Correio da Cidadania

"Dilma é responsável por todos os retrocessos que agora Temer acelera"

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O país ainda absorve o impeachment de Dilma e a entronização de Michel Temer. Dentro do contexto, vemos um projeto de lei de 2004, o dito Escola Sem Partido, ganhar força na pauta educacional, enquanto em outras frentes pautam-se flexibilização dos direitos sociais e trabalhistas, além de uma reforma previdenciária regressiva. É sobre essa conjuntura que conversamos com Lisete Arelaro, professora de pedagogia da USP, que participou do Partido dos Trabalhadores desde o seu início até 2003.

 

Lisete não poupou o “ex-governismo” das críticas que lhe cabem, ao mesmo tempo em que é contrária ao impeachment. “Vejo um grande debate que tem dividido a esquerda brasileira e muitas vezes interditado o diálogo. Sobre o impeachment não ter sido um golpe, mas um ‘bem feito’ para os erros das gestões petistas – que são muitos. Estão confundindo duas coisas diferentes. Eu diria que golpe é golpe; fazer ‘média’ e esquecer que existe luta de classes é outra coisa. Estamos em um golpe: há regras no país e essas regras, sem que tenha havido um processo revolucionário e de contestação, foram quebradas. A direita resolveu que o poder é dela. Isso é golpe. Outra coisa é o que o PT vem fazendo”, analisou

 

Em sua especialidade, Lisete Arelaro considera o projeto de lei Escola Sem Partido integrado a uma agenda dos grupos de direita que depuseram Dilma Rousseff e querem inibir posições contrárias a seus desígnios. “Para seguirem fazendo as falcatruas que já estavam fazendo antes, precisam que o povo brasileiro esteja absolutamente desorganizado, desmobilizado e acima de tudo com medo. O medo, nós sabemos, é inibidor. Também para a juventude, não apenas para os adultos. Inclusive, dizem que a gente cresce e se acomoda, sobretudo, por medo. Precisamos ser jovens, no sentido da ousadia e da irreverência que a juventude tem. Escola sem Partido neste momento histórico, mesmo que não tenha começado com tais objetivos, hoje está a serviço do silenciamento da mobilização popular no Brasil".

 

 

Já em relação ao futuro do lulismo, Lisete Arelaro é crítica ao governo Dilma, diz que podemos gostar ou não de Lula, “mas o maior líder popular de hoje no Brasil chama-se Luiz Inácio Lula da Silva. E está liderando pesquisas. Essa é a razão pela qual o golpe não vai parar por aqui. Eu mesma votei nela (Dilma) achando que protegeria os trabalhadores e obviamente as medidas tomadas por ela foram ao contrário disto. Temos que aguentar um fato que é real: a Lei Antiterrorista foi aprovada no governo dela, assim como a lei que reduz a maioridade penal e, efetivamente, todos os retrocessos que Temer está acelerando”.

 

A entrevista completa com Lisete Arelaro pode ser lida a seguir.

 

Correio da Cidadania: Qual sua opinião sobre o projeto de lei Escola Sem Partido e como o relaciona com a atual conjuntura política e social do país?


Lisete Arelaro: O projeto Escola sem Partido é uma coisa tão esdrúxula e tão fora de época como outras que, infelizmente, estamos vivendo hoje. Tivemos a cassação de uma presidente eleita e, independentemente da avaliação e do mérito de ela ter feito certo ou errado, efetivamente não se provou nenhuma razão constitucional para seu afastamento. De fato, a direita decidiu que eles é que vão mandar no país. Já estão lá de forma ilegítima, a atacar direitos dos trabalhadores e da cidadania. A cada dia acordamos com a extinção de algum dos programas do governo anterior que beneficiavam o povo. Isso é inédito. Uma situação que nunca foi vista no Brasil. Sempre tivemos golpes com o apoio dos militares e desta vez (por isso é um “golpe moderno”), tivemos um sem a participação direta dos militares.

