Correio da Cidadania

‘Governos de PT e PSDB são igualmente responsáveis pelo rompimento da barragem’

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O Brasil ainda passará muito tempo fazendo o inventário da tragédia do rompimento da barragem de resíduos de minério de ferro, da Samarco, empresa da Vale e BHP Billiton, no distrito de Bento Rodrigues, localizado na cidade Mariana (MG). E para tentar dimensionar os prejuízos, falamos com Makely Ka, ex-funcionário da Vale do Rio Doce, ou seja, testemunha do projeto de privatização da empresa, até hoje muito controvertido.

 

“Além de conivente, o governo é irresponsável. É uma tragédia ambiental sem precedente no país. E parece que o governo quer amenizar. A própria ministra do Meio Ambiente participou de um encontro em Mariana, e quando um padre lhe fez um questionamento disse que ‘tinha um compromisso’”, falou.

 

Na conversa, Makely lembrou de outros acidentes nos últimos anos, ignorados pelo noticiário midiático, a seu ver outro ente irresponsável diante da situação. Além disso, critica fortemente a relação entre governos e empresa, que chega ao cúmulo de a última cuidar por si mesma da “cena do crime”, e afirma algo que deveria soar óbvio a respeito do amparo às vítimas.

 

“Pela legislação brasileira, aquilo foi crime ambiental, os responsáveis deveriam estar presos e os documentos e computadores da empresa apreendidos para laudo e perícia. A multa deveria ser aplicada e a Samarco, mineradora das mais lucrativas, deveria estar pagando todos os custos dos prejuízos que gera desde o acidente”, resumiu.

 

Agora, fica o enorme passivo ambiental no trecho percorrido pela lama tóxica, que já se estende pelo litoral brasileiro. Sem esquecer de projetos como a flexibilização do Código de Mineração nas gavetas parlamentares. A entrevista completa, gravada em parceria com a webrádio Central3, pode ser lida a seguir.

 

 

Correio da Cidadania: O que pode contar da sua experiência como funcionário da mineradora que pertence às gigantes transnacionais Vale e BHP Billiton, em sua transição para a privatização? Já havia desconfianças quanto às questões de segurança nos empreendimentos da empresa?

 

Makely Ka: Entrei na Vale como estagiário, na área de automação, pois fiz curso de eletrônica. Trabalhava na manutenção dos tanques de flotação, para onde se envia o minério depois que vem do britador – o minério passa por três britadores antes de entrar no tanque de flotação que separa os rejeitos, que por sua vez vão para a barragem dos metais descartados. Depois, fui funcionário de uma empreiteira que prestava serviço para a Vale, pois ela não contratava mais, já que estava no processo de privatização.

 

Naquele momento, não tinha rede social, não tinha esse movimento todo nas comunicações, de modo que tudo corria pela imprensa tradicional ou pelo sindicato, que divulgava algumas coisas. Mas presenciei três acidentes, que não foram divulgados. Foram abafados.

 

Um deles foi um choque entre duas locomotivas em cima do pontilhão. Elas caíram e os dois maquinistas morreram. Nesse caso saiu matéria no jornal do sindicato porque alguém conseguiu fotografar. Outro caso foi de um trabalhador que caiu dentro do britador e virou minério. Nunca se achou nenhum vestígio dele. E outro caso foi de um caminhão haulpak, daqueles que carregam até 50 toneladas: passou em cima de um carro dentro da mina, que virou papel, claro, já que os pneus são da altura de uma casa de dois andares. Enfim, os acidentes aconteciam e viravam estatística dentro da empresa, não saíam na mídia.

 

Existia uma pressão muito grande. No meu departamento, por exemplo, de automação industrial, quando estragava alguma coisa que fazia a mina parar, ocorria uma pressão gigante sobre os funcionários, tanto que os mais velhos, que tinham mais tempo de empresa, tomavam algum tipo de remédio tarja preta. Era f...

 

Correio da Cidadania: O que pensa das reações do governo mineiro e também da empresa e suas respectivas respostas oferecidas até aqui, tanto para a sociedade como para os afetados diretamente pela tragédia?

 

Makely Ka: Vejo que praticamente todos, desde prefeito e governador até ministros de Meio Ambiente e Desenvolvimento e presidência da República (que demorou, mas anunciou uma multa), estão numa relação de conivência, rabo preso. O governador deu entrevista dentro da sede da Samarco. O que simboliza dar uma entrevista nesse contexto e afirmar que a empresa fez tudo que podia fazer?

