Correio da Cidadania

Contradições do neodesenvolvimentismo são devastadoras para os trabalhadores

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Em entrevista do início do ano, o sociólogo do trabalho Ricardo Antunes já afirmava que “a falência do PT gera instabilidade política”, dentro de um governo praticamente “natimorto”. Em nova conversa com o Correio da Cidadania, além de reafirmar tais análises, Antunes descreveu todo o quadro de “crises econômica, política e social profundas”, o que torna tudo imprevisível até 2018, inclusive uma possível “reaparição heroica” de Lula. “Até lá muita água vai rolar, só não sabemos o que vai se passar com a presidência”.

 

No entanto, como se trata de uma crise generalizada, que nega credibilidade a toda a classe política, a paralisia se estende a todos os atores em cena. “Como existe relativa autonomização do judiciário e da Polícia Federal, torna-se tudo instável: a presidência, a vice-presidência, o presidente da Câmara e o presidente do Senado. Não é apenas coleira (no sentido de oposição e partidos fisiológicos interditarem o governo). Porque se de um lado o empresariado sabe que o impeachment abrirá uma crise social forte, por outro, uma paralisia da economia é assustadora. É inaceitável também para os assalariados”, sintetizou.

 

De toda forma, Antunes faz uma ampla análise do atual momento de Lula e do próprio processo histórico já denominado de lulismo, com seus traços “nefastos” e “centralizadores”, a impedir qualquer movimento de mudança dentro do PT. “É difícil aquilatar qual o tamanho da perda nos rincões do pauperismo e da miséria, base da segunda vitória de Lula. Mas minha intuição é de que o Lula se fragilizou porque a população o entende como o criador de uma criatura que faliu. Por que a Dilma foi escolhida, e não outras lideranças do partido, com trajetória política mais sólida? Por causa do controle que Lula sempre teve no PT”, explicou.

 

Diante do quadro, Ricardo Antunes lamentou que ainda não se tenha criado uma alternativa viável e prática no campo da esquerda, o que será ainda mais sofrível, em sua visão, nos próximos pleitos. Ainda assim, também destaca que no atual momento essa mesma esquerda alijada do jogo de poder não deve gastar demasiada energia em eleições, o que dá a ideia de urgência da reorganização através “das bases”, afirmação compartilhada por algumas outras lideranças.

 

“Digo com tristeza: a mais dura das medidas tomadas pelos governos do PT ao longo dos quatro mandatos foi destruir a esquerda brasileira. Assim, uma frente ampla, de esquerda, sob liderança do PT, é uma provocação. Militantes do PT que têm compromisso com as esquerdas críticas precisam admitir que erraram, acreditaram num projeto que faliu e estão dispostos a recomeçar, a refundar um outro projeto de esquerda. Mas estamos longe disso”, criticou.

 

Por fim, além de prever uma nova era de rebeliões (ou “contrarrebeliões”), Antunes reitera o que ele e muitos outros chamaram de mitos desenvolvimentistas e seu voo de galinha, que agora volta a terra nada firme. “O mito que alguns chamaram apologeticamente de neodesenvolvimentismo ruiu. O PT nunca foi neodesenvolvimentista. Oscilava entre o neoliberalismo e o social-liberalismo, com cara social-liberal, e acumulação capitalista concentradora de renda. E a renda do Bolsa Família não era retirada do capital. Evidentemente, o resultado é devastador para as classes trabalhadoras e o PT vai pagar o preço já nas eleições do que ano que vem”.

 

A entrevista completa com Ricardo Antunes pode ser lida a seguir.

 

 

Correio da Cidadania: No início do ano, você nos concedeu entrevista na qual afirmou estarmos diante de “governo natimorto”, fruto da “falência do PT”. Como enxerga essas assertivas diante da crise política, ética e econômica que já marcou todo o quinto ano de Dilma Rousseff na presidência da República?