 

Sou antiga. Fiz pedagogia em Campinas, na Universidade Católica antes de tornar-se Pontifícia, e comecei um ano antes de a Unicamp abrir o curso de pedagogia. Tivemos o privilégio histórico de fazer a primeira passeata de estudantes durante a ditadura militar, que foi filmada. Depois pagamos um preço. Uma passeata de estudantes universitários numa cidade do interior. Campinas não gosta muito de ser chamada de interior, mas é interior e foi muito interessante. O que eu mais fiz nessa época foi apoiar a organização estudantil, que considero fundamental para avançarmos no país. Do ponto de vista concreto, depois da ditadura militar os movimentos estudantis, secundaristas e universitários recompuseram a força política e de mobilização nacional que já existiu um dia no país. Isso para mostrar o quanto os estudantes são perigosos.

 

Estive em um debate em Mogi das Cruzes há pouco tempo e foi lá que fiquei sabendo que naquela cidade existia um advogado chamado Miguel Nagib, que em 1993 tinha uma filha no terceiro ano do ensino médio. A professora de sociologia comparou ou se permitiu comparar Che Guevara a São Francisco de Assis. O pai ficou revoltadíssimo e foi a primeira manifestação pública de um pai revoltado com o que ele chamava de “ideologização dos conteúdos de sociologia no Ensino Médio”.

 

Em 2004, o tempo passou e tivemos uma situação interessante: Luiz Inácio Lula da Silva, um operário de baixa escolaridade, fora eleito presidente do Brasil dois anos antes. Evidentemente, um líder popular de origem pobre. Logo, consideraram que daquele momento em diante, com o Partido dos Trabalhadores governando o país, nós teríamos, é claro, que ler O Capital todos os dias e o Manifesto Comunista seria lido e decorado nas escolas. Digo isto com ironia, pois é uma babaquice. E foi contra essa maluquice que criaram o Escola sem Partido há 12 anos. Se você tivesse entrado antes do início de junho de 2016 no site deles, as questões que estou colocando aqui de maneira irônica estavam lá. Hoje o site continua, mas é um pouco mais sofisticado e sutil, para as pessoas que entrarem não perceberem o quão reacionário, conservador e até delinquente esse grupo é.

 

O que o Escola sem Partido pretende e por que ganha força no momento do golpe civil que envolve o Judiciário e o Legislativo? Não por acaso, Michel Temer se tornou presidente da República, ainda que ilegítimo. Vale lembrar que Delfim Netto foi quem ajudou a escrever os discursos de Temer. Não se enganem quando ele falar que “o governo Lula foi muito bom desde que não invadisse o espaço”, ou seja, há um risco no chão, eles estão lá e nós aqui. Isso é pedagógico.

 

Agora, o governo do PMDB realmente estabeleceu como proposta a ideia de “ordem e progresso” para dirigir suas ações no Brasil. Ou seja, para seguirem fazendo as falcatruas que já estavam fazendo antes, precisam que o povo brasileiro esteja absolutamente desorganizado, desmobilizado e acima de tudo com medo. O medo, nós sabemos, é inibidor. Também para a juventude, não apenas para os adultos. Inclusive, dizem que a gente cresce e se acomoda, sobretudo, por medo. Precisamos ser jovens, no sentido da ousadia e da irreverência que a juventude tem. Escola sem Partido neste momento histórico, mesmo que não tenha começado com tais objetivos, hoje está a serviço do silenciamento da mobilização popular no Brasil.

 

O professor, e é uma coisa até ridícula dizer, que viveu a última ditadura civil militar sabe que as providências de atemorização e até insinuação da possibilidade de prisão pelo que eles falam em sala de aula são suficientemente inibidoras para muitos de nossos colegas em sala de aula mudarem seus programas.

 

Correio da Cidadania: E como era essa censura durante o regime de 1964? De que forma se expressava no dia-a-dia em sala de aula?


