Correio da Cidadania

O cinema suado

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Nós realizadores brasileiros produzimos e lançamos anualmente em torno de 100 obras de longa-metragem, número que pode dobrar até 2020. Assim o país deve atingir o recorde de 3,6 mil salas comerciais em funcionamento nas capitais e regiões onde existia pouco ou nenhum circuito. O número de produtoras, de todos os portes, se expande em milhares e os meios de fomento e patrocínio se multiplicam alcançando um grau de otimismo e tenacidade que se aproximam a um inédito mercado brasileiro de cinema que coloca nossa contemporaneidade como a mais profícua e generosa época cinematográfica nacional.

 

Produzimos um leque de filmes plural e descentralizado, graças a políticas públicas acertadas e uma natural procura de outros estados além do abalizado eixo Rio-SP, hegemônico e histórico produtor de cultura e entretenimento, que sempre doutrinou a imagem nacional com o chamado Brazilian Soul de visões limítrofes ao que realmente somos como nação miscigenada pelo caos. Não tenho receio em afirmar que produzimos o melhor cinema brasileiro dos últimos 100 anos, partindo da expansão dos exibidores paulistanos e cariocas após a estruturação do fornecimento de energia elétrica na primeira década do século XX até a excepcional safra oriunda de autores do século XXI. Um cinema que ainda copia muito, que importa o imponderável, mas que também nos representa como civilização imperfeita e legítima. E no meio disso, nem 1/5 dos lançamentos é nosso, num mercado onde a média de ocupação das salas chora em 20% e um único filme americano chega a ocupar 50% da praça obstruindo toda uma gama de possibilidades internas.

 

Nota-se um desequilíbrio e um contraste inquietante e que nos exige com certa urgência a autocrítica, além de uma cara de pau solene, que é noção clara de que o eixo Rio-SP vem produzindo, em proporção, filmes menos relevantes e menos empolgantes, com boas exceções, lógico. É notável que estados como Pernambuco e Ceará, para ficar só no Nordeste, andam produzindo suas fitas numa escassez de recursos ainda dispare ao eixo, mas estão a frente na relação da perceptibilidade orgânica que pode ainda ser um poder cinematográfico de transformação social e humana. Nesta disparidade está sobretudo São Paulo, décima cidade mais rica do mundo, onde a SPCine e sobretudo o Circuito SP Cine são acontecimentos de enorme festa, onde a publicidade gera empregos de primeira linha e onde muito se depende do estado para produzir.

 

A Lei do Audiovisual, a ANCINE e o FSA, junto a todo o programa Brasil de Todas as Telas, são uma vitória histórica a ser comemorada sobretudo pela geração crescida durante a Retomada do Cinema Brasileiro, ao qual pertenço, e que conhece, assiste, ouve e lê, a todo instante, as intempéries e desafios que cineastas deste período enfrentaram para seguir em frente com a construção de uma filmografia nacional. Assim como temos toda a possibilidade do conhecimento para encontrarmos nossa origem narrativa, ideológica, estética e de linguagem, passando por momentos ricos e dissemelhantes como o cinema de Humberto Mauro, o Cinema Novo, o Cinema de Invenção, a Boca do Lixo, a era de ouro da Embrafilme e a brilhante safra do atual Cinema Pernambucano.

 

Não podemos cegar-nos, no entanto, e sequer fingirmos certa saúde inexistente em relação a distribuição em tela grande de nossas obras, pois ela é praticamente inexistente numa plenitude de êxito, para não dizer esquizofrênica e pueril. Possuímos uma lei protecionista de grade, além de avanços progressistas em relação ao consumo público do que produzimos, mas tudo na base da marra, da constituição tardia, da quase guerrilha de resistência, dos poucos agregadores, pois se a realização dependesse dos grandes grupos exibidores, tal qual as grandes distribuidoras e as majors que dominam os mercados por assinatura, ainda desinteressadas de forma orgânica pelo potencial óbvio do brasileiro que almeja se ver e ouvir a própria língua em todas as esferas audiovisuais. O entendimento de nossa raiz produtiva ser precária num maior período de espaço no tempo se dá muito pela barreira física do não ter onde exibir – ou seja, do ter quem queira ver, mas não ter onde exibir, lógica fresca alcançada pela televisão por assinatura na base do fórceps constitucional.