Ricardo Antunes: O quadro atual confirma minha formulação provocativa de meses atrás. A eleição que Dilma ganhou sinalizava uma vitória eleitoral difícil e uma acentuação ainda mais profunda de um governo antipopular, completamente favorável aos grandes e dominantes interesses, em particular do capital financeiro. E seguidor dos constrangimentos e imposições indicados pelo FMI e o receituário da ordem, qual seja, o governo deveria implementar, o mais rápido possível, um ajuste fiscal profundamente destrutivo em relação ao mundo do trabalho, cortar conquistas, reduzir outras dos assalariados em geral, aumentar juros e garantir superávit primário. De tal modo que, ao encontrar respaldo dos interesses dominantes, do mundo financeiro e produtivo (ainda que num contexto de crise), acreditou que poderia iniciar seu segundo mandato.

 

De lá pra cá, além do agravamento da crise econômica, veio simultaneamente o agravamento exponencial da crise política. A Operação Lava Jato chegou aos núcleos dominantes do PT e aos laços de setores dominantes que controlavam as finanças do partido, inclusive com o empresariado mais destrutivo e corruptor, a exemplo da “burguesia empreiteira”. Tal crise foi ampliada pelo fato de o ajuste fiscal penalizar os setores assalariados (que garantiram a vitória de Dilma), empobrecidos e dependentes de Bolsa Família. Vale lembrar que Dilma perdeu apoio de parcelas dos assalariados e Aécio ganhou no ABC Paulista, mostrando como o derretimento petista se dá até no cinturão industrial de seu núcleo originário.

 

As duras medidas do ajuste corroeram parte do que resta da base de apoio de Dilma entre os assalariados. Tanto que vemos com frequência manifestações de movimentos como MST e MTST contra o ajuste fiscal e a política econômica de Dilma, ainda que contra o impeachment. Só em poucos casos é claramente a favor do governo também.

 

Porém, é visível que 10 meses depois da posse de Dilma o quadro é de completa imprevisibilidade. Em 13 de outubro, por uma liminar concedida pelo STF, Dilma conseguiu se livrar de um processo de impeachment, mas lembremos que é só uma liminar, a ser julgada mais adiante, além de outras iniciativas ainda em curso.

 

Assim, respondendo a pergunta, o governo Dilma é um governo que não governa. Um governo que levita. Não no ar, pois não tem mais condições de voo; ele derrapa no chão molhado. Cada medida que toma é uma “desmedida”, pois não se efetiva. É claro que assim começa a perder uma base de sustentação importante, junto a amplos setores do empresariado, especialmente o industrial, que em função da alta de juros e da falta de perspectiva para a economia nos próximos meses começa a retirar o apoio que era forte até recentemente. Esse empresariado não se bandeia completamente para o lado do impeachment porque sabe que abriria uma crise social no país. Muitos fazem oposição ao governo Dilma, mas não aceitam uma medida tomada por um parlamento cujo nível de comprometimento está visceralmente degradado. Basta dizer que o presidente da Câmara está completamente envolvido nas corrupções que vêm impregnando a política brasileira nas últimas décadas.

 

Portanto, não é possível que um parlamento dirigido por um político completamente envolvido em práticas de corrupção, conforme recente indicação do procurador geral da República, tenha legitimidade para depor o governo Dilma. Se o PT está envolvido até a medula em práticas de corrupção (o que está ainda sendo investigado), desde os inícios do governo Lula, não há ainda elementos que incriminem a presidência. Não há um elemento factível a dizer que a presidente da República, até o presente, envolveu-se diretamente com corrupção, contas e outros casos apresentados pela Operação Lava Jato.

 

O quadro, portanto, é de crises econômica, política e social profundas. E gera uma completa imprevisibilidade sobre se Dilma governará nesse voo rasante e derrapante até 2018, ou se sofrerá impeachment nos próximos tempos, ou se conseguirá algum soerguimento em função da retomada de algum crescimento econômico, o que nenhuma avaliação minimamente lúcida indica – na melhor das hipóteses, apenas em 2017. Até lá muita água vai rolar, só não sabemos o que vai se passar com a presidência.