Lisete Arelaro: Na ditadura vivemos situações, no mínimo, indelicadas. Colegas meus sem dúvida nenhuma tinham problemas políticos para discutir a Segunda Grande Guerra em sala de aula, por exemplo. Primeiro porque achavam que não se podia falar sobre a Revolução Russa. É engraçado, pulava-se a Revolução Russa e depois a Rússia saía da discussão. Assim, como se justifica a Segunda Guerra? Daí o professor perguntava se algum aluno tinha dúvidas – torcendo para ninguém perguntar. Não é brincadeira porque se começa a ter um patrulhamento agressivo sobre os fatos históricos, geográficos e científicos; também em relação a livros, reportagens e filmes que professores indicariam e encarnam mais a sociedade brasileira e nossa desigualdade. Isso de repente pode se tornar perigoso e ilegal.

 

É muito importante termos a clareza de que um professor precisa, em nome da ciência, das artes, das letras e da tecnologia, de liberdade de pensamento e de estímulo ao pensamento crítico, coisa que se não for feita dispensa a necessidade da escola. Se for uma simples retransmissão de conteúdo, o google faz melhor do que nós. Nós não somos retransmissores, somos formadores: de opinião, de valores, de concepções. Portanto, é isso que nos faz profissionais importantes no Brasil e no mundo. Cuidado com o projeto Escola Sem Partido.

 

Correio da Cidadania: Acredita que o avanço de pautas religiosas no Congresso possa impulsionar tal projeto de lei?


Lisete Arelaro: É importante não confundir religião com política. Por exemplo, a Teologia da Libertação na América Latina e particularmente no Brasil foi extremamente importante nos anos 60 para a formação de uma outra concepção e organização de setores populares – estudantis universitários e secundaristas sobretudo. Eu mesma fui do JEC, a Juventude Estudantil Católica. Efetivamente, não há dúvida nenhuma de que um católico deveria, acima de tudo, estar atento às condições sociais e de vida que o país está experimentando e esta é uma bela forma de ser cristão.

 

No país todo, em tempos de ditadura, foram grupos religiosos, que depois inclusive apoiaram o movimento de resistência ao golpe civil-militar, que deram cobertura, esconderam pessoas, participaram diretamente. Não foi só um grupo teórico. Participaram de movimentos de esquerda, inclusive de guerrilhas e movimentos clandestinos, razão pela qual Dom Paulo Evaristo Arns, aqui em São Paulo, perdeu a coordenação (episcopal) da grande região de São Paulo e a Igreja Católica se dividiu, colocando pessoas como o novo arcebispo, Dom Odilo Scherer, conservador ao extremo. Com todo respeito a ele, mas as posições da Igreja Católica sobre a questão de gênero nas últimas discussões dos planos municipal, estadual e nacional de educação foram lamentáveis, de tão reacionárias.

 

Estou aqui com o projeto do senador Magno Malta que está no Senado e vamos ter de fazer uma abordagem. Além de incorporar o programa Escola Sem Partido à Lei de Diretrizes Básicas que está na nossa Constituição educacional, uma coisa sem pé nem cabeça, ainda escrevem que “a educação atenderá os seguintes princípios: neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado”. Acontece que para nós professores, até por dever de ofício, sabemos que não existe neutralidade. Não existe neutralidade na ciência, nas artes e nem na literatura. Na medida que eu valorizo isto ou aquilo, vou mostrando minha visão de mundo e concepção. E isso não é necessariamente impor visões.

 

Correio da Cidadania: A senhora vê truculência neste movimento que propõe o Escola sem Partido?


Lisete Arelaro: Não por acaso vemos o envolvimento desta pauta em um movimento de rejeição a um educador como Paulo Freire. Afinal de contas, o Paulo Freire está sendo negado e chamado de “comunista”, doutrinador etc. Não que ser comunista seja um defeito, mas esse grupo adora usar tal retórica. Também fomos chamados de “comunistas doutrinadores” durante a audiência pública chamada pelo deputado Carlos Giannazi para debater a lei. Na ocasião, eles ocuparam espaço na Alesp para protestar. E é verdade que fizeram coisas protofascistas, como, por exemplo, dizer que Bolsonaro era o rei deles.