 

São inquestionáveis os efeitos da revolução tecnológica e da globalização, assim como é fatídico o avanço econômico-social do brasileiro em relação ao século vinte ultrapassado, de modo que a digitalização da pré-produção até a exibição de um projeto poderia se fazer de maneira ágil e sistêmica numa abertura para demais classes sociais além da classe média alta e aristocrática, onde um filme encontraria certamente um meio facilitado de provocar seu próprio público, sedento e que ainda recebe congelado e enlatado um cinema obrigatoriamente estrangeiro ou que o imita. Trata-se da classe média vulnerável, a classe média da linha cardíaca financeira, metade da nação, quem realmente trabalha e que não tem certeza de nada, mas acha muita coisa e quer se ver em todas as telas possíveis, sem demora. E mesmo existindo inegáveis avanços, novos editais focados num nicho de realizadores malparados a suas primeiras tentativas cinematográficas, ainda é tudo programado num aspecto de experimentação, de não garantia como política de prioridade antipartidária, sendo claro que nada ainda é garantido e provavelmente nunca será.

 

O que se nota é o contrário de uma abertura legítima, são cada vez mais filmes preciosos ao nosso espelho revolucionário de espectador que mendigam alguns milhares de conhecidos e entusiastas ínfimos, quando não centenas, dezenas, quando não apenas o indivíduo, levando até uma década ou mais para serem viabilizados, desde a concepção da ideia até a provável carreira comercial fracassada. Porque a sorte dos festivais é algo tão ignóbil quanto a sorte do mercado. Os festivais de cinema em sua maioria são extensões construtivistas de elites, cruciais, mas incapazes de uma popularização endêmica e por mais que externem certas influências, continuam sendo espelhos dos bairros brancos de classe média alta e de esquerda. Ou seja, uma beleza para poucos, um picolé que derrete com fragilidade gigantesca. Um filme sem o logo da ANCINE, que deveria ser o verdadeiro filme independente, acaba encarando uma vida marginal, ridicularizada, literalmente pedindo favores para qualquer norte de sobrevivência.

 

Vejo também produtores e diretores apáticos a estas odisseias de gaveta, a estes chás de cadeira homéricos de ócios miseráveis que se resumem a constantes produções custeadas inequivocamente com milhões de reais pelo estado dourado. Vejo criadores ilustres, prontos para o ato fílmico, se privando da criação total. Estes milhões de reais são dignos a uma geração de empregos necessária, mas não de préstimo único, sendo caro demais aos donos do filme como concepção pagar o preço plutocrático de espera ao lugar ao sol que não chega, não vem na juventude dos vinte e poucos, dos trinta e poucos, do fogo endiabrado do grito e muitas vezes o sujeito ou a sujeita só começam quando o que importa já terminou. É preciso entender que nunca se teve tanto dinheiro público a disposição, mas também nunca se teve tanta gente produzindo e a quantidade é realmente para ser espremida em dezenas para um. Desafio qualquer diretor ou produtor a gritar de peito cheio que teve liberdade total para fazer seu filme nos moldes de financiamento atuais. Isso não existe, é uma anomalia imaginativa. Seja navegando na história pela religião, pela guerra, pelo liberalismo do capital ou pelo subsídio do estado, sempre topamos com regimentos que no frio da barriga do querer broxam qualquer ser vivo criador.

 

Convivemos naturalmente com a ideia do desreinado da sala escura como nobreza, como superioridade de efeito democrático e possante. As possibilidades estão nos canais de televisão que transmitem a língua portuguesa como natureza audiovisual e não apenas targeada pelo imbecil. Também temos as locadoras virtuais, de transmissão via streaming ou por download, com mensalidades ou compras diretas, num caminho mais facilitador e menos ruidoso entre realizador e público. Além disso a possibilidade de publicar um cinema urgente no Youtube ou no Vimeo, numa qualidade técnica de som e imagem suficientes ao olhar cada vez mais decisivo das novas gerações, ultrapassando números de espectadores que fogem ao limite de qualquer observatório já arquivado.

 

Nós cineastas brasileiros seremos sempre cineastas de terceiro mundo, para resgatar um termo empoeirado, enquanto aceitarmos a lógica das possibilidades já existentes, aos caminhos estabelecidos por uma relação de dependência enraizada. Porque o mercado de cinema é um território acima de tudo do produtor, de quem sabe fazer negócios, de quem pensa o lucro pois foi assim que sempre rolou. Os produtores viabilizam as grandes produções, as médias, algumas pequenas e poucas independentes, sempre balizando o risco que é justamente o fator necessário e faltante a parte da filmografia do eixo-maravilha, a nós autores urbanos médios, pós-universitários, em sua maioria brancos e homens. Os produtores lutam por uma sanidade financeira que atinge a todos os profissionais da indústria, assim como uma continuidade pragmática, mas que não deve ser encarada como via única ou via ideal de uma era onde o valor da imagem e dos sons são questionáveis e explicitados por uma geração amadora de bilhões de autores de si mesmos e do universo.

