Ana Montenegro: 100 anos de uma feminista de classe

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Milton Pinheiro
17/04/2015

 

 

A história do século XX foi marcada pela presença ativa e intelectual de mulheres que, mesmo com a tentativa de torná-las invisíveis no processo social e político, tiveram um papel fundamental nas lutas que marcaram o mundo contemporâneo. Elas enfrentaram os pontos centrais das questões de gênero, lutaram nas contendas da nossa classe, enfrentaram ditaduras, pegaram em armas para defender a vida e se bateram pelas transformações na sociedade capitalista. Portanto, cumpriram uma intensa jornada de lutas pela emancipação humana. Contudo, tudo isso ocorreu, enfrentando o preconceito e a cultura machista fomentada pela natureza da sociedade de classes.

 

É nesse período histórico, e dentro do contexto dessas lutas e bandeiras, que Ana Lima Carmo, conhecida como Ana Montenegro, cumpriu uma intensa e marcante atividade político-social ao lado das mulheres e dos trabalhadores do mundo.

 

Ana Montenegro, nome que assumiu em virtude de uma intensa atividade jornalística na imprensa comunista, aprofundou sua participação nas lutas político-sociais nas manifestações em apoio a uma ocupação, que a população de trabalhadores sem teto fizeram no bairro da Liberdade, em Salvador. Essa luta tornou-se um emblema pela moradia na Bahia e ficou conhecida como a ocupação do “Corta-braço”, em 1947, posteriormente transformada em bairro e chamado de Pero Vaz. Hoje, temos livros (Ariovaldo Matos) e trabalhos acadêmicos sobre essa ocupação vitoriosa, localizada no coração do bairro mais negro da América latina (Liberdade).

 

Os comunistas do PCB organizaram essa luta e durante a ocupação, que contou com forte repressão policial, se reuniam na pensão (localizada na Baixa dos Sapateiros) da comunista e firme apoiadora do Corta-braço: Maria Brandão. Essa figura representativa das lutas populares era, para Ana Montenegro, o símbolo da mulher que exercia um papel fundamental para combater a discriminação de gênero e afirmar a presença da mulher nas batalhas políticas. Foi um pouco antes desse acontecimento, num contexto de luta social, da militância jornalística, de combate à ditadura do “Estado Novo”, de afirmação das lutas democráticas e de grande participação dos comunistas que, em 1945, nas manifestações/comemorações da independência do Brasil, na Bahia, Ana Montenegro entrou para o Partido Comunista Brasileiro, no dia 02/07/1945, tendo sua ficha de filiação assinada pelo histórico líder comunista, Carlos Marighella.

 

Ana Montenegro, mulher feita de aço e pétalas, nasceu em 13 de abril de 1915 na cidade de Quixeramobin, no interior do Ceará. Mas, como ela rotineiramente gostava de afirmar: “sou cearense de nascimento, carioca de coração e baiana por escolha”. Das lutas políticas dos anos de 1944/45 (democratização do Brasil, fim da II guerra, anistia para os presos políticos e legalidade para o PCB) à participação na batalha das ideias/lutas populares do intervalo democrático, aprofundaram o compromisso de Ana Montenegro com o devir da história. Foi, sem dúvida, um momento de transformação radical na forma de fazer política e seu engajamento era pleno.

 

No período do intervalo democrático (1945/1964) Ana Montenegro exerceu uma intensa atividade ideológica, atuando na imprensa comunista e em outros veículos. Publicou centenas de artigos nos jornais: O Momento, Classe Operária, Tribuna Popular, Correio da Manhã, Imprensa Popular, Novos Rumos, etc. Sem falar que foi uma das fundadoras do jornal Momento Feminino e da sua participação na revista Seiva, considerada uma das primeiras revistas dos comunistas no Brasil.

 

No conjunto das ações que movimentava a prática social de Ana Montenegro, uma começou a ter repercussão central: a questão das mulheres. Participou de instâncias políticas da luta feminista, a exemplo União Democrática de Mulheres da Bahia, Comitê Feminino pró Democracia, Liga Feminina da Guanabara e a Federação Brasileira de Mulheres, entidades com intensa presença de mulheres que participavam das lutas político-sociais e hegemonicamente ligadas ao PCB.

 

No entanto, o intervalo democrático, período em que - mesmo com tentativas de golpes - teve grande participação social, e foi de intensa mobilização política, encerrou-se com o golpe burgo-militar de 1964. Nesse processo de configuração das trevas, Ana Montenegro teve que tomar o caminho do exílio, tornando-se, portanto, a primeira mulher exilada pela ditadura. Inicialmente aloja-se na Embaixada do México, indo em seguida para este país, depois passa por Cuba (onde mantém contato com líderes comunistas e anticolonialista, a exemplo da vanguarda cubana e de líderes africanos), deslocando-se em seguida para a Europa onde se estabeleceu em Berlim, na Alemanha Oriental.