 

Fazia uns 40 anos que ninguém me chamava de comunista como uma forma de ofensa. Divergir de alguma coisa deles significa “ser comunista”, logo, “manda prender ou matar”. Este é o entendimento que essas pessoas têm. E como a direita domina a mídia – um dos erros do governo Lula foi não ter mexido nos donos da mídia no Brasil – temos essa situação extravagante, na qual poucas famílias mandam no Brasil e nos meios de comunicação.

 

Portanto, temos um processo de informação única, em todo o país, no qual dizem o que bem entendem e, entre outras coisas, promovem este tipo de pensamento nos telejornais e programas sensacionalistas. É uma situação muito delicada. Vamos ter de manter as redes sociais em funcionamento como uma forma de resistência.

 

Correio da Cidadania: Como avalia a esquerda brasileira em meio a essa conjuntura?


Lisete Arelaro: Espero que os grupos de esquerda, aos quais também pertenço e atuo, sejamos um pouco mais generosos com nós mesmos e aprendamos um pouco com a direita – que se junta no essencial, mesmo brigando no periférico. Nós temos feito, infelizmente, as duas coisas: brigamos no essencial e no periférico.

 

Um movimento que eu acho fundamental é que os grupos de esquerda sejam mais tolerantes entre si e nos fechemos no essencial. Vou lembrar aqui de um grande ensinamento que aprendi de um professor – e ser velhinha tem dessas vantagens, pois tive um professor que hoje para vocês é bibliografia –, o Florestan Fernandes: “nesses momentos de crise é quando mais precisamos estar juntos, independentemente de qualquer contradição que tenhamos entre nós”. Este é um primeiro apelo, uma sugestão, e acho que já avançamos um pouquinho. Vejo que estamos começando a sentar à mesa, até porque o momento é muito grave e estamos sentindo a necessidade de nos aproximar.

 

É preciso continuar especialmente com o trabalho de formação. Um processo de formação pela esquerda e libertário é, sem dúvida nenhuma, fundamental. E ainda digo uma coisa antiga: eu segui uma formação clássica de esquerda, e sendo assim, me desculpem as novas gerações, mas um partido político é fundamental. Um exemplo disso é a Escola Florestan Fernandes do MST, que vem mudando a capacidade de luta dos camponeses aqui da América Latina, o que é muito importante. Se formos analisar, sindicatos e partidos abriram mão do processo de formação política dos seus quadros e talvez aí esteja a razão da crise de representação dos partidos políticos de esquerda. Por outro lado, a formação escolar também se despolitizou. Este é um campo que está à nossa disposição e temos que por a mão na massa.

 

Sobre o Escola Sem Partido, é bom nos lembrarmos que essa lei já existe no estado de Alagoas. Em São Paulo houve um primeiro “round” e eu diria que saímos vencedores. Talvez exatamente porque o Alckmin não tenha considerado, apesar de ser um homem conservador, que em momento de eleição valesse a pena entrar no debate, e sobretudo porque o relatório do Giannazi foi aprovado por unanimidade na Comissão de Educação e Cultura da Alesp. Ninguém do PSDB ou do DEM votou contra o relatório dele. Mesmo assim, já estamos vendo os primeiros sintomas dos novos tempos. No Rio Grande do Sul, uma professora já foi afastada e outra foi demitida da sua função sob a acusação de estar fazendo ideologização em suas aulas.

 

Vejo um grande debate que tem dividido a esquerda brasileira e muitas vezes interditado o diálogo. Sobre o impeachment não ter sido um golpe, mas um “bem feito” para os erros das gestões petistas – que são muitos. Na minha opinião estão confundindo duas coisas diferentes. Eu diria que golpe é golpe; fazer “média” e, portanto, esquecer que existe luta de classes é outra coisa.

 

Estamos em um golpe: há regras no país e tais regras, sem que tenha havido um processo revolucionário e de contestação, foram quebradas. De fato, a direita resolveu que o poder é dela. Isso é golpe. Outra coisa é o que o PT vem fazendo, uma política de conciliação de classes que falhou, entre outros equívocos. Quanto a isso, terminadas as eleições municipais, em novembro o PT terá de fazer um balanço e uma autocrítica. Se o PT não fizer uma autocrítica profunda, acabou como partido.

