada revolta dos operários do complexo hidrelétrico, que por sua vez já colapsou boa parte de Porto Velho.

Voltando ao longa do diretor Im Heung-Soon, os relatos das costureiras de grifes mundialmente admiradas lembra perfeitamente aquilo que referimos no início em relação aos imigrantes sul-americanos. Jornadas intermináveis, salários baixos, assédio patronal e cerceamento das liberdades políticas e sindicais são o pão de cada dia.

Mais que isso, o caráter insalubre e praticamente assassino se estende até mesmo à indústria de alta tecnologia, o que chega a escapar até das análises mais rigorosas.

“Todas as pessoas de gerações anteriores da minha família me cumprimentaram com entusiasmo quando fui contratada pela Samsung. Para os coreanos mais velhos, ir para uma empresa deste perfil era a grande conquista, o emprego dos sonhos”, relatou uma das tantas operárias entrevistadas.

“No entanto, nunca imaginamos o inferno que é lá dentro”, completou, enquanto tomávamos conhecimento do “incidente leucêmico”, como ficou conhecida a epidemia cancerígena que matou 70 trabalhadores da multinacional. O motivo foi a contaminação de um tipo de álcool usado para limpar fios de máquinas que produzem chips de memória.

Depois, vieram as comissárias de voo de diversas companhias, a relatar o desencanto com a profissão, vista por muitos com glamour. “No ar o seu desgaste físico é quatro vezes maior que no solo. E eu ficava 12 horas de pé em voos internacionais de grande distância”, revelava uma trabalhadora. “Obrigam a gente a ajoelhar antes de falar com o passageiro, uma forma de nos humilhar que me deixa muito mal”, completou, acrescentando outros detalhamentos do machismo mais repugnante, tanto de clientes como de chefetes, outra chaga universal.

Os relatos devastadores são inúmeros, o filme tem pouco mais de 1h:30m de depoimentos sempre brutais. Nas cenas de rua, outro prato conhecido por essas bandas: cerceamento jurídico-policial do direito de greve, prisões absurdas, tratamento ignominioso da casta política e, claro, muito “vandalismo” e “trânsito prejudicado” nas imagens da televisão.

Por fim, vale destacar que o festejado tigre asiático também convive com alguns fatores familiares em nosso continente. A promiscuidade público-privada acabou de causar o impeachment da primeira mulher a presidir o país, que tenta recomeçar sob Moon Jae-In, eleito há menos de um mês.

Protestos e greves são frequentes nesse “Chile asiático” – isto é, por fora bela viola de narrativas liberais, por dentro pão bolorento, a exaurir, mutilar e empobrecer sua população, sem esquecer os passivos ambientais.

Enquanto procrastinamos a criação de um novo momento político, cabalmente identificado com outro projeto socioeconômico, a Mostra de Cinema Ecofalante é um ótimo remédio para esses tempos de debates cada vez mais empobrecidos e mesmo falaciosos.

O embate Capital x Trabalho continua como o grande motor da história, anos luz à frente das despolitizadas e imbecilizadas oposições entre “esquerda e direita”, pautadas por setores que não vão além de se oferecerem como solução para um mesmo sistema de espoliação da natureza e do ser humano.



 

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Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.

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