Correio da Cidadania

Notas sobre capitalismo e socialismo (9)

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Para tentar sair da crise em que o Brasil havia afundado na década anterior, nos anos 1990 a burguesia se engajou em vários movimentos, tendo como mote principal a redução da inflação. Realizou uma desbragada abertura comercial. Liberou o movimento dos capitais financeiros, da taxa de juros e da taxa de câmbio. Privatizou empresas públicas. Incentivou a venda descontrolada de empresas privadas. Abandonou a intervenção estatal nos processos industriais. E ampliou o pesado financiamento ao agronegócio.
 
O conjunto de políticas macroeconômicas obedientes ao neoliberalismo do Consenso de Washington supostamente reorganizaria a economia e retomaria o desenvolvimento. Resultou, porém, no desmonte de parte importante do parque industrial existente, em juros que inviabilizaram investimentos produtivos, na elevação da dívida pública interna e externa, e na adoção de um câmbio que rebaixou a capacidade de concorrência dos manufaturados brasileiros no mercado internacional. No final da década quase só sobraram os grandes bancos e as corporações transnacionais, cujo poder de monopólio lhes garantia superlucros.
 
Se comparada com as classes dominantes da China e do Vietnã no mesmo período, a classe dominante cabloca tornou o Brasil incapaz de aproveitar a globalização do capital para seguir um desenvolvimento independente e soberano. Aqui, o Estado se ajustou às exigências das corporações transnacionais, enquanto naqueles países tais corporações tiveram que ajustar-se às exigências do Estado. Aqui, os investimentos estrangeiros foram realizados de acordo com as decisões dos investidores, mas lá tais investimentos só se realizaram quando obedeceram aos regulamentos para investimentos estrangeiros, cujo objetivo consistia em adensar as cadeias produtivas de todos os departamentos econômicos.
 
Na China, entre 1978 e 1990, tais investimentos tinham que dirigir-se primeiro e exclusivamente para as Zonas Econômicas Especiais, que visavam à disputa no comércio internacional. Somente no início dos anos 1990, após as estatais e as empresas privadas haverem se beneficiado das transferências de novas ou altas tecnologias exigidas por aqueles regulamentos, é que o resto do país foi sendo paulatinamente aberto à concorrência de empresas estrangeiras. Mesmo assim a taxa de câmbio continuou sendo administrada para garantir a competição dos produtos chineses no mercado internacional, enquanto as taxas de juros continuaram compatíveis com os investimentos produtivos e a acumulação interna do capital.
 
Enquanto no Brasil o mercado foi desregulado, na China e no Vietnã o mercado foi formalmente orientado para elevar a concorrência, ou a competição, inclusive entre as empresas estatais, e para manter sob controle estatal os sistemas de crédito, de câmbio e de desenvolvimento científico e tecnológico. Isso lhes permitiu evitar que parte substancial de seus PIBs fosse transferida, na forma de dividendos, lucros e juros, para as potências-sedes das empresas transnacionais. O que levaria à redução da capacidade de investimentos próprios, e forçaria a captação de empréstimos externos para manter em funcionamento suas máquinas estatais.
 
Foram essas diferenças do desenvolvimento em relação ao Brasil e aos demais países que se subordinaram ao Consenso de Washington que permitiu à China e ao Vietnã manter taxas elevadas de crescimento econômico (6% a 7%) mesmo durante o pico da crise global disseminada a partir de 2008. Também foram essas diferenças que lhes permitiram, desde então, transferir com relativo sucesso o centro de realização/consumo de sua produção do mercado externo para o mercado interno, mesmo continuando ativos no mercado internacional de produtos industriais.
 
Apesar dessas e de outras experiências internacionais, na Ásia e na África, de aproveitamento positivo e soberano da globalização capitalista, no Brasil continuaram predominando concepções colonialistas e agraristas sobre a indústria. Exemplo recente de tais concepções, reiteradas abertamente, são as belas propagandas televisivas sobre o agro. Para que ter indústria, poluente e de maturação lenta, se o agro se diz a verdadeira indústria, pop e tech, supostamente realizando o sonho anual de celeiro do mundo?
 
Predomina em vários círculos dominantes a suposição de que políticas industriais não produzem resultados imediatos. Para eles, é mais eficaz e produtivo privatizar as indústrias estatais, permitir que as indústrias privadas sejam compradas e transferidas para outros países, como aconteceu nos anos 1990, e direcionar os investimentos nacionais e externos para a área financeira de altas rendas. Acreditam piamente que especular, gerando dinheiro simplesmente a partir do dinheiro, sem necessidade de correr os riscos do processo produtivo, é muito mais seguro e lucrativo.
 
Todas essas concepções desconsideram o fato de que nenhum país do mundo, seja capitalista ou de transição socialista, conseguiu ter projeção e criar condições para o bem-estar populacional sem haver construído um sistema industrial relativamente completo. Para tanto, todos enfrentaram questões metodológicas diversas, cujo equacionamento permitiu, no processo de desenvolvimento, maior ou menor rapidez, maiores ou menores traumas populacionais, maiores ou menores crises estruturais.
 