 

Correio da Cidadania: Como vê a possibilidade de Luiz Inácio Lula da Silva ser novamente presidente do Brasil?


Lisete Arelaro: Podemos gostar ou não, mas o maior líder popular hoje no Brasil chama-se Luiz Inácio Lula da Silva. E está liderando pesquisas. Sendo professora titular da USP, tenho alguns amigos de direita que conversam comigo. Eles têm algumas hipóteses as quais não me permito reproduzir. De toda forma, foi feita por esse grupo que está no poder uma pesquisa e efetivamente o Lula aparece com cerca de 62% dos votos para o segundo turno em 2018. Essa é a razão pela qual o golpe não vai parar por aqui.

 

Tenho duas hipóteses: uma que ele vá preso, como o Moro tem ameaçado e nesse caso teríamos Meirelles, Temer, Serra e Alckmin, quatro candidatos à presidência que não têm nenhuma expressão no Brasil. A inserção do Lula nas camadas populares foi o que fez com que o PT se tornasse o “único ladrão e corrupto” no processo. A outra hipótese, um pouco mais extrema, é de que a direita mate o Lula caso não o consiga prender, o que é uma possibilidade não tão longínqua no Brasil. Obviamente seria uma tragédia e eu não gostaria que isso acontecesse. Mas se nos EUA mataram o Kennedy em exercício, por que aqui não matariam o Lula? Talvez porque o transformariam em mártir. Mas essa razão é suficiente? Não sabemos.

 

Temos um lumpem político no Brasil que acha que dá para fazer isso com tranquilidade. Já ouvi políticos e lideranças econômicas dizendo que Lula deveria morrer, não é algo tão distante. Temos hoje o Bolsonaro que disse que em vez de fazer presos políticos a ditadura deveria ter matado os militantes. E foi uma declaração pública. Reforça a ideia de que vieram por ordem no país e que os últimos governos deixaram que cada um se organizasse e se manifestasse trazendo o caos para o Brasil. Mas como esquerda, temos de reconhecer que o PT abriu mão de sua relação de classe e está pagando o preço histórico.

 

Correio da Cidadania: Como analisa os desdobramentos do processo de impeachment? Acredita em “acordão” dado que Dilma não teve seus direitos políticos cassados?


Lisete Arelaro: Dentro do combate à corrupção, por uma podem como. E por que não foi efetivamente cassado tendo 24 acusações contra ele na mão do Moro e do Gilmar Mendes? Porque de fato o Cunha é um homem organizado, que acredita em redes de informações. Chamou os colegas e disse: “queridos, é o seguinte, se me cassarem eu vou abrir o bico e não vai ser nem na delação premiada, mas antes disso”.

 

Logicamente, os corruptos que estão do lado dele não poderiam cassar Dilma. Como a direita, os banqueiros e a elite econômica nacional e internacional têm o interesse de terminar de pilhar o Brasil pelas próprias mãos, resolveram cassar a Dilma. Logicamente, não poderiam cassar o Cunha, pois ele falou que entregaria 109 corruptos. Ou seja, são 109 corruptos na mão de um corrupto ainda maior. Eles não teriam condições morais e éticas de cassar a Dilma.

 

Assim, primeiro cassaram a Dilma e depois talvez cassem o Cunha, uma hipótese mais distante que acabou ganhando falsos créditos. Esse é um dado que temos de considerar e tudo indica que há um grande acordo sendo feito, uma vez que Cunha permanece intacto e Dilma não perdeu seus direitos políticos.

 

Correio da Cidadania: Voltando ao PT, quais as perspectivas para o futuro do partido?


Lisete Arelaro: Não há lugar para o PT no centro, e nem acredito que haja centro. E aí vou concordar com um dos grandes petistas, que sempre criava frases. Uma coisa muito interessante que disse foi: “a passagem para o centro se faz pela direita”. Ou seja, você vai para a direita e depois volta para o centro. Essa não é uma discussão qualquer.

