Correio da Cidadania

‘A maioria das pessoas já é a favor da revisão da lei de Anistia’

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Um dos movimentos sociais de recente destaque, o Levante Popular da Juventude, em pouco mais de dois anos de atuação, conseguiu chamar a atenção para uma modalidade de protesto outrora desconhecida no Brasil: o escracho. Marcado pelo seu uso na Argentina, em relação a repressores da ditadura, em muitos casos julgados e condenados na justiça, o escracho passou a ser arma dos militantes de direitos humanos que lutam pelo mesmo resultado aqui no Brasil.

 

“Os escrachos foram as ações mais impactantes já feitas por nós nesses anos. Se for ver pesquisa do Datafolha, num período de dois anos a opinião da população em relação à revisão da lei de anistia se inverteu. Agora, a maioria é a favor da revisão, que é o grande impedimento para investigar os torturadores. Antes dos escrachos, há dois ou três anos, a maioria não era favorável à revisão da lei”, disse Pedro Freitas, membro do Levante, em entrevista ao Correio da Cidadania.

 

Na conversa, Pedro ressalta a importância de articulações políticas em favor da preservação da memória histórica, uma vez que em sua opinião nossa atual democracia ainda carrega vestígios do regime de exceção. Apesar de algumas ressalvas sobre a trajetória da Comissão Nacional da Verdade, o membro do Levante tem um parecer otimista a respeito do seu legado.

 

“No 1º de abril de 2013, fizemos uma espécie de escracho contra a própria Comissão, quando ela veio a São Paulo para a abertura dos arquivos do DEOPS. Desde então, há a sinalização, para a conclusão dos trabalhos, no fim do ano, de que o relatório final da comissão pode sugerir que sejam judicializados os casos em que agentes públicos utilizaram dependências físicas do Estado brasileiro para torturar e matar militantes políticos”, explicou.

 

A entrevista completa com Pedro Freitas, mais uma realizada em conjunto com a webrádio Central 3, pode ser lida a seguir.

 

Correio da Cidadania: Como você avalia as diversas manifestações realizadas nas ruas do Brasil neste mês que marca os 50 anos do golpe militar?

 

Pedro Freitas: São 50 anos do golpe de 1º de abril de 1964, que pôs fim às reformas de base que o governo João Goulart tentava implantar, a fim de garantir uma série de melhorias sociais, e no 1º de abril de 2014 vemos muitas continuidades do regime militar e ditatorial presentes em nossa vida, como a estrutura do sistema político, a forma de atuação da polícia militar – aliás, oriunda daquela época...

 

Portanto, 50 anos depois, é fundamental os movimentos irem para a rua para denunciar a impunidade que ainda vivemos em relação aos violadores de direitos humanos, jamais investigados, julgados e punidos pelos crimes que cometeram. E também é importante para lutar pelo fim de suas heranças, pela desmilitarização das polícias, por uma reforma do sistema político...

 

Esse é o sentido das manifestações de agora. Ainda mais num momento de propostas de lei antiterrorismo indo para o Congresso, para criminalizar os movimentos sociais etc. É um momento adequado de ir às ruas.

 

Correio da Cidadania: Sobre as manifestações do Levante Popular da Juventude, o que você teria a dizer sobre os ‘escrachos populares’? Como são idealizados e organizados?

 

Pedro Freitas: O Levante se organizou e articulou em 2012, quando houve um acampamento em Santa Cruz do Sul (RS). Naquele momento, para projetar o movimento nacionalmente, nossa coordenação fez uma leitura de que um tema bem candente era o da memória, verdade e justiça, a luta em relação aos crimes cometidos pela ditadura.

 

Porque, na época, a presidente Dilma estava prestes a indicar os membros da Comissão Nacional da Verdade. E havia uma grande pressão dos setores militares, ainda fortes nos bastidores da política brasileira, para que a Comissão não saísse, com a conivência da grande imprensa. Não havia suporte midiático para impulsionar a criação da Comissão da Verdade.

 

Assim, nos articulamos com setores que há décadas estão nessa luta, como as comissões de familiares de mortos e desaparecidos políticos, comissões de memória, verdade e justiça que foram se formando nos estados etc.

