Correio da Cidadania

"EUA-Israel são sócios no genocídio guatemalteco"

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Indígenas da etnia Ixil denunciam os 626 massacres dos povos originários praticados pela ditadura guatemalteca com apoio do imperialismo estadunidense e dos israelenses (AFP)

Introdução de Leonardo Wexell Severo


“O holocausto maia é apenas um aspecto da implicação de Israel com a violência e o terrorismo de Estado massivo em toda a América Latina”, afirma Mark Lewis Taylor, frisando que, antes de Gaza, os sionistas também executaram em 1947-1948 as maiores atrocidades nas aldeias palestinas.

“Os estudos sobre o genocídio guatemalteco revelam o papel especial que Israel desempenhou naquele massacre sob a égide dos interesses imperiais dos Estados Unidos”, afirma o professor de Cultura do Seminário Teológico de Princeton (EUA), Mark Lewis Taylor, denunciando os 250 mil mortos e desaparecidos que a intervenção provocou “depois da CIA ter orquestrado um golpe em 1954 contra Jacobo Árbenz, o último governo democraticamente eleito do país centro-americano”.

A partir de então, principalmente entre 1960 e 1996, os EUA promoveram uma chacina de grandes proporções na Guatemala, onde o “holocausto maia é apenas um aspecto da implicação de Israel com a violência o terrorismo de Estado massivo em toda a América Latina”. Da mesma forma que Israel executou em 1947-1948 as maiores atrocidades em mais de 400-500 aldeias palestinas, patrocinou massacres em centenas de aldeias e povoados guatemaltecos, “fornecendo armas e treino a governos militares que trucidaram a centenas de milhares de pessoas”. A dimensão dos abusos e afrontas aos direitos humanos levou a ser apontado como uma “palestinização” do conflito.
Boa leitura!

Como Israel facilitou o genocídio guatemalteco

Mark Lewis Taylor


Gaza não é o único lugar onde Israel patrocinou massacres. Durante a década de 1980, o governo israelense interveio na Guatemala, fornecendo armas e treino a governos militares que massacraram milhares de pessoas.

Foi nas ruas da Cidade da Guatemala, em 1987, que comecei a perceber a parceria de Israel com os Estados Unidos para facilitar o genocídio. Hoje vemos como uma “condição genocida” acumulada ao longo de décadas, afirma a professora israelense de cultura moderna e meios de comunicação, Ariella Aisha Azoulay, como está presente no ataque israelo-americano contra Gaza. Mas a memória da minha própria experiência leva-me inexoravelmente a pensar em outros genocídios patrocinados por Israel, particularmente no que aconteceu na Guatemala.

Naquele país centro-americano dos anos 80, uma contrainsurgência de governos militares respaldados pelos EUA massacrou indígenas maias e dezenas de milhares de outros dissidentes e “suspeitos”. Naquela época não havia mídia social para cobrir isso. Grande parte do mundo nem descobriu. O massacre deste período na Guatemala foi reconhecido como um “genocídio” pelos analistas oficiais e por um exaustivo relatório investigativo. Este último estudo deixou clara a utilização do termo “atos de genocídio” para nomear os crimes dos militares guatemaltecos contra os povos indígenas, apesar de terem afirmado que não tinham “intenção” de cometer genocídio e que apenas foram motivados por motivos econômicos, preocupações políticas ou militares.

Tal como acontece com Israel na Palestina – em Gaza e na Cisjordânia -, no caso das elites guatemaltecas é o registo histórico de décadas de assassinato acumulado, ocupação, transferência forçada e desumanização dos indígenas maias o que estabelece os atos e condições como genocídio. Mas, além disso, os estudos sobre o genocídio guatemalteco revelam também o papel especial que Israel desempenhou naquele massacre sob a égide dos interesses imperiais dos Estados Unidos.

Estive pela primeira vez na Guatemala em 1987 para entrevistar educadores e ativistas para a minha investigação sobre o papel das crenças religiosas entre os povos indígenas maias enquanto resistiam à repressão; 1987 foi o ano em que a última série de governos militares da Guatemala encerrava o pior período de violência massiva contra as comunidades maias, o mais importante ocorrido entre 1981 e 1983. Este período é frequentemente chamado de “holocausto silencioso”, “holocausto guatemalteco” ou “holocausto maia”. E este é apenas um aspecto da implicação de Israel com a violência e o terrorismo de Estado massivos em toda a América Latina.

