Correio da Cidadania

Guilherme Boulos: “Se passar pelo impeachment, governo poderá ter de se recompor com o pântano parlamentar”

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O Brasil vive dias conturbados e a sociedade disputa nas ruas, nos veículos de comunicação e em âmbito institucional as ideias que permeiam o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, que pode ir à votação no Congresso Nacional no domingo, 17 de abril. Para discutir a complicada conjuntura conversamos com Guilherme Boulos, importante liderança do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e da Frente Povo Sem Medo, destacado interlocutor de uma esquerda que resiste ao impeachment ao mesmo tempo em que se coloca crítica ao governo Dilma.

 

Para Boulos o impeachment, nas bases políticas e jurídicas em que se apoia, traz características de “golpe branco”, uma vez que as acusações não estão devidamente fundamentadas, além de conduzidas por figuras sem a relativa idoneidade. E avalia que, mesmo permanecendo no poder, dificilmente o governo Dilma fará a tão sonhada – pelos movimentos sociais e setores populares – guinada à esquerda. “É provável que Lula e Dilma deem alguns gestos em relação a programas sociais e ao crédito popular. Mas ainda acho que, se passar pelo impeachment, a iniciativa do governo será mais uma vez recompor governabilidade com o pântano parlamentar e tentar ‘pacificar’ as ruas”, analisa.

 

Já descrente da política de conciliação de classes, Boulos destaca que o MTST e o movimento popular devem lutar não apenas contra um impeachment que traria instabilidade política em um momento delicado, mas fundamentalmente pela defesa dos poucos avanços garantidos pela Constituição de 1988. “Essa democracia não é nossa. É a democracia do 1%, do genocídio da juventude negra nas periferias e de tudo o que conhecemos. Mas o que ela tem de progressivo e foi conquistado pela luta social - em especial um espaço mínimo para o debate e alguns freios ao linchamento – está ameaçado por essa ofensiva. É preciso barrar isso”.

 

Em meio a avaliações do atual processo, Guilherme Boulos rechaça quaisquer convocatórias de eleições gerais, mas reforça as críticas ao que um dia foi uma espécie de capital político do PT: o interesse popular. “Essa é a vergonha do governo Dilma: corre o risco de cair não por ter enfrentado os interesses dominantes, mas por não ter sido capaz de levar a cabo as políticas da classe dominante”, criticou.

 

Antes de comentar o relançamento do Minha Casa Minha Vida, endossa a constatação de algumas outras referências políticas e intelectuais: “O sistema político está absolutamente falido e talvez essa seja uma das grandes lições da crise. É preciso radicalizar a democracia brasileira. E temos de retomar um ciclo de mobilizações no Brasil para que possamos consolidar uma nova saída pela esquerda”, defendeu.

 

A entrevista completa com Guilherme Boulos pode ser lida a seguir.

 

Correio da Cidadania: Que análise pode ser feita sobre todo o turbilhão político do mês de março, com manifestações de grande relevo tanto à direita quanto à esquerda?


Guilherme Boulos: A conjuntura que temos hoje no Brasil é extremamente insólita. O começo do ano foi marcado por uma guinada ainda mais à direita do governo Dilma. Houve uma radicalização de pautas da direita com o anúncio da reforma da previdência, da reforma fiscal, do acordo em relação ao pré-sal e tudo reforçou a orientação do governo, absolutamente em prol do mercado e sem sinalizações populares. Mas, exatamente no mesmo momento em que o governo dá uma guinada ainda maior à direita, a própria direita intensifica o cerco político ao governo.

 

Temos um governo cedendo suas políticas à direita e uma direita querendo derrubá-lo. Isso caracteriza uma situação muito difícil, que coloca a esquerda brasileira em uma encruzilhada. O cenário se agravou depois das manifestações do dia 13 de março e da condução coercitiva do Lula, quando a direita também ultrapassou o sinal vermelho e foi às ruas de forma odiosa, agressiva e intimidadora. Ao mesmo tempo, há uma atuação do judiciário que desrespeita garantias constitucionais. O processo de impeachment conduzido pelo deputado Eduardo Cunha ganhou uma velocidade maior e isso incendiou ainda mais a conjuntura brasileira nas últimas semanas.

