Correio da Cidadania

A síndrome das marés

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No Brasil, as manifestações populares arrefeceram, a taxa de câmbio foi desvalorizada, a inflação parece ter baixado, os juros ameaçam cair, e o governo tem esperança de que as licitações para as grandes obras realimentem os investimentos privados. E, no mundo, há indícios de recuperação de algumas das principais economias, o que pode reativar o comércio e melhorar nossa balança comercial. Diante disso, tem gente na esquerda que está sentindo alívio e baixando a guarda.

 

Esse tipo de avaliação conjuntural sofre, porém, da síndrome das marés. Isto é, a síndrome daqueles que pensam que a maré cheia pode se tornar permanente e que a maré vazante não voltará. Porém, se olharmos para os indicadores conjunturais, veremos que eles são apenas um afluxo momentâneo e frágil. Ele não nos protege do refluxo das águas porque os problemas estruturais mais evidentes não estão sendo resolvidos.

 

Tais problemas continuarão pressionando o câmbio, causando os surtos inflacionários sazonais a cada ano, ou a cada seis meses, mantendo a ameaça permanente de elevação dos juros, e dando justificativas aos setores dominantes do empresariado para fechar bolsos e carteiras e para refugar os projetos de investimento. Afora o fato de que não é possível garantir que as principais economias capitalistas voltem a se tornar mercados ativos para os produtos brasileiros.

 

Em outras palavras, não há indicadores de que o governo tenha reformulado seu programa de desenvolvimento. Não há evidências de que esteja redirecionando seus projetos de investimento para solucionar os problemas de mobilidade urbana e interurbana, moradia popular e infraestrutura de educação e saúde. E, muito menos, numa escala que cause um impacto econômico e social que transforme as mobilizações sociais num instrumento de aprofundamento das reformas políticas democráticas.

 

Não se trata de sugerir o abandono dos projetos de reforma e modernização da infraestrutura de transportes, indispensáveis para reduzir o custo Brasil. Trata-se de rever as prioridades. Por exemplo, ao invés de continuar insistindo no projeto do trem-bala, é possível investir em projetos ferroviários de transporte de passageiros de velocidade média, projetos bem mais baratos e de rentabilidade mais segura. O trem-bala poderia esperar um momento econômico, social e político mais favorável.

 

Outro exemplo: ao invés de continuar investindo em projetos de transportes rodoviários urbanos, os chamado BRT, é muito mais vantajoso investir em projetos de veículos urbanos sobre trilhos, cuja capacidade de transporte de passageiros é muito superior. Na área de saúde, o Brasil continua carente não só de médicos, mas de uma infraestrutura de saúde pública que abranja tanto os bairros urbanos, quanto as zonas rurais. Algo idêntico ocorre na área de educação, cuja infraestrutura é vergonhosa.

 

Projetos nacionais prioritários nessas três áreas – mobilidade urbana e interurbana, saúde e educação, as principais reivindicações das manifestações sociais de junho – podem alavancar a industrialização do país, tendo por base principal cerca de 1,2 milhão de micros, pequenas e médias empresas industriais existentes. Elas representam cerca de 99% das empresas industriais do país, e são responsáveis por mais de 60% dos empregos. Mas sua participação no PIB industrial é inferior a 20%, enfrentando as dificuldades criadas por uma legislação e por uma tributação que foram promulgadas para privilegiar as grandes empresas, cuja concorrência é quase sempre desleal.

 

Políticas que combinem projetos de infraestrutura naquelas áreas com a mobilização de clusters e consórcios de micros, pequenas e médias empresas privadas e empresas estatais, e com a atração de investimentos externos condicionados à associação com essas empresas e com a transferência de tecnologias, não são uma originalidade. Vários outros países já as utilizaram. No caso brasileiro, elas têm a vantagem de atender às principais demandas sociais, alavancar o processo de industrialização, intensificar o emprego e a distribuição de renda, e criar uma dinâmica que coloque as grandes empresas, inclusive os monopólios, na defensiva.

 

Porém, mais do que as políticas de parceria público-privada com grandes grupos empresariais, inclusive monopolistas, as políticas voltadas para a mobilização industrial massiva das micros, pequenas e médias empresas exigem um esforço concentrado do governo. Demandam a formação de grupos de trabalho que se dediquem à elaboração e implementação de projetos executivos, definição das tecnologias demandadas, mobilização de forças, articulação com investidores internos e externos, e uma série de outras tarefas de apoio, acompanhamento e controle do processo produtivo.

 

Algo idêntico precisa ser realizado na agricultura familiar. É ilusão supor que o plano de safra contempla uma virada na micro, pequena e média economia agrícola, que vive constantemente ameaçada pela expansão do agronegócio. Os planos de safra, embora tenham aumentado a parcela para a agricultura familiar, continuam voltados principalmente para o agronegócio, que se lixa para a produção de alimentos para o mercado doméstico.

 

Em tais condições, mesmo levando em conta a importância do agronegócio para a balança comercial brasileira, é necessário dissociar completamente a política de proteção, revitalização e modernização da micro, pequena e média agricultura dos planos de safra. O que o país precisa hoje é de um plano de garantia alimentar e oferta substancial de alimentos agrícolas para o mercado doméstico, que evite os surtos inflacionários, reduza os custos de reprodução da força de trabalho e crie uma força econômica e social capaz de suportar a pressão expansionista do agronegócio sobre todas as terras.

 

Em certa medida, a industrialização urbana voltada para a mobilidade, a saúde e a educação pode se articular com a modernização e a industrialização da agricultura familiar. Isso pode gerar não só novas forças sociais, mas também um ambiente mais favorável às mobilizações necessárias para viabilizar as reformas políticas que o país necessita, elevando a participação democrática e reduzindo o poder dos monopólios e de seus representantes políticos.

 

Em resumo, os afetados pela síndrome das marés precisam acordar para o fato de que, até mesmo as tarefas democrático-burguesas, democrático-capitalistas ou socialdemocratas, exigem um esforço concentrado para serem realizadas. Ou passam a enxergar a solução dos problemas conjunturais através da solução dos problemas estruturais mais evidentes, ou correrão o risco de se verem, em agosto de 2014, diante de um daqueles tipos de maré vazante, inflacionária ou de outro tipo, que pode se transformar em tsunami social e política.

 

Wladimir Pomar é analista político e escritor.

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