 

O governo tem soltado comunicados com as alegações da Samarco, como se sua alegação pudesse ser considerada um fato apurado e a lama comprovadamente não fosse tóxica. Além de conivente, o governo é irresponsável, pois vários especialistas já testaram a lama e se pronunciaram no sentido de dizer que é extremamente tóxica, tem metais pesados e vários indícios de ser prejudicial à saúde.

 

Ainda que não fosse prejudicial à saúde, uma inundação de 62 bilhões de litros de lama, mesmo que fosse medicinal, causou mortes, inviabilizou um município inteiro e a captação de água em várias cidades no trajeto do rio Doce, que virou um mar de lama e está sendo cimentado, acabando com os peixes.

 

É uma tragédia ambiental sem precedente no país. E parece que o governo quer amenizar. A própria ministra do Meio Ambiente participou de um encontro em Mariana, e quando um padre lhe fez um questionamento disse que “tinha um compromisso”. Que compromisso pode ser maior para um ministro do Meio Ambiente do que o maior crime ambiental de que se tem notícia nos últimos tempos?

 

Correio da Cidadania: Falando em responsabilidade com as informações, o que pensa da abordagem midiática, que não poucas vezes bate na tecla do acidente, como se a maior causa da tragédia fosse alguma espécie de azar do destino?

 

Makely Ka: Acho vergonhosa a cobertura midiática. Vai virar tese acadêmica, exemplo de como foi conivente. Sabemos que o posicionamento dos governos está evidentemente ligado às doações de campanha, que por sua vez são investimentos. As empresas querem receber o dela depois. E a mídia que se coloca como isenta e independente faz esse jogo. A cobertura tem sido vergonhosa nos principais canais de TV e jornais.

 

Até se tentou passar a ideia de que o abalo, de acordo com alguns observatórios, de 2,5 pontos na escala Richter pode ter sido causador do desastre. Um abalo de 2,5 na escala Richter não derruba nem um castelo de cartas! Falar nisso é uma piada mórbida, chega a ser brincadeira com quem perdeu familiares e com seus sentimentos. Absurdo.

 

Pra se ter ideia, todo dia tem explosão de dinamite em mina de lavra aberta. É necessário deslocar rochas e abrir crateras, pois a mineração de lavra aberta broca o chão e, para isso, se usa dinamite. Todo dia temos impactos de pelo menos 3 pontos na escala Richter, por conta do próprio procedimento de escavação.

 

Portanto, se a barragem não suporta um abalo de 2,5 pontos, que nem é sentido pelos humanos e só os sensores detectam, é porque houve negligência. É importante ainda entender que a escala Richter não é linear. Quatro pontos não são o dobro de dois. A progressão é aritmética. Um abalo de 2 graus não derruba nem casa de pau a pique, tanto que não existe rachadura nas casas de Ouro Preto, devido aos abalos sísmicos de Mariana.

 

Se um tremor de terra pode derrubar uma barragem, era pra estar tudo em Estado de Emergência. É uma completa canalhice a imprensa divulgar notícias como essas. E acho que ela se compromete e desmascara cada vez mais, porque as notícias circulam nas redes, as pessoas divulgam outras informações e a verdade, mesmo aos poucos, surge.

 

Correio da Cidadania: que pensa da política de mineração brasileira de modo geral, tendo a própria Vale como grande símbolo de prosperidade e geração de divisas para o país?

 

Makely Ka: Acho que o valor pelo qual venderam a Cia Vale do Rio Doce foi um crime. Equivaleu ao lucro de apenas um ano. Caberia inclusive um questionamento judicial sobre a forma como foi feita a privatização da empresa e o que acarretou para o país. Não acho que teria sido diferente se tivesse continuado como empresa estatal de capital nacional, mas o procedimento foi errado. Não quero isentar nenhum governo. O atual, que não propôs mudanças mesmo em 12 anos, foi tão conivente quanto o anterior, que a vendeu a preço de banana. Ambos são responsáveis pela tragédia. Pela venda, pela conivência com as licenças ambientais etc.

 

Pra se ter ideia, há algumas semanas o governador petista Fernando Pimentel apresentou projeto de lei na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALEMG) no sentido de agilizar e facilitar licenças ambientais, uma demanda das mineradoras, que sempre questionaram e acusaram de burocrático e moroso o processo.

