Correio da Cidadania

Assumir as derrotas, construir as vitórias

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1. A esquerda só se une na cadeia”. Eis uma meia verdade brasileira que, ao questionar nossa capacidade unitária enquanto esquerda, atropela marcos políticos como o apoio do Partido Comunista a Jango e o suporte de parte significativa das forças de esquerda à Constituição de 1988. Infelizmente, os resultados desses dois processos foram duas derrotas: na década de 60, abriu-se caminho para a retomada da direção do Estado pelo bloco mais conservador; hoje, por mais que na última década as condições materiais de vida do povo tenham melhorado significativamente, trata-se de uma grave derrota no plano ideológico. Ela ainda é reversível, mas precisa ser entendida como uma derrota. Estamos falando da incapacidade do petismo de ganhar o coração das grandes maiorias para um novo horizonte societário.

 

2. O Golpe, adiado por Getúlio e pela bravura da campanha brizolista da Legalidade, revelou o esgotamento de um projeto que, desde a Revolução de 1930, reordenou os mecanismos do exercício de poder no Brasil. Com breves intervalos, alguns dos setores mais conservadores e umbilicalmente atrelados ao capital internacional – capitaneados pela burguesia compradora e pelos latifundiários exportadores, as duas classes antagonicamente opostas a qualquer projeto de Nação – foram obrigados a ceder parte de seu poder aos novos blocos dirigentes, que aliavam a roupagem nacionalista às preocupações sociais. Perder poder é perder acesso a posições no aparato estatal, algo que a burguesia enquanto classe não pode aceitar durante muito tempo.

 

3. No processo de construção da “Nova República”, outra derrota. Durante os anos 90, a reconfiguração da unidade discursiva das forças conservadoras no plano da retórica neoliberal logrou um êxito fabuloso, capaz de impor ao processo de redemocratização a direção de figuras-chave do regime militar. Figuras que não foram alijadas do poder, sequer um mísero centímetro. Isso só ocorreria se tivessem sido abertas fissuras na ordem constituída. Refém confessa da institucionalidade, a tradição política dos filhos do MDB – o filho de Direita, PSDB, e o de Esquerda, PT – revelou-se incapaz de articular um projeto de Nação à altura da expectativa das maiorias populares.

 

4. Claro que o fim da União Soviética contribuiu para rebaixar o horizonte político do possível nos anos 90. O pouco que restava de propaganda pública do socialismo no petismo, naquela época, já tinha se transfigurado no proselitismo do projeto democrático-popular e seu discurso da possibilidade das gestões emancipatórias municipais. O que sobrou delas? Oras, orçamentos participativos que mal atingem 5% da arrecadação municipal não são nada mais do que blábláblá participativista. Essas derrotas restringiram a possibilidade imaginativa do presente ao culto de um passado nostálgico. Afinal, devemos levar a sério a proposta do resgate de um “petismo de raiz” fictício, que nunca de fato existiu?

 

5. Não interessa à esquerda hoje debater o sucesso ou fracasso de um suposto projeto originário petista, tampouco a possibilidade de sua retomada. Importa dizer que ele foi derrotado enquanto projeto que sinalizasse formas de superação do atraso brasileiro. Ao invés de contribuir para desconcentrar as capacidades de poder dos tradicionais inimigos do povo, operou doutra maneira, sem ao menos neutralizar os oponentes - quando não lhes oferecendo maiores fatias do poder. Nenhuma imagem é mais emblemática do que a dos Josés presos: Genoíno e Dirceu na cadeia são a prova de que a direita segue mandando no país, fato que atesta grave derrota ideológica da esquerda.

 

6. Seguir vendendo derrotas como vitórias é contribuir para um autoengano do qual o futuro que se descortina vai cobrar muito caro. Com todo o respeito e admiração que temos pela difícil e corajosa opção de se lançar em armas contra a ditadura militar: a brava resistência ao Golpe foi prontamente esmagada, e nem a mais bela memória de luta deve mistificar nosso fracasso histórico nos anos 60; da mesma forma, ao deixar o processo de redemocratização sob a égide da direita, os cânticos do tímido reformismo legalista que aparecem na Constituição Cidadã soam como palavras ao vento: não fizemos as reformas de base e garantimos apenas migalhas de cidadania ilusória.

 

Ter neutralizado timidamente o núcleo duro do neoliberalismo durante meio punhado de anos também não é suficiente, como atesta o crescente descontentamento popular. As massas são o termômetro dos movimentos do real e nada que for alheio ao seu cotidiano terá organicidade prática para efetuar mudanças. Se não conseguirmos, junto a elas, fornecê-las uma nova direção, a direita mais hard novamente vai pilotar, sem freios, o bonde da história em nuestramérica.

 

 

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Guilherme Basto Lima é Analista de Política Internacional e Diretor do Centro de Estudos Aplicados ao Desenvolvimento Brasileiro (CEDEBRAS).

Twitter @gbastolima

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