 

E tem um elemento importante: em caso de queda de Dilma, seu vice também fica comprometido, de modo que aquela ideia que meses atrás ganhava força, de ter Michel Temer como espécie de paladino da ordem e da “frente amplíssima” pra preservar o impreservável, não cola mais. Afinal, o comprometimento da Dilma seria a partir das contas de campanha, que envolvem a presidência, ou das chamadas pedaladas, à medida que estendidas a 2015, supondo que levadas adiante, também envolveriam a vice-presidência da República.

 

Assim, veja o tamanho da tragédia. Ou farsa. Dilma cai acusada de corrupção junto de Temer, o presidente da Câmara (Cunha) toma posse de 90 dias, e o flanco fica aberto, pois este seria atacado por todos os lados por ter deixado rastros em todos os pontos por onde passou.

 

Correio da Cidadania: Desse modo, é precipitado reduzir a hipótese do impeachment à mera coleira política do mandato de Dilma, a ser usada pelo maior tempo possível.

 

Ricardo Antunes: Certamente. Não é apenas coleira. Porque se de um lado o empresariado sabe que o impeachment abrirá uma crise social forte no país, por outro, uma paralisia completa da economia é assustadora para o empresariado. É inaceitável também para os assalariados. O que os trabalhadores(as) estão vendo? Milhares de demissões. Quando não são demitidos, têm de negociar com uma faca no coração e uma espada nas costas para aceitar uma redução da jornada com redução salarial, a antessala do desemprego.

 

O capital financeiro, claro, percebe a alta dos juros e a ciranda financeira favorável, mas na medida em que tem de controlar o crédito quase sem poder emprestar, pois o risco de calote é enorme, cria toda uma paralisia econômica. E o movimento de rua das classes médias conservadoras, hoje, digamos, mais retraído, pode voltar, naturalmente. Pra completar, 2016 é ano eleitoral.

 

Não havendo o impeachment, se tenta uma alternativa onde o governo reina, mas não governa. Mas Dilma nem sequer reina. Isso é feito pelo “primeiro-ministro”, que até semanas atrás pautava a vida política do país, mas não sabe até quando será presidente da Câmara. Por certo tem o risco, crescente, de perder até o mandato, pois deixou rastro em todos os lugares por onde andou: contas esparramadas em varias áreas, com digitais, passaporte diplomático... E como existe relativa autonomização do poder judiciário e da Polícia Federal, não é possível controlar tais movimentos, o que torna tudo instável: a presidência, a vice-presidência, o presidente da Câmara e o presidente do Senado.

 

Correio da Cidadania: Como enxerga a figura de Lula em meio à crise política? O que se pode esperar deste político, ou deste ‘personagem’, ou do que se chama de lulismo, para os próximos tempos?

 

Ricardo Antunes: Primeiramente, o fenômeno do lulismo é muito recente. Fui dos primeiros a tratar algumas pistas a respeito, em dois livros de artigos – A Desertificação Neoliberal do Brasil e A Esquerda Fora do Lugar. A figura do lulismo é ainda pouco conhecida entre nós, embora se possa ter muitas pistas, como vem se dando desde 2002 pelo menos.

 

Em rápidas palavras, o lulismo é a figura carismática e em momentos de apogeu foi quase messiânica, de um líder que conseguia atingir as duas pontas da classe trabalhadora. No apogeu do Lula, ele tinha um respaldo quase inquebrantável da classe trabalhadora organizada brasileira, aquela classe trabalhadora que tem formas de associação sindical ou de algum outro nível, onde Lula era sua principal liderança. Não sem razão. É preciso dizer que Lula foi, talvez, a maior liderança sindical do século 20 brasileiro. É passado, mas foi. E foi com base nessa trajetória, de 1975 até 1989, e depois até 2002, algo real, que ele se tornou uma liderança nacional.

 

O lulismo, e em particular seu personagem, está também atado de forma indissolúvel à figura do Lula – assim como o varguismo está atado a Vargas e o brizolismo à figura do Brizola. Mas o lulismo não tem herdeiros. É um limite entre tantos outros do Lula. É tão autocentrado e personalizado que não tem herdeiros. O varguismo ao menos teve o janguismo e o brizolismo como herdeiros, entre outros que não eram Vargas, mas tentaram remar de forma similar. O lulismo não tem herdeiro algum.

