Classes e luta de classes: desafios atuais

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Wladimir Pomar
03/07/2014

 

 

No Brasil, a luta de classes está assumindo novas características e introduzindo novos desafios. Começando pela burguesia, ela se reorganiza no sentido de liquidar a experiência de governos petistas, mesmo de coalizão. Uma parte dela, que até a pouco parecia satisfeita com a política de crescimento via consumo e com as concessões às grandes corporações, passou a criticar o que chama de linha estatizante do governo. Acusa a presidenta de desconstruir a Carta aos Brasileiros, assinada por Lula.

 

Essa reorganização é apoiada sem disfarces pelo FMI e por revistas estrangeiras que expressam o pensamento das grandes corporações transnacionais, como The Economist, Financial Times e Der Spiegel. E tem como alvos, além da linha estatizante, várias suposições, com destaque para o fracasso e o descrédito nacional e internacional da política econômica do PT, as tendências de inflação e recessão, o crescimento da corrupção, e a ausência efetiva de políticas para superar o caos nos transportes, na saúde e na educação.


Temos, pois, quanto à burguesia, uma situação idêntica à que ocorreu entre 1973 e final dos anos 1990. Diante da crise do petróleo, das crises da dívida externa, da estagnação dos anos 1980, e da devastação neoliberal dos anos 1990, que destruíram grande parte da indústria e da infraestrutura do país, essa classe social se envolveu em intensos processos de divisões e aglutinações.

 

Primeiro, uma parte separou-se dos setores militares dominantes e, em 1974, mandou um recado duro à ditadura, ajudando a derrotá-la nas eleições daquele ano. Em 1984, dividiu o partido representativo da ditadura, formou o PFL e uniu-se à maioria do PMDB para manter a eleição indireta, apesar da campanha das Diretas Já! Com isso, sua maioria mostrou que havia se reorganizado como classe, tanto para dar fim aos governos militares, quanto para instituir uma democracia nos limites que lhe convinham.

 

Ela aceitou a convocação de uma Constituinte, a consagração das eleições presidenciais diretas, e a inclusão na Constituição de artigos que alguns caracterizam como um sistema econômico, social e político de bem-estar social. Mas jogou pesado para que o congresso eleito fosse a própria constituinte, de modo que seus representantes políticos legislassem em causa própria e pudessem transformar os artigos democratizantes da nova Constituição em leis mortas por falta de regulamentação.

 

Nas primeiras eleições diretas, em 1989, a burguesia continuou unificada para derrotar Lula e o PT, numa demonstração de que havia embarcado nas reformas neoliberais do Consenso de Washington. E influenciou setores populares e de esquerda quanto à modernidade e ao caráter progressista de tais reformas, conseguindo fazer com que parte dos parlamentares de esquerda se unisse aos socialdemocratas e conservadores para aprová-las. Com isso, conseguiu repetir, em 1994 e 1998, o estelionato eleitoral de 1989.

 

Em 2002, a rigor, não foi a luta de massas, nem o empenho da oposição de esquerda, que esgotaram o ciclo neoliberal. Foi a evidente e retumbante devastação causada pelo governo FHC, culminando na vergonhosa crise de 1998-99, que cumpriu o papel de empurrar para a oposição a maior parte do eleitorado pobre e médio. Grande parte da burguesia, sem projeto de saída da crise, ou se aliava à esquerda, sob a hegemonia do PT, ou corria o risco de ficar de fora do governo. Preferiu aliar-se e entregar aos trabalhadores a tarefa de solucionar a crise que havia criado.

 

Desde 1999, a candidatura Lula era a única que tinha real viabilidade de vitória. Podia ser uma candidatura de confronto, tanto contra a burguesia nacional, quanto contra a burguesia estrangeira, não aceitando aliar-se a nenhuma delas. Ou podia ser uma candidatura de paz social, que apenas deixasse isolados os setores burgueses mais conservadores e reacionários. Esta foi a escolha. Correta, porque o confronto seria imprevisível por falta de uma massiva mobilização social. Mas as concessões da Carta aos Brasileiros foram exageradas, podendo ser debitadas a uma leitura incorreta da correlação de forças e das chantagens do sistema financeiro.

 

As eleições num ambiente de relativa paz social, conformando uma aliança ampla contra os setores mais conservadores e reacionários da burguesia, repetiram-se em 2006 e 2010. A maior parte da burguesia também era beneficiária da política que, paradoxalmente, combinava altas taxas de juros, moeda valorizada, grandes saldos comerciais, controle da inflação, aumentos salariais, transferências de renda para os setores mais pobres da população, inércia desindustrializante e crescimento da economia.

