Luta de classes

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Wladimir Pomar
14/02/2012


Parece que boa parte da esquerda ainda não saiu da perplexidade de ter um governo central dirigido por uma coalizão política de socialistas e comunistas, da qual participam democratas liberais e conservadores de diferentes tipos. Essa perplexidade, como comentamos em artigos recentes, se reflete na emergência de dois novos tipos de análise, ambos relacionados com a possibilidade ou não do desenvolvimento da luta de classes no Brasil.

 

Uma dessas análises conclui simplesmente que a melhoria das condições de vida do povo amortece seu espírito de luta e é um impeditivo para o crescimento da luta de classes. O exemplo histórico das classes operárias norte-americana e européia, particularmente após a segunda guerra mundial, poderia ser um exemplo a ser esgrimido por essa análise que, no fundo, advoga a tese de que quanto pior, melhor.

 

O problema, que ela não responde, é se estão se criando no Brasil as mesmas condições que permitiram, aos Estados Unidos e à Europa, instaurarem vastos sistemas de exploração e transferência de riquezas dos países do terceiro mundo para eles. Sistemas que permitiram a tais países satisfazer as demandas salariais e de assistência social da maior parte de seus trabalhadores e criar, inclusive, uma aristocracia operária.

 

Embora o Brasil tenha ingressado num processo tentativo de realizar o crescimento econômico com redistribuição de renda, não há indícios de que o capitalismo e a burguesia brasileira tenham condições de explorar países periféricos e organizar um processo mais profundo de redistribuição de grandes migalhas, como fizeram os norte-americanos e europeus, amortecendo as lutas dos trabalhadores. Ainda mais que esses sistemas de transferência de riquezas estão sendo minados, cada vez mais, pelas transformações estruturais do próprio capitalismo, o que começa a obrigar os trabalhadores norte-americanos e europeus a retomarem a luta de classes.

 

A outra análise reconhece que o desenvolvimento do capitalismo está promovendo a conformação da classe trabalhadora brasileira como força ativa, tanto por seu crescimento quantitativo, quanto pela retomada de lutas por aumentos salariais, dignidade no trabalho, melhoria nas condições de transporte, moradia, saúde e segurança. No entanto, ela supõe que as novas lutas que estão surgindo parecem não caber perfeitamente no pacto de poder atualmente existente.

 

No contexto desse pacto de poder inexistiriam canais por onde os movimentos sociais pudessem fazer demandas institucionais. Isso estaria levando o Brasil a um paradoxo. Por um lado, ele parece viver um momento de radicalização em sua base social, fruto do recente crescimento do capitalismo e de suas contradições. Por outro, ele parece assistir às organizações políticas de esquerda engolfadas em disputas institucionais, sem que seus militantes possam diferenciar o desenvolvimento na nação das pretensões individuais de ascensão pessoal.

 

Em outras palavras, essa avaliação comprova que a luta de classes talvez esteja retomando, inclusive de forma radicalizada, enquanto grande parte da militância de esquerda talvez não esteja se dando conta dessa retomada, nem saiba como tratá-la. Isso apenas demonstra que não são as militâncias políticas, por mais esclarecidas e revolucionárias que sejam, que desenvolvem a luta de classes. Esta, historicamente, tem seu próprio ritmo e emerge de contradições econômicas, sociais e políticas reais e determinadas.

 

Em geral, mesmo quando a militância política não está antenada na evolução dessas contradições, a luta de classes rompe com possíveis barreiras ou canais estreitos que impedem a promoção de suas demandas.

Muitas vezes faz isso contra as próprias instituições, forja suas próprias lideranças, e conquista suas reivindicações através de diferentes formas de luta. A história da classe operária do ABC, durante o regime militar, é um exemplo bem nosso desse processo.

 

Portanto, se há uma parte da militância e das lideranças engolfada nas disputas institucionais, isso se deve em parte ao fato de que a classe operária emergente no Brasil ainda não sacudiu essa militância e lideranças como deveria. Ela é uma nova classe operária, diferente daquela do ABC, no final dos anos 1970. Está em processo de recomposição, tem pouca experiência de luta, e ainda não mostrou sua potencialidade.

 

É lógico que boa parte da militância de esquerda poderia estar trabalhando na base dessa classe e de outras classes populares da sociedade brasileira, vivenciando e contribuindo para sistematizar suas pequenas experiências de luta, que existem, e para elevar sua consciência de classe. No entanto, mesmo que essa militância esteja empenhada nessa missão estratégica, isto não quer dizer que ela conseguirá alavancar imediatamente grandes movimentos classistas. Ela simplesmente estará junto com essas classes, e em condições de orientá-las, no momento em que decidirem lutar.

 

Nesse sentido, convém analisar com mais atenção as lutas e conflitos recentes envolvendo algumas camadas de trabalhadores e outros setores populares. Em primeiro lugar, eles mostram que, apesar das melhorias nas condições de vida, e talvez principalmente por causa delas, esses trabalhadores já não suportam a continuidade de certas condições herdadas do período neoliberal.

 

Super-exploração, como nos casos de Jirau, Santo Antônio e alguns canteiros de obras; transportes ineficientes, como nos casos de ônibus em Brasília e Goiás, metrô de São Paulo e Supervia, no Rio; educação deficiente, saúde maltratada, salários baixos e outras distorções presentes na sociedade brasileira: tudo isso tem sido motivo para lutas em diversos pontos do território nacional.

 

Por não suportarem mais essas mazelas, e também por falta de lideranças experientes, quase todas as camadas que protagonizaram essas lutas têm apresentado uma radicalização que, aparentemente, se confronta com a postura do governo federal em não criminalizar nenhuma luta democrática e popular. O que deveria alertar a esquerda para o fato de que o desenvolvimento capitalista, mesmo com distribuição de renda, não impede as lutas de classes. Mas, sem uma esquerda participante, para fazer com que tais lutas sejam travadas com razão e com limite, elas podem colocar o governo democrático e popular contra a parede e abrir janelas por onde a direita crie um ambiente de insegurança e pânico.

 

Wladimir Pomar é analista político e escritor.

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