 

O que talvez não estava no script para os setores que estão na ofensiva do impeachment é que haveria um campo de resistência nas ruas, inclusive muito além da militância organizada. Um campo – é importante dizer – que envolve setores críticos ao governo Dilma e não aceita suas políticas.

 

As mobilizações que tivemos nos dias 18, 24 e, principalmente, 31 de março expressaram uma força potente de rua, vinda de setores organizados e também de setores progressistas da sociedade, que não estão necessariamente ligados ao movimento social, mas também ficaram assustados com a dimensão da ofensiva direitista e o ambiente de fascismo e intolerância que veio junto.

 

Correio da Cidadania: O que pensa da postura do PMDB, nesse bate e assopra a respeito de sair ou ficar no governo? Especificamente Michel Temer, como o enxerga em todo o imbróglio político?


Guilherme Boulos: Por incrível que pareça, até a saída do PMDB todos davam o impeachment como certo. Após a saída do PMDB o cenário ficou mais duvidoso. Tanto porque o governo passou a distribuir a outros partidos fisiológicos cargos que antes eram do PMDB como o Michel Temer ficou muito exposto e foi desmascarado. Se havia alguma dúvida de que o Temer estava envolvido nas conspirações mais ordinárias para chegar ao poder, via atalho golpista, já foi dissipada.

 

O vice Michel Temer é o grande articulador do impeachment e com a ruptura do PMDB isso se tornou um fato mais do que consumado. Ficou claro para o público. E é escandaloso: Temer consta em qualquer pesquisa com 1% de intenções de voto. Ele não teria legitimidade alguma como presidente da República.

 

Correio da Cidadania: Como avalia a reinserção do presidente Lula no cenário político, com sua nomeação para a Casa Civil, bem como esse novo movimento do governo, ao lado de decretos favoráveis à reforma agrária e de uma repactuação de cargos que contemplaria PP e PR?


Guilherme Boulos: Alguns falam em uma guinada à esquerda do governo. Não vejo e acho que ninguém na esquerda brasileira deve contar com isso. Não a fizeram em 13 anos – inclusive quando tinham muito mais força, quase 90% de popularidade –, não creio que será agora. É claro que ao deixarem o governo e Lula emparedados e com poucas saídas, poderia se gerar uma resposta.

 

É provável que Lula e Dilma façam alguns gestos em relação a programas sociais e ao crédito popular. Mas ainda acho que, se passar pelo impeachment, a iniciativa do governo será mais uma vez recompor governabilidade com o pântano parlamentar e tentar "pacificar" as ruas. Nosso desafio é atuar para que os amplos setores que foram às ruas na resistência ao golpismo - setores muito além do petismo e do governismo - permaneçam nas ruas. Só haverá saída à esquerda se for imposta por um caldo de mobilização popular.

 

Correio da Cidadania: Qual sua análise da Operação Lava Jato? Acredita que ela contribui para o melhoramento das instituições do país?


Guilherme Boulos: Num sentido, a Operação Lava Jato mostra o que a esquerda brasileira diz há 20 anos: a promiscuidade dos interesses públicos com o capital privado, operada pelo sistema de financiamento das campanhas eleitorais. Acho positivo colocar setores da intocável burguesia brasileira no banco dos réus.

 

Mas deste anseio legítimo de combate à corrupção a Lava Jato transformou-se em outra coisa. Sérgio Moro tem uma seletividade escandalosa em relação ao PT. Faz crer que a corrupção no Brasil começou com o petismo e, essencialmente, preserva o PSDB. Além disso, se utiliza de procedimentos perigosos, tais como conduções coercitivas sem prévia intimação, abuso de prisões preventivas e critérios obscuros para delações premiadas.

