Classes e luta de classes: as realidades do capital

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Wladimir Pomar
02/12/2013

 

 

Sociedade individualizada, sociedade líquida, classes de serviço, sociedades sem classe, multidões, classes globais, entre outros termos, estariam sendo utilizados pela literatura especializada nos estudos sobre a transformação recente nas estruturas sociais no centro do capitalismo mundial. Nestes termos, se constataria o crescente paradoxo existente entre as possibilidades de uma nova estrutura social frente ao desenvolvimento da produção com menor participação do setor industrial e a aplicação dos conceitos tradicionais de classes sociais.

 

Porém, o que realmente mudou nas sociedades de economias capitalistas avançadas? Mudou o sistema de propriedade privada? A desindustrialização e a predominância relativa do setor de serviços naquelas sociedades modificaram a relação assalariada entre os proprietários privados dos meios de circulação e distribuição (nos quais se enquadram os serviços, ou a maior parte deles) e os proprietários de força de trabalho?

 

Em geral, aquela literatura especializada tem fugido de responder a essas perguntas extremamente simples, da mesma forma que enfrenta grande dificuldade para analisar as diferentes realidades do capitalismo atual, desigual, descombinado, apesar das aparências, e extremamente conflituoso, apesar das promessas de paz.

 

Nos países capitalistas desenvolvidos da atualidade, a propriedade privada dos meios de produção, circulação e distribuição se tornou ainda mais centralizada nas mãos de um pequeno número de grandes magnatas. Estima-se que 0,7% de sua população se apropriem de mais de 40% da renda mundial gerada a cada ano. Como já frisamos em textos anteriores, seus setores industriais foram, ou continuam sendo, deslocados para países e regiões agrárias ou agrário-industriais que oferecem mão-de-obra mais barata. Isto é, que oferecem a possibilidade de extrair maiores taxas de mais-valia absoluta, compensando a queda da lucratividade nos países desenvolvidos.

 

Porém, apesar da expansão para países atrasados, permitindo aumentar a acumulação de capitais excedentes, isto não soluciona o problema da lucratividade. Ao contrário. Aquela acumulação a agrava ainda mais, obrigando as grandes corporações transnacionais dos países capitalistas avançados não só a continuarem exportando capitais, mas também a transformarem grande quantidade desses capitais em instrumentos de especulação financeira, produzindo dinheiro fictício a partir de dinheiro acumulado. Nessas condições, as crises do capital tendem a se tornar ainda mais destrutivas.

 

A provável transformação daquelas economias em sociedades de serviços, supostamente capazes de empregar os trabalhadores excedentes das indústrias deslocadas, apenas procura mascarar a verdade de que o desenvolvimento científico e tecnológico no capitalismo tende a utilizar cada vez mais trabalho morto ao invés de trabalho vivo. Portanto, como Marx previra, tende a criar uma crescente contradição entre tal desenvolvimento e a capacidade de emprego. Tende a desempregar massas crescentes de forças de trabalho, aumentando de forma absurda aquilo que a literatura antiga chamava de exército industrial de reserva. Este deixa de ser tal exército para se conformar como uma crescente massa humana excedente, excluída do mercado e em confronto com a arrogante e desumana riqueza acumulada por uma minoria capitalista.

 

Em tais condições, a fração industrial da classe dos trabalhadores assalariados dos países capitalistas desenvolvidos tende a ser crescentemente reduzida. Momentaneamente, as demais frações dessa classe (agrícola, comercial e de serviços) parecem aumentar, seja de forma relativa, seja de forma absoluta. No entanto, essas frações também tendem a sofrer o mesmo destino da fração industrial, pelo simples motivo de que a agricultura, o comércio e os serviços tendem cada vez mais a serem modernizados pelas ciências e tecnologias, aumentando a utilização do trabalho morto em detrimento do trabalho vivo. A mecanização da colheita da cana no Brasil é um dos exemplos desse processo.

Em termos sociais, nada disso modificou qualitativamente as relações de produção existentes nos países capitalistas avançados desde o seu nascimento.

 

A burguesia apenas se tornou mais reduzida, no sentido inverso de sua acumulação de capitais, monstruosa e indecentemente elevada. Ela continua sendo proprietária privada dos meios de produção, circulação e distribuição, mesmo daqueles que foram transferidos para o exterior. Sua divisão interna entre frações industriais, agrícolas, financeiras, comerciais e de serviços vem sendo superada pela centralização do capital em grandes corporações, sob o comando da fração financeira, diante dos quais os antigos trustes e cartéis parecem crianças de colo. E ela continua comprando forças de trabalho no mercado, através do pagamento em dinheiro, independentemente de esse trabalho ser full time, part time, terceirizado, precário, ou outras formas que a criatividade capitalista possa promover.

