Correio da Cidadania

Paris pode unir rivais contra inimigo mortal

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Rebeldes sírios, com apoio dos EUA, Turquia e países do Golfo, lutam contra o governo de Assad, por sua vez reforçado pelo Hizbollah e a aviação russa.

 

Os russos bombardeiam instalações do Estado Islâmico e dos grupos terroristas anti-Assad, atingindo também rebeldes moderados sírios e confundindo-os com os terroristas, seus aliados contra o presidente sírio.

 

Putin alega que a culpa é dos rebeldes moderados que não informam suas posições para que os aviões russos os evitem, temendo que, ao serem informados, mais facilmente os fariam de alvo dos mísseis russos. “Aparentemente, a opinião deles é baseada no seu próprio conceito de decência humana”, ironizou Putin.

 

Os curdos, por sua vez, também combatem o Estado Islâmico, mas são bombardeados pela Turquia, apesar de este país ser membro da coalizão anti-ISIS liderada pelos EUA.

 

Enquanto isso, o grupo principal dos rebeldes sírios é formado por jihadistas, sendo o maior deles o terrorista Al-Nusra (filial da Al-Qaeda), o qual, em algumas ocasiões, fez acordos pontuais com os guerreiros do ISIS para combater forças de Assad.

 

O grande beneficiário desta enorme confusão é, sem dúvida, o Estado Islâmico, pois vê seus inimigos enfraquecidos pelas divisões internas e até lutando entre si.

 

Se os grupos pró e contra Assad fizessem as pazes e formassem um exército unido, com a participação das potências aliadas de um e outro, os bárbaros modernos ficariam em situação apertada.

 

Conscientes disso e premidos pela trágica onda de refugiados sírios que estão procurando penetrar na Europa, os estadistas das nações mais atingidas pelo problema reuniram-se em Viena em busca de uma solução.

 

Alguma coisa andou. Foi estabelecido que governo e oposição sírios teriam de iniciar conversações de paz em primeiro de janeiro, formar um governo de transição em seis meses e marcar eleições para 18 meses depois.

 

Bom, não? Nem tanto.

 

Enquanto franceses e britânicos pareciam maleáveis, aceitando a presença do presidente Assad no governo de transição, desde que depois da eleição caísse fora, Obama era radical: com Assad, não tem paz. E mais: nas futuras eleições, só poderiam concorrer nomes previamente aprovados.

 

No Iêmen, com a eleição de um candidato único (como Assad na Síria), o dócil Hadi, o processo deu no que deu: a revolução dos houthis, que o grande poderio do exército saudita não consegue vencer, apesar de seus aviões já terem matado muita gente.

 

De qualquer modo, uma eleição com censura dos candidatos nada tem de democrática, o que não fica bem para o país que a exige, justo aquele apresentado como o grande defensor da democracia no mundo.

 

Putin não aceita estas restrições a Assad e a futuros candidatos indesejáveis. Não pode renunciar a um dos seus principais aliados no Oriente Médio, que lhe cede o uso da única base da frota russa no Mediterrâneo.

 

Sem falar que tem a justiça a seu lado: os direitos de Assad como presidente da Síria e de candidatos de sua facção a se candidatarem em eleições futuras.

 

Mas, não é assim tão simples: como disse o general romano Pompeu Magno aos sicilianos que invocavam seus direitos desrespeitados: “parem de falar em leis, nós portamos armas”.

 

Um argumento que vale por muitos discursos. Os objetivos de Obama na Síria são opostos aos de Putin. Ele quer Assad e aliados fora do jogo para poder instalar um governo aliado dos EUA, enfraquecer a rival Rússia no Oriente Médio e, por tabela, também o Irã, outro aliado de Assad, a fim de deixar os amigos Turquia e Arábia Saudita radiantes com os pontos perdidos pelo seu rival na hegemonia da região.

 

Parecia um impasse. Aí aconteceu o atentado de Paris. Foi quando o mundo se deu conta de que o Estado Islâmico era uma ameaça concreta e brutal não apenas contra os países do Oriente Médio, mas também um inimigo mortal da humanidade, capaz de protagonizar massacres de civis até na “civilizada” Europa.