 

O comportamento da Dilma no seu segundo mandato é realmente surpreendente. Eu que também atuei para a eleição dela no segundo turno – pois entre ela e o Aécio eu não tinha dúvida de quem era melhor, e nessas circunstâncias sou contra o voto nulo – tenho de admitir que de fato ela traiu o eleitorado. Votei achando que protegeria os trabalhadores e, obviamente, as medidas tomadas por ela foram o contrário. Temos que aguentar um fato real: a Lei Antiterrorista foi aprovada no governo dela, assim como a lei que reduz a maioridade penal e, efetivamente, todos os retrocessos que Temer está acelerando.

 

A reforma agrária não foi feita em nenhum dos governos do PT, além de outras coisas. Em 1963 nós chamávamos o Plínio de Arruda Sampaio para discutir o Estatuto da Terra com os estudantes. Infelizmente o Plínio morreu, mas se ele estivesse vivo nós o estaríamos chamando, em 2016, para debater reforma agrária. O mesmo homem que estava em 1963 com uma das reivindicações mais básicas do Brasil estaria hoje falando o mesmo. Isso significa que os grandes proprietários de terras seguem até hoje mandando e desmandando, inclusive o agronegócio lidera a economia brasileira, uma coisa absolutamente controversa, com todos os ônus que a ação desses grupos trazem às terras brasileiras. A discussão tem de ser feita e o PT admitir que teve um comportamento de direita.

 

Lembremos ainda que a Dilma não autorizou a auditoria da dívida e foi o governo dela que encaminhou o PL 257, cujas consequências para os trabalhadores, a menos que consigamos derrotar a curto ou médio prazo, são terríveis. Em um país como o Brasil, com 52% de trabalhadores informais e sem carteira de trabalho, vamos dar ao empregador o privilégio de poder discutir termos com o trabalhador e passar por cima da CLT e de toda legislação trabalhista, para fazer valer o que ele combinou? Que patrão negocia em igualdade de condições de argumentação com seus empregados? Ele vai olhar e fazer o que já vemos no Brasil: ou aceita ou está demitido.

 

E logicamente, entre um emprego e nenhum emprego, o trabalhador vai ter que topar. Isso não passaria, fosse o PT oposição. E tal reconhecimento o PT tem de ter: “erramos em questões vitais, confundimo-nos com o inimigo”. A Rede Globo, por exemplo, é um inimigo e foi um erro do PT tentar trazê-la como aliada – e saber estrategicamente quem são seus inimigos é a primeira obrigação da esquerda, sem confundir inimigos com adversários.

 

Essa é uma questão bastante séria e espero que o PT possa revê-la, caso contrário perderá sua importância, com a história que tem. É o partido que mais trouxe propostas e esperanças de uma eventual mudança progressista, e tenho de admitir, apesar de ser uma socialista. Foi um partido muito rico de ideias, todos os setores que lutaram contra a ditadura civil-militar estiveram juntos no início deste partido nos anos 80, aprendemos muito, fizemos muito, formamos juntos e fomos tomados. Em nome dessa trajetória do PT eu quero apostar que eles possam fazer uma reflexão histórica. O PT que está aí não é do nosso interesse e não interessa ao Brasil. O centro já está cheio de partidos, e a direita também.

 

Correio da Cidadania: Para finalizar, o que pensa do grupo que depôs Dilma Rousseff e agora controla o Executivo?


Lisete Arelaro: Tive um grande amigo sociólogo chamado Maurício Tratenberg. Ele era uma pessoal especial e costumava dizer: “relaxa e goza, porque só estamos entre o último golpe e o próximo”. Ainda que eu não acredite tanto nisso, eu diria que esse grupo está voltando, porque foram eleitos com o Fernando Henrique. E logo na primeira semana que o FHC foi eleito um homem de seu governo disse que eles vinham para ficar 20 anos. Ficaram oito. Privatizaram tudo o que tínhamos de melhor e assim se locupletaram. E agora estão de volta.

 

 

 

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Raphael Sanz é jornalista do Correio da Cidadania. Ivan Carvalho e Christian Gilioti são educadores. Marcela Pontes é médica. Os autores apresentam o Programa Imbaú, na Rádio Cidadã FM, onde a entrevista foi feita.

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