 

Estabelecida na Alemanha, Ana Montenegro teve importante papel na organização das lutas feministas e na imprensa que debatia essa questão: foi integrante da seção para América Latina da Federação Democrática Internacional de Mulheres (FDIN), quando trabalhou na revista dessa entidade: Mulheres do Mundo Inteiro. Também trabalhou em organismos internacionais como a ONU e a UNESCO, tendo participado de várias articulações internacionais e congressos que tinham como bandeiras a questão da mulher, da luta de classes e da emancipação humana. Tudo isso, sempre ao lado do operador político que escolheu para combater: o PCB.

 

Mas, como nos informa o dramaturgo Willian Shakespeare, “não tem longa noite que não encontre o dia”. No Brasil, apesar da repressão violenta da ditadura, as lutas de resistência democráticas e as lutas operárias e sociais conseguiram mudar o quadro político: a anistia, mesmo com restrições, foi aprovada em 1979. Ana Montenegro tomou o caminho de casa, voltou ao Brasil. De 1979 a 1985, ainda sob a tutela da ditadura, ela intensificou a sua militância em várias frentes: a luta feminista, as lutas populares, a defesa dos direitos humanos e o combate interno aos equívocos políticos do PCB, que na época estava em franco processo de ruptura com a sua histórica tradição: operando através dos interesses da ordem.

 

Após a derrota da ditadura, mesmo com a transição tutelada, Ana Montenegro avançou na luta político-social, atuou no combate ao racismo e aprofundou o debate sobre a questão de gênero. Refletiu, escrevendo, a partir de muita pesquisa e debates, artigos e textos sobre o momento da luta feminista. Publicou diversos livros: Mulheres – participação nas lutas populares, Uma história de lutas, Ser ou não ser feminista e Tempos de Exílio.

 

Ana Montenegro atuou na área do direito, foi ativa jornalista, desenvolveu intensa pesquisa histórica sobre os movimentos populares e suas lutas de contestação. Sendo também poetisa, lembre-se do poema que fez em Berlim, no outono de 1969, quando do assassinato do seu amigo e camarada, Carlos Marighella:

 

Em seu enterro não havia velas:

Como acendê-las, sem a luz do dia?

Em seu enterro não havia flores:

Onde colhê-las, nessa manha fria?

Em seu enterro não havia povo:

Como encontrá-lo, nessa rua vazia?

Em seu enterro não havia gestos:

Parada inerte a minha mão jazia.

Em seu enterro não havia vozes:

Sob censura estavam as salmodias.

Mas luz, e flor, e povo, e canto

responderão “presente”, chegada

a primavera mesmo que tardia!

 

Ana Montenegro, com a sua presença, marcou as lutas feministas e populares do final do século XX. A partir do seu retorno do exílio, atuou primeiramente, no Fórum de Mulheres de Salvador e, depois, no Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres (1985/1989). Tinha como prática constante se dirigir, sempre às tardes, para a sede da OAB – em Salvador – para ajudar nas tarefas da Comissão de Direitos humanos. Foi homenageada em um congresso nacional da OAB, indicada ao Nobel da Paz e recebeu diversas homenagens e comendas de instituições nacionais.

 

Uma das suas mais firmes convicções era a tarefa de lutar contra a destruição do PCB, tentativa realizada pelo grupo dirigido pelo deputado Roberto Freire. Travou o bom combate, com força e determinação, lutou em defesa do socialismo e da revolução brasileira. Com seu patrimônio político e intelectual deu uma enorme contribuição ao processo de “reconstrução revolucionária” do PCB.

 

Ana Montenegro, exilada política, separada e mãe de dois filhos, teve um deles (Miguel) morto durante o exílio: era uma mulher feita de aço e pétalas. Ela faleceu em 30 de março de 2006, em seu enterro o povo, as mulheres simples, o mundo político e intelectual e seus camaradas encheram o salão para um ato político da mais bela homenagem. Seu caixão ao baixar para a cremação estava coberto com a bandeira vermelha do PCB, marcada com a foice e o martelo da luta dos trabalhadores do campo e da cidade, na terra que escolheu como sua: Salvador. Após 100 anos do seu nascimento a memória da história afirma mais uma vez: Ana Montenegro, presente!

 

Milton Pinheiro é professor de área de história e teoria política da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e pesquisador da USP. Autor/organizador de vários livros, entre eles, Ditadura: o que resta da transição (São Paulo, Boitempo, 2014).

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