 

Acostumou-se, nos editais e pichings afora, o uso obrigatório do cálculo previsível e cruel da divisão de público como se o cinema brasileiro fosse um IBGE, uma capa da revista Exame, da Carta Capital ou da Veja, trazendo amarras ligadas a expressões pulhas como “filmes para a classe C”, “filmes para a classe A”, “cinema de esquerda” e “cinema de direita” e o mais grave de todos que é o “filme de festival”. Esta ideologia mercantil ou de status funciona a curto prazo, no arrebentar da oferta e da procura, na busca imediata pelos números positivos, pelo sucesso envaidecido, mas sabemos admitir na reflexão do terreno baldio que tais formalismos de cadastro vem capando roteiros em busca de uma libertação popular absoluta e que fale a língua das esquinas, não somente no sentido de popularidade numérica, matemática, levando em conta apenas a bilheteria e as vendas de modo que um ou dois anos para se fazer um filme, além de uma distribuição alternativa e próxima sem o vício do ganho imediato, trata-se de um período viável e menos enlouquecedor. O pouco dinheiro é uma solução honesta para o orçamento zero e não um problema de caráter corruptível.

 

Logo, a forma tradicional estabelecida pela ordem do desenvolvimento interminável seguida de um roteiro polido durante uma captação tenebrosa e uma pré-produção apertada que emenda numa filmagem cada vez mais curta e uma finalização de barganhas, afundada por uma propagação torpe e incongruente as particularidades da formação de uma equipe completa e multifacetada. Sindicatos indicam pisos impagáveis ao mesmo tempo que o proletariado audiovisual segue numa alçada de sobrevivência. Se não fosse a publicidade e a televisão São Paulo e Rio de Janeiro voltariam aos anos oitenta e a construção da filmografia nacional do eixo se limitaria a meia dúzia de teimosos. Os prazos tem que ser sempre questionados enquanto alimentos burocráticos, sabendo que poder realizar um longa-metragem em curto prazo e de forma artesanal trata-se de um privilégio a quem pratica o cinema como vida e luta por ele diariamente. Com que dinheiro? Este dinheiro pode advir de patrocínios diretos e imediatos, rendimentos com trabalhos publicitários e corporativos, cujos cachês são mais volumosos e proporcionam a criação de uma própria Lei Rouanet, uma própria Lei do Audiovisual, um próprio Fundo Setorial, agregados a financiamentos coletivos, empréstimos, permutas, cartão de crédito parcelado, cheque especial e em último caso a fome. Não tem muito sentido carreirístico, percebam, não é a chave do problema, mas é uma chance do não morrer quieto, do não adoecer mudo. É necessário um desapego cínico ao dinheiro para se poder ganhá-lo e torrá-lo suando suas cifras, vendendo a janta para pagar as parcelas, mas mantendo o prato feito do almoço porquê sem arroz e feijão não se faz cinema suado.

 

A escolha do tema, da narrativa, da linguagem, dos personagens e das locações pode se fazer de forma coletiva afim de externar na obra também o clima da realização humana e fílmica dos realizadores. Os filmes também tem que buscar um cheiro próprio, agregando a contribuição direta dos personagens e equipes locais que legitimem a vontade de realização conjunta, aprofundada por uma convivência inédita que pode até não se tornar íntima, mas que busque o momento decisivo. E uma grande sobrevivência de feitura é a abertura de ambos os sexos e gerações que demonstrem o entusiasmo que falta a certas camadas da academia. A vida é uma luta diária para não nos tornarmos completos idiotas, portanto encaro como habitual a normalidade social de estadias precárias, comida simples, bebida barata, noites mal dormidas, deslocamentos extensos por terra, água e ar, a ansiedade acumulada, insetos diversos e muito frio ou calor. Samuel Fuller já dizia que o cinema é um campo de batalha e talvez não exista nos eventos humanos modernos nenhuma outra grande ação coletiva que se assemelhe ao imprevisível de uma guerra quanto uma realização cinematográfica.

 

A grande batalha não é, portanto e que fique claro, contra o mercado ou contra os produtores, exibidores, distribuidores e empresas patrocinadoras e muito menos contra o otimismo circundante, a luta é algo ligado a vontade do fazer, do realizar um longa-metragem que não signifique somente um formato nem superior nem maior, mas sim um tempo biologicamente suficiente para um resumo de visão, de poesia, de ópera, de literatura, de música, de teatro, de fotografia, de tudo e do nada, de propulsão das ideias mundanas, lúdicas, sagradas e profanas. As vontades rasas são jogadas pelos bares, pelos ralos do banheiro e pelos celulares de cafeína, por cabeças pensantes que desperdiçam as possibilidades do fazer. É uma batalha contra a própria sensação de ego banal, contra o cinismo de nossa própria bonança, da nossa preguiça risonha. O assunto principal é quem somos, quem fomos e o que poderemos ser. O Brasil e o brasileiro, mesmo que não explicitados como sinopse, estão implícitos em certas vontades que podem passear pelas questões sociais, pela geografia, pela economia, pela biologia, pela história e pela outras artes, mas o cerne acaba sendo o entendimento de nossa condição humana e da busca de nossa identidade, que por sua vez é eterna, cíclica e constante. Devemos explorar a contemporaneidade ao qual estamos inseridos, refletindo sobre nosso momento e sobre nossas escolhas e suas consequências.