 

Diante da necessidade de se livrar do perigo o mais cedo possível, falou-se no Ocidente na necessidade de partir para um ataque mais consistente, através de uma guerra terrestre que expulsasse o ISIS das áreas conquistadas no Iraque e na Síria.

 

No meio do clamor geral, Obama manteve-se impávido. De início, deixou claro que admitiria a Rússia na “coalizão dos bons” só se ela renunciasse a Assad.

 

Quanto ao Estado Islâmico, o melhor caminho ainda seria continuar os bombardeios das posições militares, centros petrolíferos e meios de transporte dos terroristas para, aos poucos, travar sua ação pelo corte das fontes e depósitos de mantimentos, munições e armas.

 

Na verdade, a eficiência dos ataques aéreos é bastante discutível. Em 6 de outubro, as operações completaram um ano. Nesse período, o Estado islâmico permaneceu com praticamente a mesma área que havia conquistado.

 

Entre 57.843 incursões aéreas exploratórias no Iraque e na Síria (especialmente), em apenas 7.323 os aviões encontraram alvos para atacar. A maioria voltou sem usar suas bombas e mísseis.

 

O problema é que o Estado islâmico é mais uma guerrilha do que um exército. Eles espalham seus equipamentos e guerreiros em escolas, hospitais, mesquitas e prédios públicos, nos quais os aviões norte-americanos têm dificuldade de atingir.

 

A aviação é, de fato, muito importante nesta guerra, mas só quando atua em coordenação com um exército terrestre.

 

Como aconteceu na cidade de Kobane, onde combatentes curdos conseguiram resistir ao ISIS durante quatro meses e meio, sendo o inimigo muito superior, graças à cobertura aérea norte-americana (700 ataques).

 

Aviões russos, operando em estreita coordenação com o exército de Assad, foram decisivos para que as forças de Damasco saíssem de uma posição defensiva e avançassem no sul e no leste de Alepo, expulsando o exército do ISIS, que submetia a base aérea de Kweiris a um cerco de muitos meses.

 

Mas Obama também tem afirmado que resolver a parada com exércitos terrestres não funciona.

 

Para ele, nós (os good guys) poderíamos recuperar o território tomado pelo ISIS, mas assim que nossas tropas se retirassem os terroristas voltariam a reocupá-lo. E o terror voltaria.

 

Referia-se certamente ao caso do Iraque. Exemplo infeliz. Naquela guerra, os exércitos dos EUA eram estrangeiros invasores, que devastaram e dominaram o país, ganhando o óbvio ódio do povo.

 

O caos que se seguiu após a retirada norte-americana deve-se à Al-Qaeda que antes praticamente não existia e só ganhou força por ter se destacado na resistência à ocupação ianque.

 

No momento, seria muito diferente caso o Irã enviasse tropas ao Iraque para atuar em conjunto com o exército local (Teerã já se dispôs a isso, sendo solicitado) para recuperar a parte do território nacional que o invasor, o Estado islâmico, tinha ocupado.

 

Situação semelhante seria a da Síria. Claro, governo e moderados precisariam unir-se num exército só para, com apoio de forças terrestres e aéreas de outros países, retomar terras sírias ocupadas pelo Estado Islâmico.

 

No caso, seria uma luta dos sírios contra os estrangeiros invasores do ISIS. Relembre-se a guerra do Iraque: os invasores estrangeiros eram os norte-americanos, que enfrentaram durante muitos anos a resistência do povo iraquiano.

 

Nada disso convence Obama. A verdade é que, depois dos fracassos do Iraque e do Afeganistão, o povo estadunidense, em sucessivas pesquisas, repudia veementemente o envio de forças terrestres para lutar no exterior.

 

Não quer mais ter seus jovens mortos, feridos ou psicologicamente incapacitados em defesa de uma causa que não é sua.

 

As eleições presidenciais vêm aí e Obama quer eleger seu sucessor. Nem pensa em perder votos e embarca nas exaltadas exigências do War Party.