Um dia, em 1987, enquanto a poeira e a poluição atmosférica de uma rua da Cidade da Guatemala giravam ao meu redor, conversava com um amigo ativista e mentor. Fomos interrompidos, assustados por uma ordem em voz alta, emitida por um comando autoritário e projetada por um alto-falante que vibrava profundamente. Um som semelhante ao de Darth Vader, só que mais agudo, ligeiramente mais agudo e mais ameaçador. “O quê?”, exclamei em choque. “Ah, sim”, esclareceu meu colega, “vocês agora são testemunhas de nossos novos veículos policiais, cortesia do governo israelense”.

“Israel na Guatemala?”. Isso me perturbou e deu início a uma linha de pensamento que persistiu em minhas pesquisas e escritos por décadas. A destruição pelo Estado israelense de mais de 400-500 aldeias na Palestina em 1947-1948 permaneceria ligada na minha mente durante as décadas seguintes à destruição de um número semelhante de aldeias na Guatemala no início dos anos 80. A minha reflexão sobre esta parte da emaranhada rede de resultados genocidas mundiais tornou-se uma preocupação constante em minhas pesquisas e publicações.

Conhecia alguma coisa sobre a história da guerra e da repressão de Israel na Palestina, mas não sabia na época das suas ligações com o fornecimento de equipamento policial e militar, assim como de consultores de tecnologia e vigilância na Guatemala. As instituições policiais do país estavam conectadas em rede com agências militares e de vigilância. Estes agentes armados do Estado tornaram-se ameaças temíveis para os seus cidadãos e atores brutais, especialmente depois da CIA ter orquestrado um golpe em 1954 contra o último governo democraticamente eleito da Guatemala.

Os piores massacres nas aldeias maias fizeram parte de grandes “varreduras” militares nas terras altas do norte e oeste da Guatemala. O coronel norte-americano George Maynes disse ao jornalista Allan Nairn que havia trabalhado com o general guatemalteco Benedicto Lucas García para desenvolver esta tática abrangente. Durante a presidência do general pentecostal Efraín Ríos Montt, esta tática de varredura converteu-se em março de 1982 numa estratégia sistemática contra os maias, considerados o principal “inimigo interno” do Estado guatemalteco.

Nairn também relata que o capitão dos Boinas Verdes dos EUA, Jesse Garcia, foi ainda mais específico sobre como ele “estava treinando tropas guatemaltecas na técnica de ‘destruir povoados’”. Os indígenas maias sofreram mais de 625 massacres e também, segundo admite o próprio governo, a destruição quase total de mais de 600 comunidades nas terras altas rurais da Guatemala. Cem mil pessoas fugiram para o México e mais de um milhão foram deslocadas dentro do país.

Mas não foram somente os indígenas maias que sofreram estas atrocidades. Dissidentes ou “suspeitos urbanos” não indígenas também foram detidos e muitas vezes interrogados, torturados ou desapareceram. Mais de um milhão de páginas de relatórios dos arquivos da polícia guatemalteca – sim, mais de um milhão de páginas agora recuperadas – confirmam isto. No total, mais de 200 mil pessoas morreram ou desapareceram na guerra da Guatemala entre 1960 e 1996.

Numa visita posterior com estudantes do meu seminário de 1988, e acompanhado pela minha família e dois filhos pequenos, visitei a unidade forense do Grupo de Apoio Mútuo num pequeno edifício da Cidade da Guatemala, gerido pelas mães dos desaparecidos do país. Na manhã seguinte vimos nos jornais que o edifício tinha sido bombardeado pelas forças policiais. Eram famílias que procuravam os seus entes queridos desaparecidos (e o faziam com o apoio de delegações internacionais das quais formava parte), todas em busca de informações forenses que pudessem desmascarar os responsáveis pelos desaparecimentos, o que era um crime na Guatemala naqueles anos. Neste encontro me marcou de forma dramática a onipresença da violência na Guatemala e o papel dos Estados Unidos na sua manutenção e reprodução.

A ligação de Israel com tudo isto tem sido amplamente investigada. Israel se envolveu fortemente com o governo militar do país centro-americano, especialmente depois do presidente dos EUA, Jimmy Carter, ter cortado a maior parte da ajuda militar estadunidense à Guatemala em 1977, devido ao seu notório histórico de violações e abusos de direitos humanos. O jornalista investigativo George Black, escrevendo para a NACLA (Congresso Norte-Americano para a América Latina), relatou que Israel substituiu com entusiasmo os Estados Unidos, tornando-se “o principal fornecedor da Guatemala”.

Em 1980, o Exército foi completamente reequipado com rifles Galil (de fabricação israelense) a um custo de US$ 6 milhões. Nos últimos anos, as elites militares guatemaltecas se orgulharam de ter reprimido a insurgência em grande parte sem a ajuda estadunidense. Mas Israel desempenhou um papel altamente valorizado como representante dos fornecedores militares estadunidenses.