 

No entanto, como dito anteriormente, com a crise do mensalão, a primeira devassa que se abateu na alta cúpula do PT, mostrando a corrupção política e, como sabemos hoje, com grandes traços de corrupção privada e enriquecimento pessoal, foi uma crise profunda. E a crise de 2005 tem muitas similaridades com a atual. Não tenho dúvida de que o Lula esteve a alguns segundos de sua renúncia naquele fatídico ano. Não tenho nenhuma dúvida disso, embora não tenha elementos objetivos. É pura intuição. Não sei se os leitores lembram de uma entrevista que ele deu na França, a uma jovem jornalista, completamente perdido. Seus olhos rodopiavam mais que pião. Só girava, não sabia o que responder. Dizia-se alvo de traição de dentro do próprio PT.

 

Depois de passado aquele período, Lula ganhou as eleições em 2006 e começou seu segundo governo. Houve uma mudança importante, conforme escrevi na época: “Lula começava a migrar da classe trabalhadora mais organizada para os setores mais empobrecidos da sociedade brasileira, que vivenciam os trabalhos mais precarizados, até o completo não trabalho e desemprego, típicos das populações pobres dos rincões brasileiros, onde o programa Bolsa Família teve incidência”. Vamos lembrar que o Bolsa Família começou no segundo mandato. No primeiro mandato o programa era o Fome Zero e foi um fracasso completo.

 

O Bolsa veio com um novo desenho, atingiu milhões de famílias e criou um bolsão eleitoral, que no fundo era uma tragédia política. O Bolsa Família garantia a sobrevida de famílias paupérrimas. A miséria poderia ser eliminada através de reformas estruturais profundas, pra diminuir a miséria brasileira, a exemplo do que seriam reformas agrária e urbana profundas e mudança do padrão capitalista brasileiro... Nada. O governo passou longe disso e o Bolsa Família passou a ser um modus operandi perpetuador do governo Lula. Com o Bolsa, o PT teria uma base excedente garantidora das vitórias eleitorais.

 

Esse segundo substrato de apoio ao lulismo garantiu a perda de apoio do Lula em setores organizados da classe trabalhadora. Quando vimos que nas eleições o Aécio – essa figura grotesca da direita brasileira – teve mais votos no ABC do que a Dilma, mostrou-se o tamanho da perda de apoio ao lulismo nos estratos organizadas da classe trabalhadora brasileira – embora no ABC haja uma classe média expressiva, ainda é um cinturão industrial. E a perda também atingiu as periferias.

 

É difícil aquilatar qual o tamanho da perda nos rincões do pauperismo e da miséria, base da segunda vitória de Lula. Mas minha intuição é de que o Lula se fragilizou porque a população o entende como o criador de uma criatura que faliu. E quando a criatura vai à falência, como a Dilma, uma parte expressiva da conta vai para o criador, pois é corresponsável pela falência política do governo de sua criatura, a exemplo de Paulo Maluf com Celso Pitta em São Paulo. Aliás, outro erro grave de Lula é a indicação de uma pessoa completamente inexperiente, pois qualquer um com o mínimo de lucidez sabia que na crise a Dilma não daria conta – e sou obrigado a dizer de novo que meus artigos apontavam isso na época.

 

Por que a Dilma foi escolhida, e não outras lideranças do partido, com trajetória política mais sólida? Por causa do controle que Lula sempre teve no PT. Ninguém faz nada dentro do PT que não seja completamente dependente de Lula. Qualquer mínimo exercício de autonomia é tolhido por Lula, outro traço certamente nefasto do lulismo.

 

A intuição que tenho é que para Lula ganhar uma eleição vai ter de suar muito a camisa, vai ter que usar muito a voz, que já sabemos não ser mais a mesma, nem literal, nem metaforicamente. Vai ter de suar demais, porque o desgaste do PT é poli e multiclassista. Esse é o dado novo. Ele perdeu o apoio decisivo das classes ricas, dominantes e proprietárias. De forma devastadora, perdeu apoio das classes médias tradicionais – o mito de que o PT criou uma nova classe média não pode ser levado a sério. E perde apoio, também exponencial, nos vários estratos distintos, “compósitos e heterogêneos”, para lembrar nosso querido Florestan Fernandes, que fazem parte da nossa classe trabalhadora. E Lula sabe de tudo isso.