 

Esse quadro foi subvertido a partir de 2010. A crise econômica, iniciada nos Estados Unidos, se espraiou pela Europa, atingindo os países em desenvolvimento de diferentes maneiras. A combinação paradoxal dos governos Lula se tornou impraticável. Para manter o crescimento tornou-se necessário reduzir os juros, desvalorizar a moeda, melhorar as condições de saldos comerciais, controlar a inflação, dar aumentos salariais, fazer políticas de transferência de renda para os pobres e miseráveis, adotar  políticas industrializantes e estimular o crescimento da economia. O que significava dar mais instrumentos de interferência do Estado na economia.

 

As tentativas de adoção dessas políticas encontraram, porém, fortes resistências da burguesia fora e dentro do governo. Além disso, ao ressurgir fortemente, mas de forma pouco organizada e com bandeiras ainda difusas, a luta de classes massiva esfumou a paz social. O governo e o PT viram-se obrigados a responder positivamente aos reclamos sociais. E a burguesia viu-se impelida a se confrontar contra setores da pequena-burguesia proprietária, contra a classe dos trabalhadores assalariados de médios e baixos salários, e contra setores da classe excluída, ralé, ou subproletária, aqui incluindo raivosos de diferentes tipos.

 

Classes e setores de classes subordinados passaram a exigir maior participação do Estado na solução de seus problemas e em seu confronto contra a burguesia. E configurou-se um ambiente e uma perspectiva social e política de que as grandes massas populares retornarão às ruas mais cedo ou mais tarde. O que tornou as demandas exigidas por essas massas populares, consciente ou inconscientemente, o centro da disputa ideológica e política que terá, como primeiro round, as eleições de 2014.

 

Diante disso, a grande burguesia e alguns setores médios, assim  como setores da pequena-burguesia, radicalizaram sua oposição ao PT e ao governo. Eles se esforçam por transformar as reivindicações populares em reivindicações contra o governo, entortando o pepino antes que ele cresça. Culpam o Estado e sua interferência na economia pela demora no atendimento das demandas populares. Difundem que as políticas de transferência de renda criam vagabundos e desclassificados. E responsabilizam a suposta tibieza das leis e do governo pelos quebra-quebras e pelo aumento da violência.

 

Numa situação como essa, a estratégia de conciliação e de políticas progressistas e sociais, sem reformas estruturais, não repetirá o sucesso de 2006 e 2010. Reformas estruturais, mesmo de conteúdo burguês, confrontam o domínio das corporações estrangeiras e nacionais sobre a economia nacional. A democratização da propriedade industrial, comercial, agrícola, dos serviços, da mídia e do solo rompe aquele domínio. A progressividade nos impostos retira um grande naco dos lucros auferidos por todas as frações burguesas. Menores jornadas de trabalho e/ou aumentos de salários diminuem a taxa de mais-valia, ou a taxa de exploração extraída dos trabalhadores, base do lucro capitalista.

 

Não há forma de universalizar e melhorar os serviços públicos se eles continuarem serviços privados. A burguesia pode perder muito de sua influência sobre o parlamento se o financiamento privado das campanhas eleitorais for proibido. E a corrupção pode ser drasticamente reduzida se forem instituídos mecanismos democráticos de controle social sobre os aparatos do Estado. Nessas condições, o que está em disputa, para a burguesia, é a manutenção de sua influência ideológica e política, sua hegemonia, sobre as grandes massas populares.

 

Bem vistas as coisas, temos uma situação bizarra. Por um lado, o governo dirigido pelo PT não foi capaz de redirecionar o desenvolvimento econômico e social do velho modelo capitalista, nem mesmo para um modelo socialdemocrata de bem-estar. Apesar da melhoria da capacidade de consumo de grande parte dos trabalhadores assalariados e dos camponeses pobres, o modelo em pauta continuou sendo o velho modelo, pelo simples fato de a economia brasileira ser monopolizada por corporações capitalistas, nacionais e estrangeiras.

 

Por outro lado, apesar de o governo haver introduzido mudanças que afetaram apenas levemente os interesses do conjunto da burguesia, esta se armou de argumentos ideológicos e políticos para evitar qualquer mudança mais efetiva. Lançou-se à luta de classes tendo como alvo o governo Dilma, embora mascarando tal luta como algo contra o aumento  das atribuições do Estado.

 

Na prática, o que está no centro da disputa, para a burguesia, é evitar qualquer reforma democratizante. Ela se reaglutinou em torno de seus representantes neoliberais, que não conseguem esconder que as mudanças que prometem estão contidas na velha receita de desemprego, compressão salarial, privatizações, juros altos e moeda valorizada. Deslindar essa nova aglutinação da burguesia e o que realmente está em jogo para ela talvez seja o principal desafio de todas as matizes da esquerda.

 

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Wladimir Pomar é escritor e analista político.

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