Num infame massacre – um entre muitos – a conexão israelense se fez claramente presente. Em 6 de dezembro de 1982, comandos treinados por Israel incendiaram totalmente a aldeia de Dos Erres depois de atirar, torturar e estuprar mais de 200 camponeses. Uma equipe de investigação das Nações Unidas relatou: “Todas as evidências balísticas recuperadas correspondiam a fragmentos de balas de armas de fogo e cápsulas de fuzis Galil fabricados em Israel”. E isto foi apenas na aldeia de Dos Erres. A mesma investigação relata que estes fuzis israelenses foram usados nas montanhas, enquanto helicópteros de fabricação norte-americana transportavam tropas. O relatório afirma terem sido “atos de genocídio”.

Infelizmente, demorei muito para aprender de quantas outras maneiras Israel esteve envolvido na massiva violência estatal guatemalteca. O cientista político formado em Harvard, Bishara Bahbah, no seu livro Israel and Latin America: The Military Connection (Israel e América Latina: A Conexão Militar – 1986), qualificou a ajuda militar israelense à Guatemala de um “caso especial” dentro de um conjunto mais amplo de vendas de armas israelenses à América Latina ao longo de décadas.

Outros trabalhos apresentam argumentos semelhantes, como o estudo de Milton Jamail e Margo Gutiérrez, It’s No Secret: Israel’s Military Involvement in Central America (Não é segredo: o envolvimento militar de Israel na América Central).
Muitos acadêmicos continuam estudando a contribuição militar israelense à militarização da atual ordem mundial. Israel é especialista em promover-se como fornecedor de tecnologia para a “pacificação” de focos de conflito. O antropólogo israelense Jeff Halper documenta isso extensivamente em seu livro War Against the People: Israel, The Palestinians, and Global Pacification (Guerra contra o povo: Israel, os palestinos e a pacificação global, 2015). Halper observa que na Guatemala a ajuda e o treino militar israelenses foram fundamentais para o estabelecimento de comunidades de “reajuste” de assentamentos forçados ou “aldeias modelo” concebidas para supervisionar os sobreviventes de massacres.

Os oficiais guatemaltecos inclusive se referiram a isso como uma “palestinização” das terras maias da Guatemala após o massacre, onde as campanhas de choque, pavor e de terra arrasada deixaram povoados devastados. O jornalista guatemalteco Víctor Perera descreveu o resultado como “uma réplica distorcida do Israel rural”. Ian Almond, que relatou a descrição de Perera, afirmou que o coronel guatemalteco Eduardo Wohlers, treinado em Israel e encarregado do Plano de Assistência para Zonas de Conflito, admitiu que “o modelo do kibutz e do moshav está firmemente plantado em nossas mentes”.

Aqui estão mais algumas notas sobre a ligação do governo de Telavive com o guatemalteco: já em 1978, discussões conjuntas que tiveram lugar em Israel entre os ministros da defesa dos dois países centraram-se no “fornecimento de armas, munições, equipamento de comunicações militares (incluindo um sistema informático, tanques e carros blindados, cozinhas de campanha, outros itens de segurança e até o possível fornecimento da aeronave de combate avançada, o Kfir. Também falaram em enviar pessoal israelense… para treinar e assessorar o exército guatemalteco e a polícia de segurança interna (conhecida como G-2) em táticas de contrainsurgência”.

Quando as investidas guatemaltecas contra os maias começaram em novembro de 1981, os Estados Unidos e Israel assinaram o Memorando de Entendimento sobre Cooperação Estratégica. Concentraram seus esforços conjuntos “fora da área do Mediterrâneo Oriental”. Israel começou a entregar seus aviões utilitários Arava STOL em 1977, supostamente apenas para o transporte de suprimentos não militares, mas como os israelenses anunciaram, os aviões eram “rapidamente conversíveis” para outros fins, inclusive em “um substituto de helicóptero”. Foram utilizados para atividades de contrainsurgência nas terras altas da Guatemala.

O general Benedicto Lucas García, chefe do Estado-Maior guatemalteco que realizou os ataques genocidas, agradeceu a Israel pelo “assessoramento e transferência de tecnologia eletrônica” ao discursar numa cerimônia especial de inauguração da Escola de Transmissões e Eletrônica do Exército.