 

Só uma mudança muito profunda de situação, com expansão econômica em 2017, a apagar um pouco da tragédia atual, pode dar-lhe sobrevida. Hoje não tem, e se imaginar que tem sobrevida garantida estará errando mais uma vez. Sua sorte é que a oposição mais à direita – porque o PT tem um amplo leque de direita ao seu lado – não tem candidato forte. Aécio saiu fortalecido da última eleição, porque seu nome tornou-se mais nacional, mas o próprio PSDB não se entende, e o Alckmin não quer deixar que as Minas Gerais novamente carreguem a bandeja.

 

Já as esquerdas do PT não foram capazes de esboçar até hoje uma confluência política de tantos movimentos sociais e sindicais que pudessem gerar novas lideranças. De certo modo, já vemos novas lideranças aparecendo em movimentos. Na última eleição, Luciana Genro qualificou-se como jovem candidata de esquerda, corajosa e capaz de tratar temas contemporâneos com qualidade. Mas ainda não conseguimos criar confluência social e política. Há algumas lideranças como a de Luciana Genro – à medida que tem ligações fortes com PSOL e a juventude – ou o Boulos do MTST, em São Paulo, mas estamos aquém de ter uma alternativa. Portanto, o quadro para 2018 também é muito nebuloso.

 

A única coisa que me parece evidente é que imaginar o Lula vencedor das eleições em 2018 significa não ter ideia do nível de corrosão que o PT e todos os seus dirigentes vêm sofrendo, de modo devastador.

 

Correio da Cidadania: Já que você falou de Boulos e Genro, o que pensa das iniciativas de reação a esse quadro de retrocessos generalizados, tanto dentro quanto fora do escopo governista, a exemplo da Agenda Brasil (mais governista) e da conformação da Frente Povo sem Medo?

 

Ricardo Antunes: São manifestações distintas, embrionárias e num quadro defensivo. Quanto à primeira das citadas, pensar numa Frente de Esquerda com liderança do PT enseja a pergunta jocosa: “a Odebrecht vem junto?” É uma piada. Se não fosse verdadeiro, seria piada. Frente de Esquerda com o governo que está em seu quarto mandato e ainda não tomou nenhuma medida de esquerda, nenhuma, que minimamente contrariasse os interesses dominantes, é piada. De novo: não tomou nenhuma medida de esquerda. Não houve nada no sentido de falar “agora o governo é popular e o país não vai ser mais o mesmo”.

 

Não houve taxação de grandes fortunas; não houve reforma tributária progressiva, algo elementar, no sentido de tributar mais quem tem mais e destributar a classe trabalhadora; não houve nenhuma mudança da estrutura agrária, pelo contrário, o PT foi espetacular para o agronegócio. A burguesia agrária, devastadora, que não faz outra coisa se não aprofundar o uso de transgênicos e pesticidas, foi inteiramente beneficiada pelos governos do PT.

 

Portanto, uma “Frente Popular” ou “Frente de Esquerda” com o PT é provocação. Só se for uma Frente de Esquerda para carregar cadáver político. O PT tem de ser responsabilizado por suas atitudes. Claro que me refiro à ala dominante do partido e separo certos núcleos de base, as pessoas sérias, a militância que acreditava num partido diferente, como nos anos 80.

 

Mas o núcleo dominante do PT, que está em parte encarcerado, em parte processado, não tem mais como chegar no PSOL, no PSTU, nos movimentos, e dizer “vamos costurar, agora que estamos morrendo, uma Frente de Esquerda”. Digo com tristeza: a mais dura das medidas tomadas pelos governos do PT ao longo dos quatro mandatos foi destruir a esquerda brasileira. O PT de 2015 tem muito pouco a ver com o PT de 1980. A CUT perdeu, ao longo dos anos 2000, um conjunto enorme de tendências e militantes sociais que estavam lá desde sua formação, em 1983. Assim, uma frente ampla, de esquerda, sob liderança do PT, é uma provocação. Militantes do PT que têm compromisso com as esquerdas críticas precisam admitir que erraram, acreditaram num projeto que faliu e estão dispostos a recomeçar, a refundar um outro projeto de esquerda. Mas estamos longe disso.