 

Não convém com a proposta libertária de fazer um cinema suado, sem vergonha de suar e sem maquiar este suor, que decisões sejam unicamente influenciadas afim de agradar alguma concessão ética, conservadora, estética ou de linguagens distantes da convicção dos autores. Os filmes não podem parar e não param, muito menos no tempo de espera que não cabe numa úlcera. 

 

Nisso, gasta-se a energia do sonho interrompido em conseguir o dinheiro, que nunca vem e nunca tem, o dinheiro que nunca é suficiente e que quanto mais se tem, mais se precisa ter para lançar e tentar tapar o buraco do não-público. E nem 10 filmes chegam ao primeiro milhão de espectadores no fim do ano, 80 não fazem nem dez mil espectadores, o que é uma vergonha como aceitação geral, como desfaçatez descarada e sem solução num povo imenso de mais de 200 milhões de brasileiros. E o pior é o filme congelado, aquele com teias de aranha, que não está em lugar nenhum, que nunca será feito pois não pretende nem ser visto. Suar para se fazer um filme é algo literal, não apenas figurativo, pois o suor nasce líquido e evapora no mundano, refrescando a próprio corpo, é um alinhador físico e sensorial de nosso equilíbrio. Tenta-se demonizar o suor como sujo, nojento ou algo do tipo, mas a falta do suor é o que nos desumaniza, nos caracteriza como shopping center, sobretudo num país tropical de nuvens pomposas, sozinhas, filtrando quase nada do sol eloquente que nos atinge e surge sem avisar. Amor é suor!

 

Possibilidades do Cinema Suado 

 

- Não existe distinção clara entre documentário e ficção, entre a verdade e a mentira, entre a memória vivida e a memória contada. Questionar tudo aquilo que seja captado originalmente como atuação, como alegoria, como ensaio ou como depoimento.

 

⁃ Fazer filmes baratos, entre amigos e financiados por patrocinado direto ou com verba do próprio bolso, de preferência numa divisão patrimonial negociada desde o início de forma equilibrada.

 

⁃ Deter total controle ideológico e artístico em relação a obra, sem que hajam interferências externas de qualquer espécie em relação ao corte final.

 

⁃ Buscar a todo instante a noção de que um filme pequeno e barato pode e deve ser um filme popular e que dialogue com o brasileiro sem maquiagem ou menosprezo.

 

- Remunerar o maior número de profissionais envolvidos (atores, produtores locais, técnicos, profissionais de finalização e etc), quando o orçamento der condições, mas não se fechar para apoios e parcerias que possam se tornar produção associada.

 

- O crédito “um filme de” é assinado de forma coletiva aos realizadores que viabilizaram a obra artística e financeiramente, respeitando creditar as funções exercidas.

 

- É estimulante a união de pessoas fora das faculdades de cinema e audiovisual como jornalistas, administradores, economistas, sociólogos, historiadores, filósofos, arquitetos, engenheiros, escritores, poetas, músicos, artistas plásticos, advogados e etc.

 

- Não existe diferença entre o filme a ser feito e a feitura do filme, sendo crível que as estadias, a alimentação e os deslocamentos se passem no mesmo ambiente das histórias contadas, o que só é possível com equipes enxutas.

 

- Fugir descaradamente de visões pré-concebidas sobre lugares e povos distintos, oriundas sobretudo da publicidade, da televisão e do turismo.

 

- Explorar nossa contemporaneidade, distinguindo momentos históricos do cinema brasileiro ou mundial que se assemelham de alguma forma com a proposta, mas não se limitando a referências contemplativas.

 

- Evitar qualquer tipo de vira-latismo em relação as limitações orçamentárias para algumas vontades de produção, técnicas ou artísticas, sendo natural o sacrificado físico, psicológico e financeiro durante todo o processo.

 

- Nós morremos, mas os filmes ficam, então a única regra fundamental é fazer o filme que queremos fazer.

 

 

 

Bruno Graziano é cineasta, produziu o dirigiu O Acre Existe e Largou as Botas e Mergulhou no Céu.

 

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