 

Até mesmo o trabalho escravo ou semiescravo, praticado por médios e pequenos capitalistas nos países desenvolvidos e em desenvolvimento, se vê obrigado a manter formalmente a relação salarial. O que, por outro lado, aponta para a expropriação crescente de pequenos, médios e mesmo grandes capitalistas, especialmente durante as crises do sistema.

 

Portanto, parte da burguesia, e também daquilo que classicamente se chamava pequena-burguesia (proprietários privados de pouco capital constante e pouco capital variável, trabalhando sozinhos, e/ou com a família e/ou com poucos assalariados) está sendo transformada em parte da classe dos trabalhadores assalariados, ou em parte da população excedente excluída do mercado.

 

É este tipo excluído de população que mais tem crescido nos países capitalistas desenvolvidos, introduzindo mudanças no antigo exército industrial de reserva. No entanto, isso não fez surgir qualquer outra relação econômica para a sua sobrevivência. Parte dessa população vive de biscates, que não é senão uma forma degradada de venda da força de trabalho em troca de dinheiro. Outra parte vive da mendicância, também intermediada pelo dinheiro. E outros vivem de expedientes extraeconômicos e extrassociais, incluindo prostituição, furto, roubo, tráfico e que tais, num processo extremamente fracionado e violento.

 

Nos países capitalistas em desenvolvimento e nos países capitalistas atrasados, ao contrário dos países desenvolvidos, ocorreram dois processos opostos durante o período inicial da globalização capitalista e da aplicação das políticas neoliberais. Os países cujas burguesias e Estados aceitaram as receitas do Consenso de Washington ingressaram numa desindustrialização perversa. Isto é, foram desindustrializados não por sua indústria haver alcançado alto nível de desenvolvimento científico e tecnológico, mas pelo fato de as políticas dos Estados e das grandes corporações transnacionais terem devastado seus parques industriais.

 

Em virtude disso, por exemplo, no Brasil parte da burguesia e da pequena-burguesia foi expropriada. Paralelamente, houve uma intensa redução da fração industrial da classe trabalhadora assalariada. E ocorreu uma redução menor das frações agrícola, comercial e de serviços, fundamentalmente porque esses setores serviam, em grande parte, às multinacionais, do país e do exterior.

 

Ao mesmo tempo se conformou uma enorme população excedente sem acesso ao mercado de trabalho, num processo que perdurou por mais de 20 anos. Influenciados pela aparente semelhança com o processo de desindustrialização dos países capitalistas desenvolvidos, muitos estudiosos caíram na esparrela de que a desindustrialização brasileira tinha a mesma natureza. Este talvez seja um dos motivos pelos quais a necessária reindustrialização brasileira parece se bater contra obstáculos teóricos e práticos intransponíveis.

 

Em sentido contrário, numa série de outros países pouco desenvolvidos, seus Estados decidiram impor condicionalidades à exportação dos capitais excedentes do capitalismo desenvolvido. Através disso, promoveram a industrialização e outros processos de desenvolvimento econômico e social. As políticas desses países, na contramão das políticas neoliberais aplicadas na América Latina e em outras regiões, levaram ao crescimento tanto da burguesia e da pequena-burguesia, quanto das diversas frações da classe dos trabalhadores assalariados, em especial da sua fração industrial. Calcula-se que esta fração, conhecida no passado como classe operária, esteja chegando próxima de um bilhão em todo o mundo, número muito superior à soma da classe operária da Europa e dos Estados Unidos no período áureo de sua existência.

 

Portanto, olhando o mundo como um todo, o capitalismo continua mantendo suas antigas relações assalariadas de produção. As tentativas de elevar os trabalhadores assalariados do comércio e dos serviços a uma categoria social diferente parecem apenas movimentos ideológicos e políticos, não só para esconder o grau das contradições a que o capitalismo desenvolvido está chegando, mas também para manter sua influência sobre setores pouco concentrados e mais afeitos a ouvir cantos de sereia.

 

O que, diga-se de passagem, não é novidade. Como frisou Waldir José de Quadros, desde os anos 1950 Mills cunhou o conceito de nova classe média para caracterizar a expansão do chamado emprego de colarinho branco. Com isso, utilizando o conceito de mobilidade social, virtualmente transformou assalariados de escritório numa pretensa classe média não-proprietária.

 

Porém, não conseguiu extirpar a propriedade privada do capital, nem as relações de produção assalariadas. Enquanto estas existirem, elas continuarão sendo os principais critérios para a análise das classes sociais, mesmo nos países capitalistas desenvolvidos.

 

Leia também :

Classes e luta de classes: o início

Classes e luta de classes: patriarcado e escravismo

Classes e luta de classes: feudalismo

Classes e luta de classes: mercantilismo

Classes e luta de classes: nascimento do capital

Classes e luta de classes: expansão capitalista

Classes e luta de classes: questões de análise

Classes e luta de classes: ainda as questões de análise


Wladimir Pomar é escritor e analista político.

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