O jornalista Gabriel Schivone apresentou um amplo resumo do papel dos israelenses na guerra suja da Guatemala no site Electronic Intifada, descrevendo como Israel exerceu este papel de intermediário para os Estados Unidos. Um ministro da Economia israelense, Yaakov Meridor (1981-1983), declarou: “Diremos aos norte-americanos: não concorram conosco em Taiwan; não concorram conosco na África do Sul; não concorram conosco no Caribe ou em outros lugares onde não possam vender armas diretamente. Deixem que nós o façamos (…). Israel será o seu intermediário”.

Consideremos o general israelense Mattityahu Peled, que foi um combatente treinado pela primeira elite paramilitar sionista Haganah, administrador militar da Gaza ocupada no final da década de 1950 e também general durante a guerra de 1967. Peled deu uma explicação honesta do papel de Israel no mercado global de armas com a formação prática de seus soldados na arte da opressão e nos métodos de punição coletiva. Não é de surpreender, portanto, que depois de deixarem o exército, alguns destes oficiais decidam colocar os seus conhecimentos a serviço dos ditadores e que estes tenham o prazer de receber aos especialistas israelenses.

O golpe do presidente Ríos Montt em 1982, como ele próprio explicou à ABC News, teve sucesso porque “muitos dos nossos soldados foram treinados pelos israelenses”. Os instrutores e assessores israelenses, tanto para ações militares quanto policiais, eram entre 150 e 200, e alguns relatórios falavam de 300. Quando o massacre nas terras altas estava no auge, o chefe do Estado-Maior de Ríos Montt, general Héctor López Fuentes, admitiu: “Israel é o nosso principal fornecedor de armas e o amigo número um da Guatemala no mundo”.

Um conselheiro israelense que fez um extenso trabalho na Guatemala, o tenente-coronel Amatzia Shuali, disse a um colega: “Não me importa o que os gentios façam com as armas. O principal é que os judeus se beneficiem”. O entrevistador acrescentou: “Shuali foi muito educado para fazer tal comentário a um não-israelense”. A atitude de Shuali foi semelhante à que saiu da boca de um ex-chefe do comitê de relações exteriores do Knesset. Quanto à relação de Israel com a Guatemala, o membro do Knesset explicou: “Israel é um Estado pária, não podemos nos dar ao luxo de fazer perguntas sobre ideologia. O único tipo de regime que Israel não ajudaria seria um regime antiamericano”.

Outro importante estrategista de Israel, Pesakh Ben Or, “talvez o israelense mais proeminente na Guatemala” na década de 1980, era agente das Indústrias Militares de Israel e do Tadiran (um grupo de telecomunicações israelense que servia aos escritórios militares e de inteligência do Palácio Nacional da Guatemala). Ele também conseguiu manter “uma vila perto de Ramla, em Israel, completa com empregados guatemaltecos, piscina e estábulo para sete cavalos de corrida”.

Grande parte da ajuda militar de Israel faz parte de uma rede de assistência que inclui apoio agrícola, apontava desde a Guatemala um relatório do jornalista investigativo George Black à NACLA. “Há um mosaico interligado de programas de assistência: armas para ajudar o exército guatemalteco a esmagar a oposição e arrasar o campo, assessoramento de segurança e inteligência para controlar a população local, e modelos de gestão agrária para construir sobre as cinzas do altiplano”.

De acordo com o Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo, como resume Bishara Bahbah: “Com a ajuda israelense, a Guatemala construiu uma fábrica de munições para fabricar balas para os fuzis de assalto M-16 e Galil”. Esta fábrica foi inaugurada na cidade guatemalteca de Cobán, um lugar que meus estudantes e eu visitamos para entrevistar ativistas e líderes religiosos.

Quinze anos de investigação e consultas com acadêmicos mais especializados na Guatemala do que eu, me mantiveram em sintonia com as conexões militares entre os Estados Unidos, Israel e a Guatemala. Há mais pesquisas sobre as ligações durante os anos de genocídio na Guatemala do que posso resumir aqui. Encontrei padrões similares de parceria entre Israel e Estados Unidos quando visitei outros locais onde ocorreram intervenções militares estadunidenses, tanto abertas como encobertas (no Peru, Colômbia, Honduras, El Salvador, Nicarágua e Chiapas, México).

Também estes países – mas sempre, acima de tudo, a Guatemala – ofereceram-me uma primeira janela para os Estados Unidos e Israel como sócios no genocídio. Agora, especialmente dentro dos Estados Unidos, como cidadão, tenho de reconhecer a minha parte de responsabilidade em tudo isto, dados os 3,8 bilhões de dólares anuais em ajuda militar que os Estados Unidos enviam a Israel para preservar estas formas de violência contra palestinos e guatemaltecos.

Os nossos movimentos pró-Palestina devem levantar-se para desafiar, de uma vez por todas, esta parceria EUA-Israel na condição genocida.

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