 

Se eles são patrocinados em suas campanhas pelas mineradoras, vão fazer o quê? A campanha do Pimentel foi uma das mais caras do país em 2014 e muito do dinheiro que teve veio das mineradoras. Claro que elas vão cobrar seu investimento. E, por ironia do destino, na semana anterior à tragédia ele entrou com tal projeto, em caráter de “urgência”.

 

Além disso, existe no Congresso Nacional a proposta de rever o Código de Mineração do país. Outro acinte, outro capitulo vergonhoso. Tanto na ALEMG quanto no Congresso, grande parte dos deputados envolvidos nas comissões que discutem a reforma das legislações mineradoras é patrocinada pelas mineradoras. Vão defender o interesse de quem?

 

Correio da Cidadania: Qual a dimensão que você atribui a este episódio na história das tragédias ambientais? Equipare-se a outras de repercussão mundial na humanidade?

 

Makely Ka: Vi algumas comparações, como o crime ambiental da Exxon no Golfo do México, entre outras. São realidades diferentes. Ainda não temos nem dimensão do que aconteceu a respeito da lama da Samarco. Há poucos dias, surgiu a gravíssima informação de que a Samarco estaria removendo corpos, retirando-os do local com ambulâncias do IML e helicópteros, de modo a minimizar o impacto, já que poderia ser diminuída a contabilidade dos mortos. Algo mórbido, pra não dizer outra coisa.

 

O impacto não é só em Bento Rodrigues, completamente destruída, Mariana e municípios vizinhos, mas se estende por mais de 500 km. O rio Doce está morto, vai levar no mínimo 10 anos pra se recuperar. A lama já chegou no mar. As cidades que captam água do Rio Doce vivem situação desesperadora.

 

Governador Valadares vive quase uma guerra civil. Tem saques aos caminhões pipa, aos supermercados que têm água... Os moradores chegaram a fechar os trilhos da estrada de ferro para impedir a passagem dos trens da Vale, que vão para o porto de Tubarão (SC) embarcar o minério para a China.

 

Não temos sequer dimensão do impacto, nem sabemos exatamente quantas pessoas morreram. Quem cuida da cena do crime é a própria Samarco, coisa absurda. É kafkiano: “eu cometo crime, mas pode deixar que eu cuido da cena, vejo qual foi minha motivação...” E o governo é conivente.

 

Pela legislação brasileira, aquilo foi crime ambiental, os responsáveis deveriam estar presos e os documentos e computadores da empresa apreendidos para laudo e perícia. A multa deveria ser aplicada e a Samarco, mineradora das mais lucrativas, deveria estar pagando todos os custos dos prejuízos que gera desde o acidente.

 

Sabemos que a mineração do país é atividade predatória. Exploramos matéria-prima, bruta, vendendo-a a preço de banana, para depois comprar computadores, celulares e eletrodomésticos a preço de ouro. Se ao menos houvesse uma fábrica de transformação do lado da mina, podíamos pensar em benefícios, porque o minério sairia dali, já entraria na fábrica e teríamos computadores a preço de custo, permitindo, por exemplo, que todos os alunos de escola tivessem um. Mas não. Vendemos matéria-prima que se esgotará. Não existem reservas infinitas de minério. Vai acabar. E o preço inclusive caiu no mercado mundial. Mas continuamos cavando buraco, destruindo regiões...

 

No ano passado, foi criado o Parque Nacional da Serra do Gandarela, que fica numa região considerada a caixa d’água da região metropolitana e atende 5 milhões de pessoas. Foi criado já com lobby da Vale, no sentido de picotar sua área. Assim, todas as áreas de interesse da Vale, que incluem nascentes e outras que não podem ser mineradas, ficaram fora do parque. Quando a Dilma divulgou o decreto de criação do Parque Nacional, fomos surpreendidos com o “desaparecimento” de 10 mil hectares.

 

Quer dizer, só o lucro interessa, não a vida das pessoas. São atividades predatórias e criminosas. Outros crimes, desastres e tragédias como essa virão. Eles não vão parar se não nos posicionarmos. Há alguns dias, teve um protesto em Iracema, cidade pequena próxima de BH, porque tem um projeto de construção de uma barragem três vezes maior que a de Bento Rodrigues. Compromete inclusive o rio das Velhas, um dos principais afluentes do São Francisco.

 

Vemos pessoas comuns e famílias saqueando água em Valadares, já que o Rio Doce era a única fonte de captação de água e não sabemos por quanto tempo continuará inviável. Enfim, está muito complicado, as pessoas têm de se dar conta.

 

Áudio da entrevista

 

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Gabriel Brito e Paulo Silva Junior são jornalistas.

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