 

Calculamos que fazer escrachos em frente às casas de antigos torturadores era uma forma efetiva de denunciá-los aos seus vizinhos. Na maioria das vezes, eles não sabem que moram ao lado de sanguinários torturadores, que mataram militantes oponentes ao regime ditatorial, estupraram e cometeram tantos outros crimes.

 

Correio da Cidadania: Como vocês fazem para descobrir endereços, mapear alvos a serem ‘escrachados’ para denunciá-los? E que impacto pensa que os escrachos têm tido em nosso atual ambiente de democracia?


Pedro Freitas: O trabalho de busca de endereços é bastante restrito. Em geral, quando vamos organizar um escracho, formamos um grupo reduzido, de cerca de cinco pessoas, que têm acesso total às informações. Conversamos com familiares de mortos e desaparecidos e vasculhamos arquivos.

 

No caso do Aparecido Calandra, que escrachamos no último 1º de abril, buscamos seu endereço através da convocação dele para depor na Comissão da Verdade. O arquivo está disponível online, com endereços. Porém, muitas vezes, não é tão fácil assim.

 

Os escrachos possibilitaram uma unidade entre diversos movimentos que várias vezes não saem às ruas para ações unitárias. Dessa vez, por conta da data dos 50 anos do golpe, muitos previram que o Levante faria escrachos e nos procuraram para se somarem à iniciativa.

 

Os escrachos foram as ações mais impactantes já feitas pelo Levante nesses anos. A luta pela democratização da comunicação, feita em 2013, também apareceu bastante, mas os escrachos ganharam atenção nacional e internacional. E, acredito, conseguiram fazer avançar a consciência e cultura política.

 

Se observarmos a pesquisa do Datafolha, num período de dois anos a opinião da população em relação à revisão da lei de anistia se inverteu. Agora, a maioria é a favor da revisão da lei de anistia, que é o grande impedimento para investigar os torturadores. Antes dos escrachos, há dois ou três anos, a maioria não era favorável à revisão da lei. Hoje, a maioria quer que esses violadores de direitos humanos sejam punidos.

 

Correio da Cidadania: Como vocês avaliam o trabalho da Comissão da Verdade em quase dois anos de sua instalação?

 

Pedro Freitas: A Comissão da Verdade tinha muita expectativa em seu torno. Após um ano, os movimentos que trabalham em torno de seus temas estavam decepcionados com os trabalhos, porque a Comissão não estava fazendo audiências públicas, o trabalho estava escondido, não se sabia o que vinha sendo feito...

 

No 1º de abril de 2013, fizemos uma espécie de escracho contra a própria Comissão, quando ela veio a São Paulo para a abertura dos arquivos do DEOPS. O coordenador da comissão na época era o Paulo Sergio Pinheiro e entregamos a ele uma lista de reivindicações do Comitê Paulista de Luta por Memória, Verdade e Justiça.

 

Desde então, houve alguns avanços. Agora, é o professor e advogado Pedro Dallari quem está na coordenação. E ele tem sinalizado, para a conclusão dos trabalhos, no fim do ano, que o relatório final da comissão pode sugerir que sejam judicializados os casos em que agentes públicos utilizaram dependências físicas do Estado brasileiro para torturar e matar militantes políticos.

 

Correio da Cidadania: Acreditam que ao final de seus trabalhos teremos uma mudança no país, em termos de uma maior valorização da memória histórica?

 

Pedro Freitas: Dentro dessa mudança de atuação vista no último ano, já há audiências públicas ocorrendo, como a de Paulo Malhães, que recentemente deu um depoimento no qual disse que torturou, matou etc. e faria tudo de novo em nome da “segurança nacional”.

 

Portanto, agora os trabalhos da Comissão estão mais visíveis e palpáveis ao público. E com esse indicativo do relatório final já temos uma expectativa melhor no sentido de alcançar a justiça e também a memória.

 

Ouça aqui o áudio da entrevista

 

 

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Gabriel Brito e Paulo Silva Junior são jornalistas.

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