 

A Lava Jato afundou nesses vícios. Devemos defender sem ambiguidades o enfrentamento à corrupção, com investigação e punição dos corruptos. Mas não pode ser na base do linchamento e da escolha de alvos.

 

Correio da Cidadania: O que pensa da proposta de eleições gerais, que ganhou força até mesmo entre figuras de peso da política mainstream, como Renan Calheiros?


Guilherme Boulos: Não me parece que a saída para a crise sejam novas eleições. A esquerda já defendeu novas eleições em conjunturas com ascensão de mobilização popular, com lutas por ampliação de direitos que poderiam se expressar institucionalmente.

 

Neste momento no Brasil, até aqui, a força em maior ascensão, que ainda está dando o tom do debate, é a direita. Não acho que um Congresso eleito daqui a 90 dias seja melhor que o atual, que já é uma desgraça. Num cenário de maior mobilização dos setores populares, a proposta seria mais razoável. É preciso dedicar nossas forças para construir um novo cenário.

 

Correio da Cidadania: Como o MTST e o movimento popular de modo mais geral devem se posicionar frente ao atual momento de instabilidade política e institucional?


Guilherme Boulos: Nesse momento, entendo que há três desafios principais colocados para a esquerda brasileira e os movimentos populares.

 

O primeiro deles é resistir à ofensiva golpista que passou a atuar não apenas na linha de derrubada do governo, mas a ameaçar garantias constitucionais e o ambiente democrático mínimo. Traz junto um clima de macarthismo, intolerância e tentativa de impor uma caça às bruxas desmedida. Vimos episódios como as agressões na Paulista aos de vermelho e vários casos que mostram que soltaram os “pitbulls”. Como dizia Bertold Brecht, "a cadela do fascismo está sempre no cio".

 

Veja, é importante pontuar que essa democracia não é nossa. É a democracia do 1%, do genocídio à juventude negra nas periferias e de tudo o que conhecemos. Mas o que ela tem de progressivo e foi conquistado pela luta social – em especial um espaço mínimo para o debate e alguns freios ao linchamento – estão ameaçados por tal ofensiva. É preciso barrar isso.

 

Se há setores da esquerda que acreditam poder surfar na onda antipetista da direita, creio que vão se afogar e não conseguirão nada a partir daí. É bem verdade que os governos petistas não são de esquerda. Mas o antipetismo é capitaneado pela direita.

 

O segundo desafio é o de barrar ataques a direitos sociais e retrocessos, venham de onde vierem – e nesse momento especialmente por parte do Governo Federal, que implementou uma pauta de ataques a direitos sociais.

 

O governo Dilma pautou a reforma da previdência, por exemplo. Não sabemos se terá condições de levá-la adiante. E o mais lamentável: se não levar adiante é porque não teve condições políticas, e não porque não quisesse. Essa é a vergonha do governo Dilma: corre o risco de cair não por ter enfrentado os interesses dominantes, mas por não ter sido capaz de levar a cabo as políticas da classe dominante. É preciso enfrentar, não é possível que a esquerda simplesmente ignore as políticas do governo que assumiu uma pauta antipopular. Portanto, ao mesmo tempo em que enfrenta o golpismo, e tudo o que vem junto, é preciso enfrentar as políticas desastrosas do governo.

 

Por fim, o terceiro desafio é apontar para a reconstrução de um campo de esquerda no Brasil. Há um ciclo que se esgotou. Um ciclo baseado na estratégia de conciliação, em um programa no qual se construíam alianças com as forças conservadoras: este ciclo está esgotado na minha avaliação. É preciso reconstruir o campo da esquerda brasileira baseado em um programa de reformas populares estruturais, enfrentamentos aos privilégios da burguesia brasileira e internacional e numa revolução do sistema político brasileiro.