 

Naturalmente, sou contrário ao impeachment. Até prova cabal de que a presidência esteve diretamente envolvida em corrupções, como se prova hoje em relação a Cunha (e como deveria se provar com as muitas “Lava Jatos” de governos de PSDB, DEM etc.). As pedaladas podem ser reprováveis, mas aí teríamos de “cassar” os mandatos de FHC e de todos os governos e prefeitos que fizeram e fazem o mesmo. Elas podem ser reprováveis, mas não podem valer somente com um governo.

 

Iniciativas como a “Frente Povo Sem Medo” e vários outros movimentos têm uma dificuldade interna. São muito importantes para dizer, por exemplo, que o Levy é, sim, o governo Dilma. Ele não foi imposto contra a vontade. Primeiro, ela tentou o Luiz Carlos Trabuco e por sorte deus nos livrou desse trambolho, como o próprio nome indicava. Aí veio o Levy. E as medidas do Levy são as medidas de Dilma. E do PT também, pois o Lula tem dito que é preciso apoiá-las.

 

Outro ponto: dizem que Levy não tem apoio do PT. Mas nunca vi uma nota pública do Lula desqualificando Levy. O Lula, pícaro que é, vai no MST e faz um discurso bravio. Depois vai na Dilma e fala “maneira, Dilma, entrega tudo ao PMDB, até a alma”. Importante é ver que a tragédia, que ruiu em 2015, foi toda arquitetada por Lula: uma frente de conciliação entre modos de ser incompatíveis e antagônicos. Mas Lula tem uma habilidade política espetacular, é um homem da conciliação. E a Dilma é da rejeição. O que ouvimos dizer é que a convivência diária com a Dilma é infernal. Ela é autoritária, autocrática, mandonista, impositiva. O oposto do Lula, uma figura “encantadora” para praticar, espetacularmente, a conciliação.

 

Ou seja, o PT foi fagocitado justamente por aquilo que criticou. O PT nasceu nos anos 80 criticando a política de conciliação de classes do velho PCB. O PT está sendo completamente fagocitado por uma política de conciliação na qual se entregou de corpo e alma para o demônio, o capital. Agora é vomitado e devolvido, porque não interessa mais. Agora o demônio quer de volta os velhos executores de sua política.

 

A questão dessas manifestações é: muito dificilmente se pode criticar o Levy e defender Dilma. Eu não concordo com isso. Criticar o Levy nos obriga a dizer que o governo Dilma é nefasto e antipopular. Mas é muito difícil dizê-lo e, ao mesmo tempo, também conforme penso, afirmar que não dá pra aceitar a derrubada do governo. Hoje seria com a Dilma, mas amanhã poderia ser contra Luciana Genro ou qualquer governo popular. É inaceitável. Não falo de golpe militar, mas parlamentar. Como todos sabem, em 1964, quando Jango saiu de Brasília a Porto Alegre para buscar forma de resistir ao golpe, o parlamento e os Cunhas de então legitimaram a “vacância do cargo” e o golpe militar.

 

Por isso que o atual parlamento está na sarjeta. É das instituições mais repudiadas e tenho impressão de ser mais rejeitada que a Dilma, com essa bancada BBB, mais o capital financeiro e tudo o mais que há por lá, salvo pequenos núcleos ligados às esquerdas, que são minoritários.

 

Correio da Cidadania: Estamos diante da maior taxa de desemprego dos últimos cinco anos. Já se pode fazer um balanço contundente a respeito das políticas de ajuste fiscal ditadas pelo ministro da Fazenda, Joaquim Levy, e suas graves consequências sociais em geral e para o mundo do trabalho em particular?