 

Já Hollande, o presidente da França, não está nem aí. Ele tem de atender a indignada população francesa, que exige ação decisiva contra o Estado Islâmico.

 

Para isso, reunir o máximo de poder bélico, venha de onde for, é evidentemente importante.

Assim, Hollande, costumeiro yes man do presidente Obama, apelou para a entrada da Rússia na coalizão anti-ISIS, coisa que os EUA tinham terminantemente proibido.

 

Hollande defendeu uma aliança com Moscou, dizendo ser tempo de por de lado “interesses divergentes” e se unir contra o ISIS. Depois, no parlamento, esclareceu que não está falando em “travar o Estado Islâmico, mas em destruí-lo totalmente”. E Hollande apelou “pela união de todos que podem realisticamente lutar contra o exército terrorista em uma grande e única coalizão”.

 

Numa união que se forma entre França e Rússia, os aviões e naves de guerra dos dois países já estão atuando de forma coordenada contra o Estado Islâmico.

 

O necessário ataque terrestre pode estar próximo.

 

Segundo o Express, de 19 de novembro, Putin declarou estar pronto para juntar suas forças ao Ocidente e tirar o Estado Islâmico do mapa.

 

E isso pode significar a entrada na guerra de um exército de 150 mil soldados russos, mobilizados desde setembro, conforme Putin teria dito em público e registrado por informantes locais.

 

Um observador dá até detalhes da operação: “parece claro que os russos querem varrer todo o oeste da região, tomando Racqua (capital do ISIS) e todos os recursos petrolíferos ao redor da cidade de Palmira. Será uma rápida avançada até Racqua para assegurar os campos petrolíferos de que eles precisam para limpar a região de insurgentes”.

 

E o Estado islâmico ficaria sem muita chance diante do enorme poder de fogo do exército russo. Acabaria tendo de entregar as chaves de todas as cidades e regiões tomadas da Síria e também do Iraque.

 

Claro, não iria desaparecer da face da terra.

 

No entanto, sem seu hoje considerável califado, atrairia muito menos recrutas e recursos para atentados de porte, limitando-se a ataques esporádicos e de menor impacto.

 

Isto é, o mesmo de alguns outros movimentos jihadistas que só acabarão quando os EUA se retirarem do Oriente Médio e deixarem que a história coloque o islamismo na Renascença e resolva os conflitos entre sunitas e xiitas mais rapidamente do que os quatro séculos que católicos e protestantes levaram para aprender a conviver numa boa.

 

Porém, voltemos às últimas da crise do Oriente Médio e às perspectivas da intervenção terrestre do exército de Moscou.

 

Tudo pode se resumir a boatos, os russos podem se limitar a forçar sua entrada na coalizão dos bons e deixar a guerra da Síria para ser discutida mais tarde.

 

Mas, se for verdade, a ação militar russa e sua possível consequência de destruição do ISIS lhe dará créditos para conseguir dobrar Obama.

 

Não será nada fácil.

 

É de se crer que ele aceitaria Assad no governo de transição, desde que no fim o sírio partisse para o exílio.

 

É de se crer que os russos topariam essa saída, desde que só fossem barrados das futuras eleições candidatos comprometidos com violências contra os direitos humanos.

 

É de se crer que curdos e turcos acabassem fumando o cachimbo da paz.

 

É de se crer que a Arábia Saudita aceitaria que nas futuras eleições sírias fosse eleito um governo independente.

 

É de se crer que os grupos jihadistas, com o Al-Nusra à frente, se resignariam a voltar pra casa, depois das coisas terem sido acertadas.

 

Tudo isso pode ser sonho.

 

O que parece certo, indubitável, é que sem que Rússia, EUA, França, Reino Unido, Irã, Turquia e até a Arábia Saudita se unam, o Estado islâmico ainda fará jorrar muito sangue inocente e muitas lágrimas sobre a terra.

 

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Luiz Eça é jornalista.

Website: Olhar o Mundo.

 

 

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