 

O sistema político está absolutamente falido e essa talvez seja uma das grandes lições da crise. É preciso radicalizar a democracia brasileira. E para isso temos de retomar um ciclo de mobilizações. Será necessário estimular uma ascensão da luta de massas no Brasil para que possamos consolidar uma nova saída pela esquerda.

 

Correio da Cidadania: Como encarou o pedido de prisão contra a sua pessoa feito pelo deputado federal José Carlos Aleluia (DEM)? Como isso poderia ilustrar a “cadela fascista no cio”?


Guilherme Boulos: Não só o Democratas, como também o PSDB entrou com um pedido semelhante. E com acusações insustentáveis. Alegaram incitação ao crime e formação de milícia. O fato é que esse tipo de iniciativa na atual conjuntura não é isolado.

 

Se pegarmos as últimas semanas, vamos ver episódios de gente de vermelho sendo agredida em várias partes do país. Gente que não concordava com as pautas que eles defendiam nas ruas sendo intimidadas e agredidas fisicamente. Houve um episódio com o Dom Odilo, um homem conservador da Igreja Católica, sendo agredido no meio de uma missa ao passo que era chamado de comunista. Sobrou também para o Juca Kfouri, que teve o desprazer de lidar com um bando indo para sua casa ofendê-lo e agredi-lo. Também o ministro do Supremo, Teori Zavascki, insuspeito de ser um magistrado bolivariano ou coisa do tipo, tendo a casa cercada porque levou o processo do Lula para o STF.

 

A direita está em polvorosa. É uma ofensiva perigosa. O mais curioso é que eles estão incitando todo esse clima de intolerância e violência e ainda fazem acusações de incitações à violência e ao crime aos outros.

 

O que eu disse (e que motivou o pedido de indiciamento) é que se seguirem com a escalada golpista e, mais do que isso, com um programa agressivo de retirada de direitos sociais – e a presidenta Dilma lamentavelmente já começou com esse programa – o Brasil vai ser incendiado, vai ter greve, ocupação e mobilização. É só ver o programa do PMDB (“Ponte para o Futuro”), as entrevistas do Moreira Franco, íntimo do Temer, falando em acabar com os programas sociais e fazer reforma trabalhista e todo tipo de ataques aos direitos sociais. O que eu disse não é nenhuma novidade. Basta conhecer a história da resistência popular e da luta social no país para saber que não será do jeito que eles querem.

 

Portanto, não se trata de uma ameaça, mas da compreensão de que se vierem arrancar aquilo que os trabalhadores brasileiros conquistaram ao longo de muitas décadas não o será de mão beijada.

 

Correio da Cidadania: Quanto à pauta de interesse do movimento do qual você faz parte, quais perspectivas enxerga da retomada do programa Minha Casa Minha Vida?


Guilherme Boulos: O lançamento do Minha Casa Minha Vida 3 ocorreu no final do último mês de março com as portarias e com o empenho de recursos orçamentários para as obras. Saiu agora, depois de um ano e meio de atraso e após muita luta e pressão do MTST e outros movimentos de moradia. Houve desde o final de 2014 uma pressão intensa de rua da nossa parte, com várias mobilizações; em Brasília, nas principais capitais, travamentos de rodovias e jornadas da resistência urbana para assegurar o lançamento do programa.

 

Incorporaram-se algumas das pautas do movimento, mas o programa mantém suas limitações estruturais, tão criticadas e combatidas em nossas mobilizações. Além disso, é preciso saber os efeitos práticos desse lançamento. Foi dito que o recurso empenhado será liberado imediatamente para a contratação de obras. Mas é preciso ver para crer...

 

Do ponto de vista formal, tivemos uma vitória muito importante na última semana com o lançamento. Ainda pode ser uma vitória de Pirro, mas só nas próximas semanas vamos saber se o dinheiro será realmente liberado para a contratação dos empreendimentos.

 

 

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Raphael Sanz é jornalista do Correio da Cidadania.

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