 

Ricardo Antunes: Existe a aparência de algo nefasto porque esse projeto é essencialmente nefasto. É o projeto do sistema financeiro, no sentido de ser momento de enxugar o Estado em tudo que diz respeito às suas atividades públicas e sociais. O que se gasta com a dívida pública e juros que se remuneram ao sistema financeiro é muito maior que todo o arrocho praticado pelo ajuste fiscal de 2015.

 

Bastaria outra política, de contenção de juros, antiespeculativa, com outro rumo, o que neste momento, com esse governo, seria impossível. Mas ninguém poderia esperar em outubro de 2014 uma guinada à esquerda do PT, depois de 12 anos servindo as direitas e aos capitais.

 

A Dilma não poderia fazer diferente, portanto. Podia continuar o que já vinha fazendo, o que daria em curto-circuito, ou jogar a conta em cima dos assalariados, como feito. O ajuste se resume ao mesmo que as classes dominantes sempre fizeram em tempos de crise: jogar a conta para a classe-que-vive- do-trabalho, que depende do salário pra sobreviver. E hoje não tem emprego, não tem seguro-desemprego e vivemos uma situação mais triste que anteriormente.

 

O mito que alguns chamaram apologeticamente de neodesenvolvimentismo ruiu. O PT nunca foi neodesenvolvimentista. Oscilava entre o neoliberalismo e o social-liberalismo, com cara social-liberal, e acumulação capitalista concentradora de renda. E a renda do Bolsa Família não era retirada do capital. Era uma redistribuição por dentro dos assalariados. Os capitais só engordaram e cresceram no Brasil da era Lula.

 

Evidentemente, o resultado é devastador para as classes trabalhadoras e o PT vai pagar o preço já nas eleições do que ano que vem. As respostas da classe trabalhadora serão duras contra o PT. E será triste se não formos capazes de ao menos germinar alternativas à esquerda, capazes de canalizar o descontentamento e não deixá-lo ir pra direita, desse modo tosco e bruto que vemos.

 

Que ao menos comecemos a reinventar a ideia de outro modo de vida, outro modo de produção, outra organização da política, que recuse essa institucionalidade. Um modelo mais democrático, mais popular, mais fundado na soberania do povo, com mais assembleias e plebiscitos. Enfim, o exercício de alguma coisa de novo tipo.

 

Correio da Cidadania: Diante do que você espera de uma continuidade do mandato de Dilma e suas consequências na vida política nacional, o que restará para a população, em termos de condições de vida e trabalho?

 

Ricardo Antunes: Vários movimentos. Deterioração das condições de vida, destroçamento do que resta da res publica, com a saúde e a educação públicas ficando mais precarizadas. O governo estadual do PSDB fecha escolas! Ou seja, a coisa passa por todas as esferas de governo. Quando Levy anunciou suas primeiras medidas, a pasta que mais sofreu cortes foi a Educação. Essa tendência vai aumentar.

 

Paralelamente, vamos ter aumento das revoltas e rebeliões. É evidente. A população das periferias adquiriu um novo patamar de consciência de seus direitos e das tragédias que permeiam o país. A Copa das Confederações (em junho de 2013) conjugou três movimentos: as rebeliões do mundo inteiro (Oriente Médio, EUA e Europa), a percepção da falência do mito do projeto lulista e, por fim, o fato de os megaeventos esportivos mostrarem que havia dinheiro pra estádio, pra Copa, pras transnacionais, mas não pra educação e saúde.

 

Não é difícil imaginar, novamente, uma situação de curto-circuito com esses três fios se interseccionando e reaparecendo um quadro favorável a rebeliões de massa. Se não caminhar em tal direção, teremos rebeliões episódicas e moleculares em todo o país, mais ou menos passivas. Greves também, coisa que o Brasil só viu crescer nos últimos anos. Em 2013 e 2014 o número se ampliou ainda mais, conforme dados do Dieese. E em 2015, quem está empregado teme o pior. Quem está no desemprego, não tem muito a perder.