Métodos de choque ou suaves, de curto ou de longo prazo, sob comando do mercado ou do Estado, sob domínio da concorrência ou do monopólio, nacionalmente disperso ou regionalmente concentrado, tendo por base os bens de produção ou os bens de consumo, a indústria pesada ou a indústria leve, foram empregados por todos os países que ingressaram na industrialização, muitas vezes incluindo a utilização ou combinação desses polos metodológicos contraditórios.
 
Os Estados Unidos utilizaram métodos de choque para impor a industrialização a todo o país (guerra de Secessão) e para se firmar como potência mundial no curto prazo de 50 anos (guerra colonial contra a Espanha e participação na Primeira Guerra Mundial), com o rápido desenvolvimento de suas grandes empresas. O poder de influência de tais empresas se tornou um dos principais entraves, até os anos 1950, à industrialização dos países atrasados. Paralelamente, nesse período os EUA viram-se confrontados com as crises inerentes ao comando do mercado sobre o Estado, sendo obrigados a aceitar, nos anos 1930, o comando deste sobre o mercado.
 
Só após a Segunda Guerra Mundial o comando do mercado sobre o Estado foi retomado. A partir dos anos 1950 ocorreu uma crescente elevação da produtividade industrial com a incorporação continuada das ciências e tecnologias às forças produtivas, a substituição do trabalho vivo pelo trabalho morto e a substituição das grandes empresas multinacionais por corporações transnacionais, pressionando a tendência de queda da taxa média de lucro.
 
Foram essas mudanças estruturais que impeliram os capitais à busca externa de salários mais baixos através de investimentos em países atrasados e carentes de recursos. Assim, à medida que a exportação de capitais se impôs como necessidade imperiosa para a concentração e a centralização do capital em algumas poucas grandes corporações capitalistas, a partir dos anos 1970 foram ainda mais aceleradas as reformas estruturais que impulsionaram a avassaladora globalização capitalista.
 
Tais reformas fizeram com que os Estados Unidos se defrontassem com crescente desindustrialização, desemprego da força de trabalho, baixas taxas de crescimento econômico, recrudescimento da pobreza e fim do propalado e glamoroso American Way of Life. O fenômeno Trump é apenas um aspecto político das contradições internas que emergiram durante a caminhada metodológica do desenvolvimento do capitalismo norte-americano.    
 
A China socialista, por seu lado, deu-se conta de que o modelo estatista soviético de desenvolvimento econômico e social se tornara um beco sem saída. E que suas experiências traumáticas do Grande Salto Adiante e da Revolução Cultural Proletária também não lhe permitiam realizar o desenvolvimento ampliado das forças produtivas e atender às demandas de consumo de sua população. O que a levou, entre 1976 e 1978, a recuperar a tese marxista clássica de que nenhuma formação econômico-social sai da história sem haver esgotado todas as suas possibilidades de desenvolvimento. Em termos práticos, o capitalismo não pode ser substituído antes que o constante revolucionamento de suas forças produtivas chegue ao ponto de destruir a capacidade do mercado consumir sua produção.
 
Tendo isso em consideração, e a própria experiência do comando do Estado nas crises capitalistas, a China empreendeu uma reforma cuja metodologia inclui longo prazo, múltiplas experimentações e sem choques, combinando o comando do Estado na política e na economia, com a ação relativamente ordenada do mercado. Tudo no sentido de desenvolver as forças produtivas, especialmente industriais, científica e tecnologicamente avançadas, e superar paulatinamente a propriedade privada pela propriedade social.
 
Dizendo de outro modo, desde 1980 o Estado chinês passou a aplicar as regras de concorrência do mercado tanto sobre seus instrumentos econômicos (empresas etc.) quanto sobre seus instrumentos sociais e políticos (relações de produção, luta de classes, combate à corrupção, sistema parlamentar etc.), tendo em conta seu grande atraso de desenvolvimento histórico e tendo como horizonte a superação da transição socialista a longo prazo.
 
Em vista de tudo isso, pode-se não acreditar que a China seja socialista, considerá-la uma nação capitalista, não gostar dos chineses, ou de seus comunistas, ou até mesmo acreditar que tal experiência corre o risco de sucumbir ao comando do mercado e da nova classe burguesa que emergiu em seu socialismo de mercado. Mas é muito difícil jogar no lixo, ou não dar atenção, ao fato de que, em menos de 40 anos, o comando estatal e a combinação e competição entre empresas estatais e empresas privadas, nacionais e estrangeiras, permitiu à China um desenvolvimento econômico, social e político muito mais veloz do que, anteriormente, os Estados Unidos.

Diversas de suas estatais transformaram-se em campeãs nacionais com forte presença internacional, e a China se tornou a segunda nação industrial mais desenvolvida do planeta, com a perspectiva de ocupar o primeiro posto nos próximos 20 anos. Não é pouco.

Leia os demais textos da série aqui

Wladimir Pomar

Escritor e Analista Político

Wladmir Pomar
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