 

Imagino uma nova era de rebeliões. Se mais ou menos moleculares, não sabemos. Tomara que essas manifestações de rua, greves, de caráter polissêmico, que marcam as lutas sociais do país, comecem a encontrar alguns polos de confluência que permitam um salto. Uma ideia que venho elaborando mais recentemente, uma triste constatação, é que as direitas, em 2015, politizaram as rebeliões de 2013 para seu campo, isto é, da contrarrevolução, do ódio ao comunista, ao socialista. Todos são comunistas, o PT é comunista, até os liberais! A direita vê comunista até no rabanete das feiras livres.

 

Correio da Cidadania: Conclui-se que a esquerda agora vê o preço de não ter acelerado sua reorganização nos últimos tempos?

 

Ricardo Antunes: As esquerdas dos movimentos sociais não conseguiram dar um salto, a partir das manifestações de massa e populares, para um patamar mais ofensivo. Tomara que saibamos avançar. O caminho, que em geral nossas esquerdas têm dificuldade de encarar, é não ficar focado na próxima eleição. Não adianta pensar nas eleições de 2016, 2018! Precisamos de um campo social e político organizado pela base, em manifestações cotidianas, decisões plebiscitárias, avanço de ações coletivas, sejam sindicais ou sociais. É necessária uma articulação mais generosa dessa enorme multiplicidade de movimentos sociais e das esquerdas, onde isoladamente cada um de nós somos poucos. Mas juntos, não!

 

Outro ponto é que trabalhamos muito com a dicotomia movimentos sociais x partidos. Um ou outro. Não estou de acordo que são dicotômicos. Os movimentos são muito importantes por estarem atados à vida cotidiana. A questão da terra é o sentido da vida para o MST, o assalariado rural, a camponesa. Terra, alimentação, casa e vida nova. Os sem teto sabem que na arquitetura do “planeta favela” os ricos vivem fechados em guetos com segurança à lá Robocop e fazem as periferias serem expulsas para lugares ainda mais periféricos. O estádio Itaquerão é exemplo perfeito: a região se valorizou e teve gente que foi expulsa para a periferia da periferia.

 

Os movimentos, portanto, têm muita colação com a vida cotidiana, mas têm mais dificuldade, até pelos seus métodos e necessidades, de terem projetos mais longevos, de pensar no amanhã e também no depois de amanhã e combinar com a atualidade. Falo isso deixando de lado as excepcionais exceções, trata-se mais de uma síntese. Os partidos de esquerda ao menos reconhecem que precisam adentrar o século 21 pensando o novo. Refiro fundamentalmente a PSOL, PSTU, PCB e pequenos grupamentos que procuram se inserir no mundo e na vida real, e em geral têm um olhar mais longevo, a respeito de que sociedade queremos e como caminhar. Mas têm uma grande dificuldade de se vincular às lutas cotidianas, que são exatamente a força dos movimentos sociais. A força de uns é o limite de outros e vice-versa.

 

Estou fazendo uma síntese, repito. Não sou da ideia de que “os partidos acabaram, viva os movimentos sociais”! Os movimentos podem ter muita vinculação com a vida concreta, mas é difícil um movimento ter a longevidade, por exemplo, do MST. Este, é um movimento forte porque tem dinâmica e vida de base, não só de luta cotidiana. As mulheres do MST podem discutir ações e atitudes, assim como os assentados, pois têm autonomia na base que lhes permite avançar um pouco. E creio que o mesmo possa se dizer, em certa medida, no MTST. Mas eles também têm dificuldades.

 

Muitos movimentos sociais nascem e desaparecem. Os partidos ao menos têm se mostrado mais longevos, porém, perdem capilaridade com a vida cotidiana, de tal modo que o salto positivo no século 21 seria a aproximação desses dois polos orgânicos do mundo do trabalho. A energia que ainda tenho invisto nessa direção, que talvez nos permita sair de um momento, para lembrar Florestan Fernandes, de contrarrevolução. Das rebeliões de 2013 às “contrarrebeliões”. Do flagelo dos imigrantes na Europa à construção de muros pelo Estado fascista húngaro, para que não atravessem o continente. Assim como as, até agora, balas de chumbinho nos haitianos em São Paulo o demonstram.

 

 

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Gabriel Brito é jornalista do Correio da Cidadania.

 

 

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